As alternativas à "reforma única"
O dogma de que é preciso baixar os custos das políticas sociais para a retomada do emprego e do crescimento precisa ser submetido a críticas – existem medidas que aportariam novos fundos e reduziriam déficits sem penalizar o aposentadoMartine Bulard
Última encarnação da difícil disputa ideológica: a reforma única. Fora do texto sobre a aposentadoria elaborado minuciosamente pelo governo francês e aprovado por dois sindicatos minoritários – a Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT) e a Confederação Geral dos Executivos (CGC), não haverá salvação. Ministros e comentaristas repetem isso a exaustão. Até os caciques do Partido Socialista afirmam que eles não teriam “feito outra coisa” (o que é verdadeiro), mesmo com os dirigentes atuais buscando escapatórias para não se desligarem do movimento.
Eles se recusam a submeter ao crivo da crítica este dogma 100 vezes repetido: é preciso baixar os custos das políticas sociais e públicas para a retomada do emprego e do crescimento. No entanto, em 20 anos, a participação dos salários nas riquezas criadas caiu cerca de 10 pontos, para se estabilizar em 57,2% em 20021. Os resultados são conhecidos: crescimento frágil, desemprego em alta, deficits públicos explosivos.
As mesmas receitas foram aplicadas em toda parte: nos Estados Unidos, a participação dos salários caiu nas mesmas proporções e atingiu 65% em 2000 enquanto o desemprego voltou a subir; na União Européia ela passou para 67,5% em média no período 1998-2000, com o desemprego e a pobreza caminhando juntos. Como em economia nada se perde, os lucros atingem seu ponto máximo2.
Mudanças no contrato social
O debate, entretanto, não tem nada de técnico: ele atinge o próprio contrato social. Queremos ou não dedicar mais riquezas para a satisfação das necessidades das populações? Podemos impulsionar políticas voluntaristas a favor do emprego ou devemos aceitar que o emprego e os salários permaneçam “variáveis de ajuste”? Devemos caminhar em direção a uma maior segurança econômica e profissional ou nos resignar com uma grande insegurança social, com as conseqüências eleitorais do dia 21 de abril de 2002?
O plano governamental de reforma das aposentadorias responde a uma lógica que não se pode contrapor. Se as empresas continuam a despedir e a reduzir os gastos salariais para aumentar seus valores na Bolsa, se o Estado se redireciona e se os serviços públicos se restringem, só há soluções como prolongar o tempo de contribuição, baixar o montante das pensões e incentivar os fundos de pensão. Temos então a mesma engrenagem para o seguro de assistência social, que deveria reduzir seus benefícios, incitando os menos pobres a se voltarem para os seguros de saúde privados.
Ativos pagam mais, aposentados ganham menos
Com o plano Rafarin, os ativos pagarão mais pelos aposentados que ganharão menos, enquanto as empresas vão sendo desobrigadas de dar sua contribuição
Estes princípios servem igualmente para justificar a privatização de uma parte do serviço público de educação ou energia. Enquanto o progresso social e a produtividade econômica permitiriam que se retirasse, cada vez mais, alguns setores das relações do mercado, entrega-se a ele partes inteiras da sociedade.
Na França – como na maior parte dos países europeus – o sistema de aposentadoria baseia-se em três princípios: solidariedade entre gerações (os ativos pagam pelos inativos); responsabilidade das empresas (empregadores e assalariados participam do financiamento, essas contribuições constituindo-se naquilo que se chama de salário indireto); seguridade coletiva (o nível da aposentadoria é garantido pelo Estado e pelos parceiros sociais).
Com o plano Rafarin, os ativos continuarão a pagar (mais) pelos aposentados que ganharão menos. Em contrapartida, as empresas serão progressivamente desobrigadas de dar sua contribuição e uma parte cada vez maior das pensões será “indexada” nos mercados financeiros voláteis. Ao contrário do que pretendem o primeiro Ministro e o Jacques Cherèque, secretário geral da CFDT, os sacrifícios de hoje não garantirão as aposentadorias de amanhã. O próprio Rafarin reconhece que uma vez estando “o mecanismo desencadeado”, será preciso reativá-lo “em 2008, 2010, 2015”. Um mecanismo que já faz com que 90% da fatura seja paga pelos rendimentos do trabalho. Em detrimento do consumo e do crescimento.
