As duas Marrakech
No contexto das revoltas árabes, o referendo de 1º de julho sobre a Constituição marroquina permitiu ao rei Mohammed VI exibir ao menos uma ilusão de democracia. Mas um olhar sobre Marrakech, cidade transformada pelo jet-set parisiense em uma nova Saint-Tropez, ilustra de forma crua as desigualdades que rondam MarrocosAllan Popelard e Paul Vannier
A quinze quilômetros de estrada na direção sul de Marrakech, Tameslohte se destaca contra uma paisagem árida. Como todos os vilarejos situados na periferia da capital do turismo marroquino, alcançou um rápido crescimento na última década. A população quase triplicou. Em todos os lugares, casas novas ou em construção, a cor cinza dos tijolos de bloco e do cimento fresco. “Antes, havia apenas alguns moinhos de azeite e oficinas de tecelagem. Tameslohte era uma aldeia de lavradores”, lembra Ahmed, instrutor agrícola.
Muitos foram os que se instalaram ali, atraídos pelos empregos de Marrakech. Originárias das áreas rurais do Sul, mas também das cidades do Norte, como Fez ou Meknès, essas pessoas trabalham em hotéis ou na construção civil. O êxodo rural e a postura de relegar os mais pobres a um segundo plano urbanizaram as áreas rurais. “Agora, Marrakech é como a Europa”, constata Marwan, empregado de um café na entrada de Tameslohte. “Aluguel, comida: tudo se tornou muito caro. Eu morava em Medina, mas me mudei para cá porque não tinha mais condições para pagar o aluguel. Em Tameslohte, o preço da moradia permanece cerca de 30% inferior ao do centro da cidade.”
Entre Marrakech e Tameslohte, os canteiros de obras se distribuem por cerca de 10 quilômetros. Guindastes e caçambas preparam o desenvolvimento turístico do espaço. Um conjunto de painéis indica a localização de futuros complexos residenciais. O Domaine Royal Palm Marrakech vai entregar suas primeiras moradias no final do ano. Organizado em torno de um campo de golfe, tendo em seu centro um hotel de luxo, esse condomínio fechado de 230 hectares, rodeado por muros e treliças de 3 metros de altura, sob a supervisão de vigias e câmeras de segurança, “foi projetado em torno de dois princípios básicos: a consciência ecológica e a sofisticação concebida como estilo de vida”, gaba-se o folheto. Para aqueles que não teriam condições de pagar as villasdo Domaine Royal, restam, numa proposta mais modesta, as casas que aparecem nos encartes publicitários dos jornais marroquinos e nos cartazes do metrô de Paris. O desenvolvimento nos arredores de Marrakech dá origem a uma periferia turística, cinturão residencial e de lazer, reservado aos que vão passar férias ali e aos proprietários de uma segunda residência. Visitantes europeus ficam no centro ou em enclaves nas proximidades, trabalhadores marroquinos são forçados ao êxodo: a indústria do lazer erigiu a segregação como fator estruturante da organização do espaço.
As dinâmicas da segregação em Marrakech resultam ao mesmo tempo do crescimento das desigualdades no país e de fatores exógenos. Hospedados em hotéis de luxo ou em palácios reais colocados à sua disposição para descanso em suas segundas residências, estrelas do showbiz, magnatas da mídia, personalidades políticas e homens de negócio fizeram de Marrakech um dos lugares de destaque da oligarquia francesa. Em junho de 1997, Bernard-Henri Lévy e Arielle Dombasle compravam de Alain Delon e Mireille Darc o Palácio de la Zahia. Em outubro de 2001, a poucos metros dali, entre o novo palácio real de Mohammed VI e o hotel de luxo La Mamounia, Anne Sinclair e Dominique Strauss-Kahn adquiriam também eles um luxuoso riad.1Esses dois exemplos, longe de serem anedóticos, evidenciam o espírito cooperativo e mimético que contribui para emparelhar os membros da alta sociedade nos mesmos espaços urbanos.
