As doze máscaras dos negacionistas
A máscara, mais do que ser expressão simbólica de algo, serve para encobrir, esconder e disfarçar a identidade. Há quem não se permita viver sem uma, pois sua verdadeira face já se integrou ao caráter e aos valores de sua personalidade. Este é o caso dos negacionistas que, assim como o mimetismo dos camaleões, escolhem em cada ocasião seu novo adereço
Poderia alguém posicionar-se sobre aquilo que desconhece? Sim. Esta é a resposta simples, óbvia e infeliz dos negacionistas. Segundo eles, pouco importam os argumentos e evidências disponíveis para a avaliação crítica de um tema. O seu jogo consiste, como observamos quase que cotidianamente, na batalha de falácias lançadas sobre seus adversários. Por isso, mais do que atacarem a pergunta e construírem um raciocínio minimamente coerente, sua postura procura simplesmente combater razões alheias ao conteúdo proposto. Faltam-lhe, portanto, virtudes morais e bom senso para reconhecer que suas verberações (e mugidos) estão diametralmente opostos àquilo que foi construído racionalmente pelas sociedades ao longo da história humana. Assim, para esquivar-se do processo de comunicação pública, dos espaços políticos e da esfera de responsabilização cível e criminal, os negacionistas passaram a fazer uso de máscaras.
A palavra máscara, como sabemos, possui uma etimologia que é autoexplicativa: do latim, mascus ou masca, que significa “fantasmas”, ou seja, sua utilização permitia que o corpo extravasasse seus demônios e monstros; no árabe, provém de maskharah, que remonta à ideia de “palhaço” ou “homem disfarçado”.
Deste modo, parece natural que, ao longo das tradições culturais, as máscaras serviram não apenas de adorno ou aparato de proteção ao rosto. Elas foram empregadas para esconder a fisionomia do seu portador e, num sentido mais pedagógico, dar-lhe características que a natureza não lhe ofereceu. A máscara, portanto, mais do que ser expressão simbólica de algo, serve para encobrir, esconder e disfarçar a identidade ou, em outras palavras, a fragilidade deste eu que prefere o anonimato e a solidão de suas ilusões. Dos gregos que utilizavam folhas de parreiras em seus rostos às comunidades incas do Peru, as máscaras estiveram inseparáveis de sua ficção. Há, por exemplo, quem não se permita viver sem uma, pois sua verdadeira face – mesmo que ofuscante e, às vezes, comovente – já se integrou ao caráter e aos valores de sua personalidade. Este é o caso dos negacionistas que, assim como o mimetismo dos camaleões, escolhem em cada ocasião seu novo adereço.
A máscara da ignorância: caracterizada pela ausência de conhecimento, esta máscara permite que o seu portador possa se expressar sobre qualquer tema, assunto ou momento. Para isso, não lhe exigirá, naturalmente, qualquer predisposição ou especialidade para poder argumentar. Serve particularmente para sujeitos generalistas que, após embriagados de soberba, podem aventurar-se na livre expressão. Aliás, um dos pretextos para seu uso é que ela pode ser usada rapidamente em todas as ocasiões. A máscara da ignorância permite, em último caso, introduzir aos outros sujeitos a ilusão de replicar o seu comportamento. Não requer nenhum treinamento para saber utilizá-la, pois adapta-se facilmente em todos os públicos.
A máscara do moralismo: quem usa este adereço consegue facilmente radicalizar e cartografar os valores. Assim, permite ao seu usuário manter-se irredutivelmente ligado à polarização. Nestes casos, é possível definir a validade comportamental (ética, cultural, sexual, política etc.) dos outros sem tocar na “normalidade” de suas próprias crenças. Assim como a máscara da ignorância, ela permite que seus usuários possam valorar, reprovar e sancionar aquilo que não condiz com seus interesses. Por fim, seu uso retira do portador o senso histórico e a capacidade intelectual para compreender uma sociedade pluralista.
A máscara da pseudociência: negacionistas, por natureza, optam pelo obscurantismo de suas crenças e apoiam suas certezas em dados não científicos. Deste modo, a razão de fazer uso da pseudociência é creditar ao dogmatismo que lhe é próprio o instrumento para descaracterizar o trabalho sistemático do método e da comunidade científica. Neste contexto, a máscara da pseudociência permite que o trabalho dos demônios interiores possa assombrar o trabalho investigativo dos cientistas e pesquisadores.
A máscara das fake news: esta máscara oportuniza a desinformação, a disseminação de notícias falsas e conteúdo calcado no apelo sensacionalista. Através dela, seus usuários podem regozijar-se com o fato de que a mentira é a moeda da comunicação. Embora tenha sido utilizada com mais frequência nas últimas décadas, a máscara das fake News, ao contrário de algumas outras, utiliza o sombreamento estético das redes virtuais para atingir o domínio de grandes grupos populacionais.
