As eleições e o banzo democrático
Diferentemente do que aconteceu em 2013, 2014, 2015 e 2016, quando as ruas foram ocupadas por manifestações das mais diferentes matizes ideológicas, desta vez, com uma situação política institucional e social muito mais dramática, as ruas se encontram vazias
Seis de julho de 2018, o Brasil de Neymar, Tite, Coutinho, Willian e cia. saía de campo derrotado depois do jogo de quartas de final da Copa do Mundo contra a Bélgica. A dinâmica social que envolve um jogo de futebol é dinamizada pelo clima e pelo sentimento nacionalista que o campeonato mundial cria. Em 90 minutos, as bandeiras nas ruas e as manifestações de apoio ao time verde e amarelo deram lugar a uma resignação, a um banzo coletivo que retornava depois de quatro anos do 7 a 1 contra a Alemanha. Voltamos à vida real, que nem de longe se assemelha ao mundo milionário do futebol profissional representado na Copa, em particular no selecionado nacional, composto de jogadores mais europeus do que brasileiros e por uma CBF que representa o que há de mais atrasado no país. No mesmo mundo coexistem o atraso de José Maria Marin e do Coronel Antonio Nunes com o moderno mundo globalizado de estrelas do esporte (e dos negócios), como Neymar.
Pois bem, após o fracasso na busca pelo hexacampeonato mundial, as atenções no Brasil voltam ao tema mais importante de 2018, as eleições de outubro. A relação entre a Copa e o votação parece pertinente pelos paralelos que são possíveis traçar através da evolução dos acontecimentos no país nos últimos quatro anos. Em 2014, o Brasil estava em uma dinâmica política marcada pelas manifestações de 2013 e pelas eleições que deram a vitória a Dilma Rousseff. A narrativa presente em muitos veículos de mídia era de que o “gigante havia acordado” e que a democracia brasileira, quase de forma mágica, havia finalmente transposto as instituições e as abstrações teóricas para chegar até a materialidade da vida das pessoas. Afinal, desde 2013 as ruas eram ocupadas por manifestações que pediam mais investimentos públicos em saúde, transporte, educação, segurança e combate à corrupção.
Quatro anos depois, apesar da derrota na Copa, a situação é bem diferente. Nesse período, a democracia brasileira foi seriamente atacada, se não interrompida. Primeiro foi o afastamento de forma contestável (para não dizer ilegítima) da presidenta eleita; depois a posse do vice Michel Temer, que, juntamente com setores da oposição derrotados nas eleições de 2014, conspirou contra a presidenta; e, ainda, a adoção do plano de governo dos novos donos do poder, a chamada “Ponte para o Futuro”, que mais parece uma passagem para o passado. Assistimos a uma série de acusações de corrupção que vão desde malas cheias de dinheiro até ameaças de assassinato e encontros secretos nos porões do Palácio da Alvorada, detenções de empresários antes vistos como a vanguarda da burguesia nacional, a prisão do líder das pesquisas para presidente e político mais popular do Brasil, uma greve dos caminhoneiros que parou o país, intervenções militares, além de uma crise social que coloca mais de 11 milhões de brasileiros fora do mercado de trabalho, arrastando consigo a miséria e a fome.
Todo esse contexto, no entanto, parece gerar, assim como a derrota na Copa, uma resignação, um banzo social. Diferentemente do que aconteceu em 2013, 2014, 2015 e 2016, quando as ruas foram ocupadas por manifestações das mais diferentes matizes ideológicas, desta vez, com uma situação política institucional e social muito mais dramática, as ruas se encontram vazias, salvo os valentes movimentos sociais que nunca pararam de se manifestar e por lutar por direitos sociais e humanos. A questão que fica no ar é por quê? Afinal de contas, por que um governo publicamente corrupto, que aprovou sem legitimidade medidas que impactam diretamente a vida dos brasileiros, como a reforma trabalhista e o teto dos gastos, se sustenta, e mais, por que um sistema político que claramente não funciona, que é totalmente deslocado da sociedade não sofre questionamento pesado, ainda mais em ano eleitoral? Por que a democracia, e a forma como esta se efetiva não é discutida e questionada pelos principais nomes políticos? Ou podemos fazer a pergunta de outra forma: por que, quando deveríamos estar pensando em alargar a democracia, o líder nas pesquisas presidenciais (no cenário sem Lula) é um candidato publicamente autoritário?