Na Cidade Vermelha, apelido dado a Marrakech por causa de suas paredes ocre, o “coletivismo prático”2 da classe dominante assume uma coloração particular. O escritor e editor Jean-Paul Enthoven descreve assim uma de suas estadas na casa de um amigo: “Imediatamente me senti em casa nesse palácio onde o sol se insinuava através dos pórticos e cascatas de trepadeiras. Eu era protegido por seus adornos de cerâmica, suas gelosias, seus tetos abobadados. Livros, chifres de gazela ou bebidas deliciosas jorravam no exato momento em que era agradável desfrutá-los. E em toda parte, candelabros, vidrarias turcas e persas e lustres provenientes de dinastias de gosto infalível acrescentavam a esse teatro sua magia inanimada”.3
A três horas de Paris
“Marrakech sempre foi um sonho para os europeus. Era a África, o mistério, o Oriente”, comenta Elie Mouyal, arquiteto das propriedades de Dominique Strauss-Kahn e do bilionário belga Albert Frère na cidade. Atualmente a três horas de avião de Paris, a cidade ainda oferece o charme oriental – mundo sensorial e erótico dos pintores e romancistas dos séculos XIX e XX – que formava o contraponto imaginário da conquista militar. Esse cenário de fantasia permite colocar em cena o hedonismo distinto dos membros da classe dominante. Desempregados, socialmente liberados dos rigores ordinários do trabalho produtivo, esses “rebanhos cosmopolitas que transumem na ociosidade”4 têm todas as características da “classe de lazer”, descrita pelo sociólogo norte-americano Thorstein Veblen. Nesta última, o “sentimento de indignidade do trabalho produtivo” e “a capacidade financeira para se permitir uma vida de ociosidade” levam ao “consumo improdutivo do tempo”.5
A tradição aristocrática de Marrakech data dos primeiros anos do protetorado francês. A construção de La Mamounia em 1921 marcou o início da especialização da cidade no turismo de luxo. Enquanto as autoridades coloniais decidiam direcionar a maior parte dos fluxos turísticos para as cidades costeiras (Casablanca, Rabat, Agadir), aí concentrando a maior parte da infraestrutura e das instalações turísticas, Hubert Lyautey, um oficial francês e primeiro residente geral no Marrocos, tomou a decisão de reservar Marrakech para a elite colonial.6
A sociedade burguesa, capaz de se deslocar na superfície do globo no ritmo das estações do ano, fez da Cidade Vermelha uma de suas escalas favoritas. Longe de se findar com o advento da independência do Marrocos, em 1956, a política inaugurada por Lyautey permanece sendo a do governo marroquino e dos investidores privados. Hotéis de categorias mais elevadas estão muito presentes na cidade, os quatro e cinco estrelas são responsáveis por metade da capacidade de hospedagem.7
As autoridades marroquinas souberam fazer da concentração de celebridades na cidade um ponto de venda no cenário do turismo internacional, permitindo diferenciar Marrakech dos destinos concorrentes da bacia do Mediterrâneo. Algumas iniciativas do reino, como a criação em 2001 do Festival Internacional de Cinema de Marrakech, que a cada ano exibe numerosas personalidades em seu júri, contribuíram para fazer da cidade um destino da moda.
Resultado: a frequência de pessoas na cidade quase dobrou em dez anos, passando de cerca de um milhão de visitantes em 2001 para 1,8 milhão em 2010. Marrakech tinha 25 hotéis em 1973; agora há 152. Hamid Bentahar, presidente do Conselho Regional do Turismo, estima que a cidade detém 30% da capacidade de hospedagem do reino.
Ao mesmo tempo que promoveu seu apelo turístico, a concentração de ricos na cidade resolveu a contradição interna em relação à mercantilização dos bens culturais. Como sugere o geógrafo britânico David Harvey, o valor de mercado de bens culturais reside, de fato, em sua singularidade.8 O turismo não teria nenhuma razão de ser se em cada lugar não houvesse um caráter “típico” que desperta nos turistas o desejo de descobrir. Ora, o desenvolvimento das áreas do turismo tende a dissolver o que há de singular em cada uma delas, reproduzindo um conjunto padronizado de motivos geográficos – cadeias hoteleiras, locais para comer – para banalizar tanto os lugares como as práticas.
Para resolver essa contradição é necessário criar “uma arte da renda”, administrando a demanda graças aos instrumentos do marketing territorial. No caso de Marrakech, empreendedores urbanos têm destacado a variedade de ambientes naturais (a proximidade com o deserto do Saara e montanhas Atlas), o patrimônio histórico (Medina e a praça Jemaa-El-Fna, declarada patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco),9 mas também a presença no seu interior das classes abastadas. Os cronistas dos tabloides sensacionalistas por sua vez não deixaram de ver na cidade “a nova Saint-Tropez marroquina”.10
O jornalismo econômico contribuiu largamente para fazer nascer nas classes médias o fascínio por um estilo de vida aristocrático que parecia acessível a todos. Em 1998, a revista televisiva “Capital”, transmitida pelo canal M6, dedicou um programa aos riadsde Medina; ele promovia a estrutura e o modo de vida palaciano dos europeus que tinham comprado essas casas a preços ridiculamente baixos. Seu sucesso provocou uma corrida de investidores que transformou profundamente Medina.
Na década de 1960, empobrecida pela partida das elites da cidade, que foram se estabelecer no bairro de Guéliz para ocupar as casas dos colonos, Medina tornou-se a área residencial das pessoas mais velhas, da burguesia decadente, de artesãos e camponeses que foram para a cidade na esperança de encontrar trabalho. Gradualmente, o núcleo histórico perdia assim sua centralidade. Os profissionais liberais abandonaram suas ruas sinuosas – assim como o consulado francês.
