As contradições da Revolução Boliviana
A consolidação da direção popular com o governo de Evo Morales exige que o conjunto da sociedade considere que sua situação melhora como um todo, em razão das classes trabalhadoras dirigirem o país. Essa necessidade obriga a esquerda a levar em conta uma parte das necessidades de seus adversários
Em junho de 2011, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial elogiavam “a sólida gestão macroeconômica” do governo boliviano. Alguns meses antes, nas ruas de La Paz, ressoavam gritos de manifestantes que denunciavam a “volta ao neoliberalismo” sob a égide do presidente Evo Morales, exigindo reposição salarial.
Seria esse o fim das “mudanças para a esquerda” na América Latina, simbolizadas principalmente pela chegada ao poder, em 2006, desse sindicalista, camponês e indígena? Na Bolívia, o clientelismo não foi erradicado, as novas elites reproduzem erros de seus antecessores e os conflitos sociais explodem regularmente. A administração Morales teria então “traído” seus compromissos? Ou as dificuldades que encontra a “revolução democrática e cultural” boliviana revelariam as tensões próprias dos movimentos de transformação social?
Essa última formulação é o ponto de vista de Alvaro García Linera, que ocupa um lugar particular na paisagem política latino-americana. Antigo guerrilheiro, sociólogo, autor de várias obras, ele é vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia. Sua análise não é a de um observador distanciado dos conflitos que descreve, ele intervém como homem político, engajado na defesa de sua administração. Nem por isso seu testemunho é menos valioso: raros são os intelectuais confrontados com o rigor que a realidade impõe a suas teorias; é igualmente raro que governantes examinem as implicações teóricas de suas ações.
Entre 2000, data das primeiras mobilizações sociais maciças denunciando a privatização da água, e 2009, data da reeleição do sindicalista camponês Evo Morales à presidência (ver cronologia e quadro “As cinco etapas da transformação do Estado”), a Bolívia conheceu um conflito fundamental opondo o povo boliviano ao império norte-americano e seus aliados da burguesia local, comprometidos com o neoliberalismo.
Revelando as dificuldades que encontra uma dada coletividade – um povo, um Estado –, as contradições catalisam o surgimento de soluções. Através de suas tensões, as sociedades se desenvolvem, firmam alianças entre grupos sociais e superam (parcialmente ou completamente) os obstáculos que entravam seu progresso.
A eleição de 2009, da qual a administração Morales saiu reforçada,1atenuou essas ameaças vindas do exterior. Novas contradições surgiram entãono seio do bloco nacional-popular, entre os diferentes setores que conduzem o processo de transformação, relativas às formas de sua condução.
Quatro dessas tensões, ainda que secundárias frente à questão do imperialismo, se situam no coração do processo revolucionário boliviano. De um lado, elas ameaçam sua continuidade; de outro, elas permitem imaginar os meios de passar à etapa seguinte.
A primeira diz respeito à relação entre o Estado e os movimentos sociais. A população espera do governo ações eficazes, com respostas concretas às suas necessidades materiais. Esses resultados exigem uma centralização eficaz das tomadas de decisão, e nosso governo é constituído por representantes de organizações sociais indígenas, camponesas, operárias e populares, cuja dinâmica exige “um tempo maior” para o debate, a deliberação e a análise de distintas propostas.
O governo do presidente Evo Morales – um “governo de movimentos sociais”2– é onde se opõem e desaguam as dinâmicas de concentração e de descentralização das decisões, da monopolização e da socialização das ações executivas, entre a rapidez dos resultados e a lentidão das deliberações.
Para tentar resolver essa contradição, promovemos o conceito do “Estado integral”: momento em que a sociedade se apropria progressivamente dos processos de arbitragem, superando assim a oposição entre o Estado (como máquina centralizadora das decisões) e os movimentos sociais (como máquina para descentralizar e democratizar).
Tal objetivo não é alcançável em curto espaço de tempo. Ele resulta de um processo histórico constituído de avanços e recuos, de desequilíbrios que inclinam a agulha da balança tanto para um lado quanto para o outro, colocando em questão tanto a eficácia do governo quanto a democratização das decisões. A luta (e somente ela) permitirá manter o equilíbrio entre esses dois polos durante o tempo necessário para a resolução histórica dessa contradição.