A máscara do anonimato: quem já, por alguma razão, não procurou no anonimato a segurança diante da falta de coragem? Pois é, a máscara do anonimato permite que seu usuário esteja presente sem poder ser identificado pelos seus interlocutores. Aliás, é a forma mais segura para aqueles que, diante da ausência de provas, buscam infiltrar-se, propagar seus interesses e não ser reconhecido. A máscara do anonimato permite, por um lado, que bandidos sejam heróis e, por outro, que sujeitos imorais ataquem pessoas fragilizadas.
A máscara comunista: esta máscara é altamente volátil. Ela serve como adorno que pode, em toda e qualquer ocasião, ser colocada na face de seus adversários. É bem verdade que esta máscara também possui um significado extremamente diverso, permitindo que um rol de questões possa colonizar o ambiente público e aterrorizá-lo com a ideia de que, através dela, seja possível eliminar o capital privado e consumir a liberdade de expressão. No Brasil, por exemplo, foi item gratuito durante a ditadura militar.
A máscara do autoritarismo: não seria possível disseminar o medo sem que a máscara do autoritarismo pudesse infiltrar no público o sentimento e a sensação de impotência. Geralmente, o autoritarismo consegue impor o domínio da força física sobre a possibilidade de argumentação racional. Através desta máscara, seu usuário impõe a violência como forma de convivência pacífica. Em ambientes pouco democráticos, ou onde a democracia se encontra sob risco, geralmente é utilizada na organização político-administrativa dos governos.
A máscara do liberalismo econômico: é distribuída gratuitamente em locais onde o espírito econômico desigual quer instalar-se. Ela produz a sensação de bem-estar ao seu usuário na medida em que consegue propagar em seu interior os sabores da satisfação pessoal diante da livre-concorrência do mercado. Fantasiosamente, torna seu portador crente de que a regulação do mercado e a distribuição de renda servem para beneficiar sujeitos sem qualquer mérito. Esta máscara, com certo estilo próprio, permite conviver facilmente com os marginalizados, sofridos, excluídos, fragilizados ou carentes e sedentos de água e pão.
A máscara da militarização do Estado: no intuito de confundir o espaço político-social do ambiente formado pelas forças de segurança, a máscara da militarização, associada com a destreza das armas, permite vigiar os corpos e doutrinar as almas. Serve para ilustrar, por fim, ambientes extremamente vigiados que se organizam sob a hipótese de serem mais saudáveis quando hierarquizados. São os seus próprios usuários que definem quem pode utilizá-la ou quando deve ser retirada.
A máscara do doutrinamento religioso: uma das máscaras mais antigas das sociedades humanas, o doutrinamento religioso permite confundir a fé com a cegueira irracional do legalismo. Assim, seus usuários facilmente conseguem trocar o bom senso pelo valor da norma sagrada. A máscara do doutrinamento religioso é caracterizada por várias cores, estilos, formas e tecidos. Na maioria delas, prepondera o ar metafísico como forma de reduzir o valor do próprio corpo. Quando utilizada incorretamente, ela dogmatiza a opinião daqueles que lhe são semelhantes e relativiza o valor ecumênico da pluralidade. Tem se tornado mais evidente em espaços políticos ao invés daqueles sagrados. É usada como forma de perpetuar rituais e ideologias.
A máscara da docilização dos afetos: produzida em tempos que não são os nossos, a máscara da docilização dos afetos condiciona os sentimentos de afeição dos outros à vigilância do usuário. Permite reprimir a liberdade sexual, cultural e psicológica. Instaura rapidamente ao seu redor a timidez e o castigo como formas de coerção social. Em movimentos extremistas e radicais, serve para salvaguardar o distante passado e combater aquilo que denomina de “anarquismo moral”. Além disso, ela permite encenar com mais facilidade o distanciamento humano como forma de compelir os desejos interiores. Os afetos tornam-se momentâneos, vazios, frios e amargos.
A máscara do culto à tortura, ao horror e aos castigos físicos: o prazer com a espetacularização do sofrimento dos outros pode ser vislumbrado na expressão desta máscara. Por isso, ela é cuidadosamente escolhida em ocasiões triunfantes, onde a dor, em seu significado mais extenso e profundo, permite excitar o banquete festivo dos algozes. Sua expressão sangrenta, por fim, permite que seus usuários obtenham prazer diante da mutilação dos corpos e do sensacionalismo que isto produz no ambiente.
Negacionistas, como se pode observar, não são sujeitos nutridos por características extra-humanas. Sua arquitetura genética e cultural não está à margem da história civilizatória. Ao contrário, partilham do mesmo ambiente e se reproduzem com a mesma velocidade. Entretanto, inseguros do espaço que ocupam na cadeia predatória, optam pelas máscaras como forma de conduzir sua má-fé. Não são ingênuos ou inofensivos pois, em um lapso de invigilância, conseguem seu objetivo: cambalear a racionalidade, mutilar a esperança e matar a pluralidade.
Léo Peruzzo Júnior é pós-doutor em Filosofia pela Università Ca´ Foscari (Veneza) e professor da PUCPR / FAE / FAVI