No final dos anos 90, no entanto, Medina se tornou novamente a aposta das estratégias imobiliárias dos europeus. Orientados para a alta em virtude da especulação, o preço dos imóveis explodiu. “Uma casa de tamanho médio adquirida e reformada por 80 mil euros em 2003-2004 era revendida por 200 mil euros em 2006”, aponta Valérie Baradat, agente imobiliária instalada há dez anos em Marrakech.
Uma geografia polarizada
Gradualmente, a geografia social de Medina foi polarizada. Ao redor da praça central da cidade, da qual algumas ruas são ocupadas em mais de 50% por europeus, a frente da gentrificação11 ganha terreno em favor das operações de reabilitação e de valorização do patrimônio. Um fosso separa esses territórios aburguesados e o que resta dos enclaves empobrecidos. Antigo gueto judeu, o bairro do Mellah acolhe desde os anos 1970 a população sem recursos das cidades e do campo. Um desfiar de ruelas de terra batida, habitat degradado: esse bairro superpovoado, lugar de muita prostituição, é um dos mais pobres da cidade. A densidade populacional é três vezes maior do que no resto de Medina, e cerca de três quartos das famílias vivem com menos de 1 mil dirhams (cerca de R$ 200) por mês.12
Da mesma forma, as funções de Medina estão em processo de dissociação. Atrás da porta El Khemis, os bairros de Sidi Ghalem e Hart es Soura incluem oficinas de marcenaria, solda e serralheria. No mercado El Khemis, nem chinelos nem quinquilharias: ali só aparecem os trabalhadores da construção, para se abastecerem de cimento e placas de madeira, e os que vêm fuçar na bagunça dos catadores. Devolvidos ao turismo, os acessos da praça Jemaa-El-Fna contrastam com os contornos produtivos da cidade pré-colonial.
Muitos dos novos proprietários transformaram sua casa em quartos, alugados por semana para turistas. A cidade velha teria hoje quinhentos quartos. Maurice de l’Arbre, de Mônaco, “comprou seu primeiroriadhá cinco ou seis anos. E depois outras pequenas casas para fazer uma verdadeira casa de hóspedes de charme”. Aos poucos, adquiriu quase toda uma ilhota. O esquema funciona, especialmente, porque aqui “se fornece um châteaude repouso ao preço de um Etap-Hotel”.
Hassan Korapi, tesoureiro em Marrakech da Confederação Democrática do Trabalho (CDT), um dos principais sindicatos do país, adianta algumas causas. “Noventa por cento dos empregados no setor de turismo são pagos tendo por base o salário mínimo, ou seja, 2.200 dirhams [cerca de R$ 430] por mês. Além disso, é muito difícil saber em que condições e durante quantas horas por dia trabalham as pessoas empregadas nas casas de hóspedes”. O trabalho ilegal é comum. Nos grandes hotéis, a situação não é melhor. “Os empregadores nem sempre aplicam o Código Trabalhista e lutam contra qualquer presença do sindicato. Em 2007, instalamos uma seção no Club Med Marrakech. Nos meses que se seguiram, todos os nossos membros foram deslocados para o Senegal, para o Egito ou, na melhor das hipóteses, para Tétouan, a mais de 600 quilômetros daqui!”
“Em Marrakech é particularmente difícil organizar manifestações porque a cidade é a vitrine do Marrocos”, salienta o responsável. A indústria do turismo de fato exige a pacificação do espaço – o colapso do turismo após as revoluções da Tunísia e do Egito está aí para lembrar isso. Para todos, a preservação da ordem urbana parece uma prioridade. Em uma cidade onde um terço da força de trabalho depende direta ou indiretamente do turismo, são muitos os moradores que temem ver sua fonte de renda ameaçada. A dependência dos assalariados constitui um meio temível de pressão, o qual o poder não hesitou em usar, contratando rapazes para semear a desordem em uma marcha de protesto, em 20 de fevereiro de 2011.
Na praça Jemaa-El-Fna, o balé da exploração salarial se desenvolve do amanhecer ao anoitecer. Da mesma maneira, a massa dos pequenos empregados das lojas da cidade, forçados a usar mil vezes por dia as mesmas artimanhas e as mesmas seduções de vendas, lembra os call centers. Nesse meio urbano sobrecarregado, exasperado de barulhentos comerciantes, a exaustão atinge até as cobras, que morrem – dizem – por terem de seguir durante todo o dia as flautas teimosas dos encantadores.
É no entanto nessa cidade alienada pelo poder expropriador do capital e das fantasias que os moradores tentaram organizar um movimento revolucionário. Ao interromper o curso normal das existências, a irrupção democrática deixou aflorar o povo, ali onde o turismo o mantinha idêntico à sua representação no decoro de seus espaços folclorizados. Em favor do movimento de 20 de fevereiro,13 a cidade surgiu não como um espaço turístico, mas como a base territorial de uma comunidade política.
Allan Popelard é geógrafo na Universidade Paris-VIII e Paul Vannier é escritor.