A segunda tensão criadora opõe a amplitude do processo revolucionário – que decorre da incorporação crescente de distintos grupos sociais e a busca de alianças importantes – e a necessidade de consolidar a direção indígena, camponesa, operária e popular, a qual garante a orientação política.
A hegemonia do bloco nacional-revolucionário exige a coesão das classes trabalhadoras. Ela implica igualmente influênciada sua liderança (histórica, material, pedagógica e moral) sobre o restante da população, a fim de assegurar seu apoio.
Por certo, sempre existirá um setor reticente à hegemonia indígena e popular, atuando como correia de transmissão dos poderes estrangeiros. Mas a consolidação da direção popular exige que o conjunto da sociedade considere que sua situação melhora como um todo, em razão das classes trabalhadoras dirigirem o país. Essa necessidade obriga o poder da esquerda a levar em conta uma parte das necessidades de seus adversários.
Não há nem receita nem modelo para sair dessa situação: somente o debate e a educação podem permitir que essa contradição se amplie e seja canalizada para tornar-se força motriz da dinâmica de transformação social.
Uma terceira tensão criadora do nosso processo de transformação se manifestou com muita intensidade depois de um ano. Ela aparece na relação entre o interesse geral e aquele particular, de um grupo, de um setor, ou mesmo de um indivíduo. Entre a luta social, comum e comunista, e as conquistas individuais, setoriais e privadas.
O amplo ciclo de mobilizações que têm início em 2000, com a guerra da água, começou por uma mobilização local. Mas essas mobilizações diziam respeito diretamente aos interesses do conjunto do país, ameaçado com projetos de privatização da água. Houve, mais tarde, a guerra do gás, a luta por uma Assembleia Constituinte, e a construção de uma democracia plurinacional: reivindicações levantadas de maneira setorial por indígenas e operários, que são de interesse da totalidade dos oprimidos e mesmo de toda a nação.
O surgimento dessas exigências – concebidas sobre as barricadas, durante o bloqueio de estradas, nas manifestações, e no curso das insurreições populares – permitiu construir um programa de tomada do poder capaz de mobilizar e unificar progressivamente a maioria do povo boliviano. Depois da vitória, em 2005, o governo se dedicou a implementá-lo. Primeiramente houve a Assembléia Constituinte que, pela primeira vez na história, permitiu que a Constituição política do Estado fosse redigida pelos representantes diretos de todos os setores sociais do país. Depois, promovemos a nacionalização de grandes empresas, facilitando assim a redistribuição de parte do excedente econômico através dos programas Juancinto Pinto, renta dignidad (“bolsa dignidade”) e Juana Azurduy.3
Se estudarmos o ciclo da mobilização a partir da experiência histórica, há uma curva ascendente que se estabiliza e depois declina pouco a pouco. Em sua fase ascendente ele se caracteriza pela agregação crescente dos setores sociais, a construção de um programa geral e o surgimento de uma vontade organizada e concreta de tomar o poder por parte das classes “subalternas”.
A estabilização da mobilização no ponto mais alto da curva corresponde ao momento da implementação dos primeiros objetivos universais e, ao mesmo tempo, às resistências mais fortes de grupos sociais que apóiam o poder neoliberal que se retira, o que dá origem a processos de desestabilização, tentativas de golpe de Estado, movimentos separatistas etc.4Essa fase “jacobina” do processo leva o movimento social convertido em poder do Estado a se defender, recriar novas mobilizações e novos horizontes da universalidade de sua ação.
Desde o início do segundo mandato de Morales, em 2010, conhecemos uma terceira etapa da mobilização que é declinante e se caracteriza pela tensão no seio do bloco social popular, entre os aspectos gerais e particulares. Ultrapassar essa contradição dependerá do fortalecimento da dimensão universal de nosso projeto. Se, ao contrário, o particularismo corporativista viesse a triunfar, a perda de dinamismo da revolução marcaria o ponto de início de uma restauração conservadora.