A ideia é pensar a correlação de forças que está em jogo atualmente, buscar compreender um pouco melhor como a luta de classes se coloca na realidade concreta brasileira, um país de desenvolvimento capitalista periférico, que engendra relações sociais particulares que perpassam o sistema político. Dessa forma, se concordamos que a gênese das questões levantadas está na forma como o capitalismo se efetivou no país, me parece que a interrupção do desenvolvimentismo petista (ou do sonho roosevelitiano, como coloca André Singer),[i] que dá início ao período em que estamos, pode ser encontrada exatamente em seu mérito, ou seja, na diminuição da pobreza e da desigualdade.
O que parece uma contradição, dentro das condições históricas engendradas pelo capitalismo periférico brasileiro, encontra sua lógica dentro do sistema de acumulação e da modernização conservadora que baliza o desenvolvimento capitalista no país. Assim, uma das particularidades que marcam a história brasileira e que ajuda a explicar o labirinto em que nos encontramos é aquilo que Francisco de Oliveira[ii] avalia como a existência de uma revolução produtiva sem revolução burguesa, fato que criou uma dinâmica social própria, que deve ser caracterizada pela própria constituição de classes no país, marcada por estrutura mercantil e escravagista vinculada ao capitalismo central, o qual perdurou por trezentos anos e que criou uma divisão particular entre trabalhadores que estavam à margem do centro produtivo, formado por senhores e escravos. Esses trabalhadores livres, não estavam necessariamente inseridos na dinâmica produtiva capitalista, não se constituíam como classe da mesma forma que aconteceu na Europa, formando uma reserva de mão de obra essencial para a existência dos estratos modernos da sociedade e da extração da mais valia da força de trabalho. Tal contradição, a necessidade do atraso para a existência do moderno, é o cerne da própria contradição criada pelos governos petistas: ao diminuir o número de pobres, criaram-se empecilhos para a própria reprodução do capitalismo brasileiro.
Esse movimento dialético entre o atraso e o moderno, longamente trabalhado por Oliveira, acaba por crivar bases na dinâmica das forças sociais e nas instituições políticas, uma vez que foi essa dicotomia que criou e tipificou as estruturas do Estado brasileiro. Assim, se entende, mas não se justifica, a prática fisiologista de alianças dentro do sistema político e partidário nacional, já que “não se governa o Brasil sem o concurso do atraso – não por razões parlamentares, mas porque a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora e não avalizaria avanços programáticos mais radicais”.[iii] Assim, as pressões impostas pelo avanço do capitalismo, cada vez mais globalizado, sobre as forças produtivas eram resolvidas pelas elites locais com a promoção revolucionária das forças produtivas sem, no entanto, a adoção de formas formais de civilidade inerentes à ideologia democrática no centro do capitalismo, criando assim uma perspectiva específica da democracia liberal, correspondente à forma do capitalismo na periferia.
Essas condições acabam por criar uma série de empecilhos ao desenvolvimento capitalista que são resolvidos pela elite por meio da modernização conservadora brasileira, que tende a mudar a forma, mas não o conteúdo das questões para atender às demandas da circulação e da reprodução do capital, permitindo, mais uma vez, a convivência entre o atraso e o moderno. Na formação capitalista brasileira, o atraso é condição para a existência do moderno. Exemplos nesse sentido são abundantes, basta observar o processo da abolição da escravidão ou o golpe republicano para perceber que esses elementos coexistem, gerando uma dependência mútua entre eles.
Assim, dentro dessas particularidades, ao menos desde a redemocratização e da ditadura militar, a democracia passou a ser o objetivo a ser alcançado pelas forças políticas e sociais no país. No âmbito internacional, o esgotamento da Guerra Fria retirava o apoio estadunidense aos militares e da sanha opressiva contra os comunistas e “subversivos” em geral, além da necessidade de alargar a fronteira para a especulação financeira típica do neoliberalismo e do Consenso de Washington. No âmbito interno, uma sociedade civil organizada se colocava contra a crise econômica, a repressão e a falta de liberdades existentes na ditadura. A conjugação desses fatores levou ao acordo que tem como pedra fundamental a Constituição de 1988 e a aliança entre os antigos ditadores e os novos “donos do poder” – ou o antigo e o moderno – para uma transição pacífica e pactuada, gerando um ambiente favorável para a instalação da democracia liberal.