Garantia com os dias contados
Rafarin esquece que os dois trabalhadores ativos de hoje, produzem 1,5 vezes mais que os quatro que sustentavam um aposentado na década de 60
Até mesmo a garantia – tão cara à CFDT – de um nível de pensão igual a 85% do salário mínimo é um engodo. Os trabalhadores – um em cada seis! – que recebem menos que o salário mínimo serão excluídos. Os demais deverão trabalhar mais tempo para se beneficiar (41 anos, depois mais de 42, em vez de 37,5 anos para o setor público e 40 para o setor privado). Além disso, esta garantia só é válida no ano de início do assalariado. Com as pensões não sendo mais indexadas na evolução dos salários, ela desapareceria nos anos seguintes. A CGT calculou que, 15 anos mais tarde, a aposentadoria cairia para 65% do salário mínimo!
Finalmente, o nível das pensões depende também das caixas complementares (Associação dos regimes de aposentadoria complementar – Arrco – e Associação geral das instituições de aposentadoria de executivos- Agirc). Ora, estas se apoiarão sobre a nova lei para reduzir suas prestações, como foi no caso depois da reforma Balladur3.
Falso estrangulamento
Raffarin afirma que em “1960 havia quatro ativos para cada aposentado; em 2000 há dois ativos para cada aposentado4“. É exato. Mas ele esquece um detalhe: somente eles, os dois ativos de hoje, produzem 1,5 vezes mais que os quatro de ontem. Esta proporção deveria ser da mesma ordem daqui até 2020: um só ativo produzirá mais que os dois atuais.
Na verdade, o país não está estrangulado. Diferentes soluções poderiam ser negociadas. Sindicatos – como a Confederação Geral do Trabalho (CGT), a Federação sindical unitária (FSU) -, associações (como a Attac ou a Fundação Copernic) e economistas propõem saídas alternativas. Algumas medidas aportariam novos fundos; outras reduziriam os déficits; outras só seriam plenamente eficazes ao fim de alguns anos. Juntas, elas permitiriam construir uma nova arquitetura.
Funcionalismo paga pelos ricos
Pretende-se fazer com que os funcionários paguem – contribuindo mais e ganhando aposentadoria menor – uma baixa de impostos que favorece os mais ricos
A interrupção do programa de redução do imposto de renda.
Para justificar suas escolhas, o governo destaca o déficit do orçamento do Estado. O rombo é conseqüência e ninguém pode ignorá-lo. Mas somente elas, as reduções de impostos de renda vão atingir 30 bilhões de euros até 20065, ou seja, comprometendo as necessidades de financiamento das aposentadorias da função pública de Estado, bem como a função pública territorial e hospitalar – 29 bilhões de euros em 2020, segundo o Conselho de Orientação dos Aposentados (COR). Pretende-se, portanto, fazer com que os funcionários paguem (aumentando seu tempo de contribuição e abaixando o nível de suas aposentadorias) uma baixa de impostos que favorece os mais ricos. A mesma observação vale para as “incitações à poupança” que, por definição, só beneficiam 10% das famílias que detém 60% da poupança financeira.
E o risco, sobre o qual se faz tanto alarde, de ver os capitais fugirem para o exterior? Esta chantagem existe, mas permanece marginal. Antes do último programa de redução de impostos, desde os anos 1998 -2000, os investimentos estrangeiros na França bateram todos seus recordes (o que, aliás, não deixa de ser perigoso). Pode-se, portanto, deduzir que existem outras determinantes além da extorsão fiscal.
Números fantasiosos
A volta progressiva das contribuições patronais aos níveis de 1985 articulando-as para as Pequenas e Médias Empresas.
Há 15 anos as contribuições para a aposentadoria pagas pelo patronato permanecem bloqueadas em 8,5% enquanto que as pagas pelos assalariados não pararam de aumentar: a parte paga pelo primeiro caiu de 64% para 56%, enquanto a dos assalariados passou de 35% para 44%. Para voltar ao equilíbrio inicial, bastaria acrescentar a contribuição patronal de 0,34% ao ano. Não há razão para atear fogo à pólvora, principalmente se mudarmos a postura para torná-la mais favorável ao emprego.