Essa tensão entre reivindicações universais e particulares no seio do povo sempre existiu. É, aliás, própria das revoluções: de sujeito fragmentado e individualizado – aspecto dominante –, o povo é progressivamente levado a se constituir enquanto instância coletiva. Mas chegamos, sem dúvida, a uma nova etapa da mobilização, como sugere o recente conflito entre as duas facções da Central Operária Boliviana (COB),5 uma ligada ao poder, e a outra não.
A partir do ano de 2006, a administração Morales aumentou a remuneração dos trabalhadores da Saúde e da Educação em 12% acima da inflação. Ao mesmo tempo, outros setores da administração pública (ministérios, por exemplo) viram seus salários congelados. Depois da posse de Morales,em 2006, os salários do vice-presidente, dos ministros e vice-ministros, foram reduzidos entre 30% e 60%. A redução foi ainda maior para o presidente. Em abril de 2011, os professores de escolas associadas à COB fizeram greve, tendo como principal reivindicação os salários. É compreensível que os funcionários da Saúde e da Educação reclamem novos aumentos, mas estes só podem ser provenientes de um crescimento da renda do país.
A política conduzida pelo presidente Morales visa, na verdade, melhorar as condições de vida dos mais carentes6e centralizar os recursos provenientes das nacionalizações e das empresas do Estado. Trata-se de criar uma base industrial nas áreas dos hidrocarbonetos, das minas, da agricultura e da eletricidade, de modo a gerar uma riqueza durável e utilizar os recursos do país para melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, tanto na cidade como no campo.
Para atender favoravelmente as reivindicações salariais dos professores, utilizaríamos os recursos obtidos com as nacionalizações para melhorar a receita apenas de alguns setores do terciário. Deixaríamos de lado o resto do país, o que significa a maioria, tornando assim, por conseqüência, mais difícil uma estratégia de industrialização (compra de máquinas ou construção de infraestrutura, por exemplo) para permitir o crescimento das riquezas que o país produz… e sua redistribuição.
Aproveitando dessa tensão no interior do bloco popular, a direita apoiou com suas mídias os manifestantes. Os dirigentes sindicais que os jornalistas em destaque desprezavam ontem por causa da sua origem social, viraram, do dia para a noite, vedetes da televisão.
No “Governo dos movimentos sociais” procuramos submeter as diferenças existentes no seio do bloco popular ao debate público. Tentamos resolver as tensões entre tendências “corporativistas” e “universais” por via democrática, encorajando antes de tudo indígenas, camponeses, trabalhadores, operários e estudantes a agitar a bandeira do interesse comum, o que não significa o esquecimento do indivíduo ou do interesse privado, mas sua existência dentro de um contexto mais amplo.
A quarta contradição criadora vem da oposição entre a necessidade de transformar nossas matérias-primas (a industrialização) e o respeito à natureza, o “bem viver”.7
Somos repreendidos por não ter feito uma “verdadeira” estatização dos recursos naturais, deixando as transnacionais se apoderarem de uma parte das riquezas do país.8Mas nos livrar de empresas estrangeiras implicaria dominar as tecnologias que elas dispõem para extração e transformação das matérias-primas. O que não é o caso. Não pode haver, então, estatização total dos recursos naturais sem industrialização.
Conseguir introduzir tal dinâmica encheria os cofres do Estado, já que bens manufaturados e produtos semiacabados comportam valor agregado superior ao das matérias-primas não transformadas que exportamos hoje. A fase de industrialização favorece o progresso tecnológico e proporciona um conjunto de conhecimentos científicos suscetíveis de constituir um trampolim para novas atividades industriais, intensas em tecnologia e mão de obra.
Não é simples avançar nesse caminho. Em parte, porque não temos experiência neste domínio, o que nos obriga a aprender caminhando. De fato, a modernização industrial exige investimentos colossais: uma usina petroquímica custa quase US$ 1 bilhão, uma usina termoelétrica entre US$ 1 bilhão e US$ 3 bilhões. Além disso, trata-se de um processo longo: três anos, ao menos, são necessários para pôr em funcionamento áreas industriais menores; cinco ou seis anos para as de tamanho médio; e cerca de dez anos para as maiores.