No entanto, apesar do caráter social da Constituição de 1988, as discussões acerca da democracia passaram a ser cada vez mais “institucionalistas” e menos sociais, quer dizer, as teorias sobre a qualidade democrática passaram a se vincular mais a aspectos eleitorais, partidários e institucionais do que em relação a participação efetiva da sociedade no aspecto político e público. Nas palavras de Gabriel E. Vitullo:
“Não há como compactuar uma concepção de democracia que implique somente um mecanismo de redefinção institucional e de procedimento – máxime em continentes como o latino-americano – sem levar em consideração fatores econômicos, sociais e culturais. […] A democracia é mais do que um jogo formal, não é uma partida a ser disputada […]”[iv]
Aqui a discussão passa a ser entre o entendimento e a efetivação da democracia, para depois, conseguirmos criar bases comuns – ou não – para discutir o conceito e a prática. Como bem coloca Gabriel Vitullo, boa parte das teorias democráticas opera uma separação, onde, em um primeiro momento, a democracia deve consolidar instituições representativas liberais fortes para, em um segundo momento, tentar resolver os problemas e desafios de caráter social e econômico. Tal enfoque institucionalista acaba por criar empecilhos para a realização da própria democracia, já que, primeiro se cria “uma política que desvaloriza sistematicamente a dimensão participativa da democracia, para depois, consumado esse quadro, justificar essa desvalorização à apatia, ao desinteresse e à desinformação do cidadão médio”,[v] criando uma perspectiva extremamente elitista de sistema democrático.
O que se coloca é que esse entendimento de democracia acaba por desvalorizar o conceito de cidadania, operando dentro de uma lógica controlada por imperativos econômicos e de mercado que, teoricamente e formalmente, representam o poder popular, mas que na prática atuam para controlar e limitar seu poder, ou seja, afastar os setores populares das decisões públicas, apresentando um esvaziamento da ideia de soberania popular. Tal intervenção político-ideológica apresenta uma despolitização das próprias classes e da própria democracia, que esvaziada de conteúdo social não se efetiva como popular, operando uma separação teórica entre o econômico e o político, típico do modo de produção capitalista. Tal separação permite que a extração de valor do trabalho se dê sem a necessidade de meios “extraeconômicos”, como coloca a cientista política e historiadora Ellen Wood,[vi] onde não apenas a circulação de mercadoria, mas também a vida de apropriadores e expropriados são regidas por imperativos econômicos e de mercado. Assim, tal separação permite que, na prática, os sistemas políticos, por mais que apresentem uma aparência social, atuem no sentido de garantir os interesses de uma pequena minoria de proprietários em oposição à maioria da população trabalhadora.
Assim, para tais elites não seria mais necessário se colocar frontalmente contra o governo popular, já que, utilizando-se de sua hegemonia de classe, conseguiram naturalizar a ideia de uma democracia restrita ao aspecto político, afastando-a do aspecto econômico e da esfera produtiva, de modo que a igualdade política e jurídica pouco influenciasse nas relações de desigualdade, de exploração e de dominação estabelecidas fora da esfera direta do político-institucional.
Assim, é necessário entender a divisão entre o econômico e o político, ou seja, as relações que existem entre Estado, classe e trabalho, em um país como o Brasil, que apresenta relações sociais específicas de um capitalismo periférico, que ocupa uma posição particular na circulação e reprodução de mercadorias e de capitais de um capitalismo globalizado que atende pelos imperativos neoliberais que tende a enfraquecer ainda mais a esfera pública, privatizando cada espaço da vida dos indivíduos através de um discurso anti-Estado, meritocrático e liberalizante que não tem como objetivo alterar as relações existentes, mas sim radicalizá-las em consonância com as especificidades do capitalismo brasileiro. Mais uma vez, para a existência do moderno, entendido pelos ideólogos mainstream da grande mídia com a criação de um mercado mundial e desregulado, tipicamente neoliberal, é necessário o atraso, entendido por estes como a pobreza, a miséria e a desigualdade, por isso o apoio ao mesmo tempo entusiasmado pelo afastamento da presidenta Dilma em 2016 e o meio envergonhado às reformas defendidas por um governo ilegítimo.
Se não levarmos em consideração tais aspectos, alargando as discussões sobre o processo eleitoral e sobre a democracia para fronteiras sociais e de produção, sem superar a fantasmagórica separação entre o econômico e o político, sem politizar a luta de classes e sem entender o Estado como um espaço de tensões entre interesse de classes e de disputas políticas é certo que daqui a quatro anos, em 2022, vamos estar novamente experimentando o banzo que nos acometeu após a derrota na Copa do Mundo, tanto em função de uma possível derrota no campeonato mundial como por, mais uma vez, sentirmos que a democracia não consegue abarcar as intenções e desejos da sociedade brasileira, sendo entendida, mais uma vez, como um jogo entre partidos políticos e de elites apartadas da sociedade.
*Tiago Santos Salgado é mestre e doutorando em História pela PUC-SP e membro do Centro de Estudos de História da América Latina (Cehal).