Os governos franceses sempre se recusaram a assentar as contribuições sobre o valor agregado com o pretexto de que o processo ficaria muito complicado
Estamos longe de números fantásticos anunciados pelos seguidores da reforma Raffarin-Chérèque que falam em um aumento de 58%6 das contribuições! Este dado é fornecido pelo Conselho de Orientação dos Aposentados (COR) somente na hipótese em que decidam aumentar apenas as contribuições, coisa que ninguém propõe. Agitar o pano vermelho de uma alta brutal é, portanto, no mínimo, leviano. Além disso, contrariamente ao que prega o patronato, os custos salariais (salários mais encargos) na França não são os mais altos da Europa. Longe disso: segundo a Eurostat, eles são 18% superiores na Suécia, 17,8% na Alemanha, 11,7% na Dinamarca… e até mesmo cerca de 2% no Reino Unido.
Contribuição sobre valores agregados
A troca da base de cálculo das contribuições.
As contribuições são calculadas somente sobre as rendas dos trabalhadores. O patronato batalha para que se troque por um imposto (tipo CSG ampliada7: as empresas não pagariam mais nada, mas a renda do trabalho seria sempre penalizada. Muitos sindicatos e associações propõem conservar o laço com a empresa, mas ampliar a base da contribuição patronal ao conjunto das riquezas criadas (o valor agregado), e modular as contribuições em função dos salários para favorecer as empresas criadoras de empregos qualificados. Trata-se de dar ao sistema um melhor desempenho e torná-lo mais justo. Os grupos que utilizam o emprego como variável de ajustamento seriam penalizados enquanto que as Pequenas e Médias Empresas e os artesãos pagariam relativamente menos.
Os sucessivos governos franceses recusaram assentar as contribuições sobre o valor agregado usando como pretexto que seria muito complicado. Ora, a referência ao valor agregado já existe: ela serve de teto para a taxa profissional das empresas. Por que não o estender a outras áreas?
Considerar a totalidade da renda adquirida pelos assalariados para o cálculo das contribuições da aposentadoria.
Desta forma seriam incluídos os prêmios, lucros, a participação, hoje totalmente isentos, que contribuem para enxugar as caixas de aposentadoria. Incentivando a busca por este tipo de pagamento (que se faz, com freqüência, em detrimento dos aumentos de salários), seriam geradas novas fontes de recursos.
O sistema de estoques de opções deveria sofrer dura taxação. Além disso, os dirigentes das grandes firmas, que militam ativamente pela redução das aposentadorias, fazem com que suas empresas paguem contribuições às “caixas de aposentadoria suplementar” garantindo a elas de 75% a 85% de seu último salário por ocasião da sua aposentadoria!
Mais emprego, mais contribuição
Em vez de fazer os adultos em fim de carreira trabalharem mais seria melhor permitir a todos que desejem que trabalhem normalmente, em tempo integral
Uma contribuição social das empresas sobre seus proventos financeiros, à imagem da CSG8, paga pelos indivíduos. Seja um desconto de 10,3% sobre a renda originária de aplicações de todos os tipos (70 bilhões de euros em 2000). Não se trata de assentar todo o financiamento do sistema de aposentadoria sobre estes ingressos financeiros, que são flutuantes por definição. Mas sua taxação propiciaria recursos suplementares para as aposentadorias.
Aumento do nível de emprego. Antes de solicitar aos adultos em fim de carreira que trabalhem mais, seria melhor permitir a todos que desejem, que trabalhem normalmente. Um milhão de empregos suplementares em tempo integral são em média 20 bilhões de euros a mais de contribuição para a aposentadoria (sobre 90 bilhões) 9. Somente 45,3 % dos homens e 41,8% das mulheres ainda têm um emprego quando começam a gozar da aposentadoria; eles devem, então, trabalhar além dos 61 anos, no caso de ausência de uma carreira completa. Quem adotará o prolongamento da duração do trabalho programado? Os outros não têm escolha: eles estão desempregados ou às vésperas da aposentadoria. Deixá-los trabalhar até os 60 anos em boas condições acarretaria contribuições e obrigaria a pensar em uma organização do trabalho que respeite mais os seres humanos e que seja mais ciosa de transmissão de saberes entre gerações. Nada a ver com pequenos trabalhos em meio período feito por velhos preparados, sob o nome de “contratos sêniores”, pela Medef (Mouvement dês entrepreneurs de France – sindicato nacional dos empresários)!