O governo tomou a decisão de criar indústrias nas áreas de gás, lítio,9 ferro e reservas de água. Alguns intelectuais interpretaram esse processo de construção de empresas públicas como o nascimento de um capitalismo de Estado, contrário à consolidação de uma visão “comunitarista” e comunista.10
A nossos olhos, o capitalismo de Estado dos anos 50 colocou grandes empresas a serviço de clientes particulares: burocracia, grupos patronais, grandes proprietários de terras. Em contrapartida, a utilização de excedentes gerados pela industrialização que a Bolívia promove, de agora em diante dá prioridade ao valor de uso e não ao valor de troca11: a satisfação das necessidades antes do lucro. É o caso dos serviços de base, como água e eletricidade, elevados ao status de direitos humanos e distribuídos, uma vez que foram julgados necessários, não rentáveis. É também o caso da compra de produtos agrícolas pelo Estado, que visa garantir a soberania alimentar do país e a disponibilidade das matérias-primas vendidas com preço “justo”: fixado de maneira que os produtos sejam acessíveis ao consumidor, sem mudar em função da oferta e da procura.
O excedente da industrialização oferece assim ao Estado a possibilidade de desafiar a lógica capitalista da apropriação privada. A geração de tais riquezas provoca, todavia, um conjunto de efeitos nefastos para o ambiente, a terra, as florestas, as montanhas. E quando a natureza se vê agredida, é o ser humano que sofre no fim das contas.
Toda atividade industrial comporta um custo ambiental. Mas o capitalismo subordinou as forças da natureza, abusando delas, colocando-as a serviço dos ganhos privados, sem levar em conta o fato de estar destruindo, assim, o próprio núcleo reprodutivo da natureza. Devemos evitar o destino ao qual estamos sendo condenados.
As forças produtivas do mundo rural e a ética profissional dos agricultores têm, sobre nossas relações com a natureza, um olhar oposto ao da lógica capitalista. Elas nos propõem ver a natureza como parte de um organismo vivo, total, do qual o ser humano e a sociedade fazem parte. Segundo essa visão, a utilização das capacidades produtivas naturais deve se fazer dentro de uma atitude respeitosa dessa totalidade e de sua reprodução.
“Humanizar a natureza e naturalizar o ser humano”,12dizia Karl Marx. É o sentido do nosso projeto: utilizar a ciência, a tecnologia e a indústria para produzir riquezas – como fazer, de outra maneira, para construir estradas, hospitais públicos e escolas para satisfazer as demandas de nossa sociedade? – sempre preservando a estrutura fundamental do ambiente. Para nós e para as gerações futuras.
As tensões criadoras que empurraram o bloco popular para o poder na Bolívia caracterizam as dinâmicas de transformação social. As revoluções não seriam fluxos caóticos de iniciativas coletivas e sociais, ímpetos fragmentados que se cruzam, se afrontam, se adicionam e se articulam para novamente se dividir e se recruzar? Melhor dizer que nada está definido previamente.
Cronologia
2000 – Guerra da água: mobilização dos habitantes da cidade de Cochabamba que rejeitam a privatização da distribuição de água. A “guerra da água” prossegue em 2005, com a expulsão da transnacional francesa Suez-Lyonnaise de Águas.
2003 – Guerra do gás: insurreição provocada pelo projeto de entregar vastas reservas de gás natural a um consórcio estrangeiro. A luta, que fez 67 mortos e 400 feridos, termina com a queda do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada e o abandono do projeto.
2005 – Eleição com 53% dos votos, de Evo Morales, dirigente camponês e indígena, na cabeça do Movimento ao Socialismo – Instrumento político pela soberania dos povos (MAS-IPSP ou MAS). Lançado em 1995, o MAS articula as tendências tradicionalmente antagônicas no seio da esquerda (sindicalismo marxista, indianismo e nacionalismo revolucionário).
2006 – Eleição da Assembleia Constituinte, que encerra os trabalhos em dezembro de 2007.
2008 – Revolta na região oriental de Media Luna (dirigida pela oposição). Tentativa de golpe de Estado. Morales ganha um referendo revogatório. Expulsão do embaixador norte-americano na Bolívia.
2009 – Aprovação da nova Constituição por referendo. Reeleição de Morales à presidência com 64% dos votos.