Incentivando o trabalho qualificado
Eles, os jovens, “são duplamente penalizados” 10: são penalizados em sua entrada na vida ativa (mal pagos, mesmo quando dispõem de um diploma reconhecido), e também o serão na saída, pois eles não poderão dispor de uma aposentadoria plena. Da mesma forma que as mulheres, primeiras vítimas do meio período a que são submetidas. Portanto, já seria tempo de incentivar as empresas a não mais jogar com a precariedade, ao erigir critérios de emprego e de formação para a atribuição dos fundos públicos e controlar sua utilização. Desta forma se poderia, salvo em caso excepcional, suprimir as vantagens fiscais e sociais ligadas ao tempo parcial – que praticamente não existia antes de Martine Aubry se envolver nisso.
Para reconstruir este desafio é preciso quebrar o tabu do congelamento do valor dos encargos salariais: estes devem aumentar em detrimento dos lucros
Cerca de metade das necessidades de financiamento das aposentadorias seria coberta pelo retorno da taxa de emprego dos mais jovens e dos mais velhos ao nível médio europeu. Para reconstruir este desafio é preciso quebrar o tabu do congelamento do valor dos encargos salariais: estes devem aumentar em detrimento dos lucros. Levando em consideração os últimos anos, pode-se restabelecer um pouco o equilíbrio… Pagando o preço de um recuo nas despesas de investimento material? A observação merece um exame, mesmo que as empresas possam escolher reduzir os dividendos gastos, em vez do investimento. É necessário subverter os dogmas e reconhecer que não se pode continuar a aumentar indefinidamente investimentos materiais com eficácia duvidosa11. Em uma “sociedade de conhecimento”, o desenvolvimento das faculdades humanas (formação inicial e continuada, trabalho em cadeia…) prima sobre os investimentos em máquinas. Uma nova combinação dos fatores mais favoráveis ao emprego qualificado e ao salário que o acompanha deve, portanto, ser buscado. Desta forma, é necessário, ao mesmo tempo, uma nova repartição de riquezas e uma nova maneira de produzi-las.
Liderança francesa
Tais proposições podem ser aplicadas em um só país? A França tem margens de manobra (principalmente sobre os custos salariais) para agir. Ela decidiu firmemente sozinha reduzir o imposto de renda, colocando em perigo o pacto de estabilidade europeu. Há coisas melhores a serem feitas. Ações orquestradas, ao menos no âmbito europeu, são necessárias para se evitar todo risco de dumping social e fiscal. A França poderia ter um papel condutor, como em relação à guerra do Iraque, apoiando-se na quase totalidade das forças sociais da União que rejeitam os planos de regressão.
Na Áustria, nunca se viu, em 50 anos, tanto vigor em greves como contra a reforma das aposentadorias; na Alemanha elas se multiplicam (apesar da SPD); e na Itália acontece o mesmo. Desta vez, são as forças sociais que podem construir suas convergências.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Ler: “Comptes de la Nation 2002”, Insée Première, abril, 2003, Paris.
2 – Ler, principalmente, Jean Marie Harribey, “Retraites: silence on détourne” em www.attac.fr
3 – A reforma Balladur de 1993 aumentou o tempo de cotização e reduziu as pensões para o setor privado. Depois, os acordos assinados pela CFDT, da CFTC, da CGC e FO em 1996 se traduziram em uma baixa de 20% à 22% dos direitos à aposentadoria. Ler “Marché de dupes pour les retraites” Le Monde Diplomatique, janeiro de 2003.
4 – Publicidade estampada na imprensa no dia 12 de maio de 2003.
5 – Ler: Les Échos, 4 de junho de 2003.
6 – Ler: Laurent Joffrin, “Retraites: la verité en face”, Le Nouvel Observateur, n.20113, de 5 de junho de 2003.
7 – Contribuição Social Generalizada é um imposto sobre os salários que é utilizado contra a pobreza.
8 – Instaurada por Michel Rocard, a CSG atinge 90% os ingressos salariais e pouco os ingressos financeiros pessoais.
9 – Seja 4 à 6 pontos do produto interno se queremos voltar à
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).