As estruturas políticas e o impeachment
Para além da associação com a corrupção estrutural, talvez o principal equívoco do PT tenha sido tentar colocar em prática um Estado de bem-estar social sem realizar as reformas que permitiriam custeá-lo e viabilizá-loLeandro Gavião e Henrique Paiva
O episódio do impeachment de Dilma Rousseff pode ser interpretado de acordo com diferentes vieses. Na imprensa tradicional predominou a velha narrativa superficial centrada na dinâmica dos acontecimentos do jogo político diário, na qual a deficiência explicativa vem acompanhada do excesso de informações.
Sempre é possível buscar análises mais detalhadas e profundas, especialmente quando se trata de um fato traumático para a vida democrática do país. Nesse sentido, este artigo não tem a pretensão de esgotar o tema do processo de impedimento de Dilma Rousseff, mas de interpretá-lo por meio de um exame da estrutura política brasileira e de um breve balanço dos treze anos de governo do PT.
Presidencialismo de coalizão e crise política
A Nova República ainda estava nascendo quando Sérgio Abranches criou o conceito de presidencialismo de coalizão.1 Definindo-o como o “dilema institucional do Brasil”, o autor explica que se trata de um regime no qual o líder do Executivo “semi-imperial” é eleito diretamente pelos cidadãos, de forma independente da composição de um Legislativo, que apresenta uma configuração fragmentária quanto ao número de partidos, obrigando o presidente a formar coalizões e costurar alianças para lograr governabilidade.
O processo de redemocratização veio acompanhado de uma legislação eleitoral excessivamente permissiva quanto aos critérios de acesso dos partidos ao Congresso Nacional e aos recursos do fundo partidário. A facilidade com a qual se cria uma nova legenda tornou-se um desafio para os grupos que prezam pela identidade ideológica e programática, haja vista que a multiplicação de partidos, em geral, está vinculada à lógica escusa das negociatas dentro de um sistema político marcado pelo fisiologismo.
É válido exemplificar esse fenômeno. Na legislatura de 1986, doze partidos obtiveram representação na Câmara dos Deputados, a metade deles sendo classificável como “nanico” (um a dez parlamentares). Menos de trinta anos depois, a bancada da posse da Câmara dos Deputados era composta por nada menos que 28 partidos, dos quais catorze identificáveis como nanicos. No início do segundo governo de Dilma Rousseff, somente três agremiações poderiam ser consideradas grandes: PT (69), PMDB (65) e PSDB (54).2
Além dos problemas citados, outra consequência da pulverização de legendas é a redução da força relativa dos partidos maiores, uma vez que a governabilidade só pode ser alcançada mediante coligações bastante plurais e incoerentes em termos ideológicos. Tais alianças, de viés eminentemente pragmático, tendem a gerar outros problemas: distorção dos resultados das urnas, corrupção sistêmica, clientelismo político, criação e negociação de ministérios e, em última análise, enfraquecimento da própria democracia.
Além do mais, o Congresso brasileiro é uma instituição historicamente habituada a representar as oligarquias e a legislar em função própria, conservando pouco alteradas as questões de fundo que afetam as desigualdades sociais. A legislatura de 2015 possui a configuração mais retrógrada desde a ditadura militar, refletindo o recrudescimento do conservadorismo. Houve crescimento das bancadas suprapartidárias de ruralistas, de religiosos conservadores e de defensores de medidas opressivas contra populações historicamente excluídas do processo produtivo, ao passo que aquelas que representam trabalhadores e movimentos sociais declinaram. Esse cenário de predomínio das direitas explica a vitória de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara e a sequência de derrotas do governo Dilma no Legislativo, bem como os choques entre os dois poderes.
O declínio vertiginoso da popularidade da presidenta pode ser entendido por meio da convergência de cinco fatores principais: a paralisia no Congresso, a recessão econômica, o descumprimento das promessas feitas na campanha de reeleição, os graves escândalos de corrupção e o sensacionalismo da grande mídia.
Do lado do campo progressista, as esquerdas se sentiram traídas, motivo pelo qual retiraram seu apoio ao governo. Do lado da oposição, houve grandes manifestações de rua a favor do impeachment, que contavam com o apoio do PSDB, da Fiesp e de think tanks liberais, com transmissões televisivas convertidas em verdadeiras convocações. Paralelamente, a imprensa oligopolizada convertia as atuações da Polícia Federal em espetáculo e tratava a corrupção como uma mazela restrita ao PT.
Somando-se a essa conjuntura desfavorável, a peculiar inabilidade política de Dilma, nesse contexto, contribuiu para o desmoronamento do governo, fato que foi ratificado pelo Senado Federal em 31 de agosto de 2016. Para além da derrota política do PT, o episódio do impeachment revelou graves fissuras institucionais do sistema político brasileiro, especialmente do presidencialismo de coalizão.
O “reformismo tímido” do PT e seus limites
Associar o PT ao comunismo não é apenas um equívoco, mas também, muitas vezes, um ato de má-fé, com a intenção de afastar possíveis eleitores que rejeitam projetos revolucionários. Nos primeiros anos de sua existência, quando a ordem mundial ainda estava inserida na lógica bipolar da Guerra Fria, o partido chegou, de fato, a flertar com algumas bandeiras socialistas. Mas, desde o fim do conflito intersistêmico entre Estados Unidos e União Soviética, o PT tendeu a apresentar uma orientação de inspiração reformista, à semelhança da social-democracia europeia.
Em linhas gerais, o petismo visa “domesticar” o capitalismo, construindo uma sociedade de classe média mediante pactos de harmonização entre o capital e o trabalho. Equivoca-se quem acredita que a abolição da propriedade privada dos meios de produção por meio da coletivização estatal faça parte de sua agenda, especialmente em tempos mais recentes.
Nesse sentido, é interessante atentar para o simbolismo que envolve a aliança das duas figuras que encabeçaram a coligação vitoriosa em 2002: Lula da Silva (PT) e José Alencar (PL). De mãos dadas, o sindicalista e o empresário encarnavam de maneira quase literal o projeto da conciliação de classes. No mesmo ano, Lula assinou a Carta ao Povo Brasileiro, comprometendo-se com a manutenção do tripé macroeconômico herdado do governo de Fernando Henrique Cardoso (metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade fiscal). O conteúdo do texto era uma ruptura com o programa original do PT, sacrificado em prol da transmissão da imagem de “esquerda responsável” ao empresariado, aos credores e ao eleitorado.
Com efeito, o primeiro mandato começou com uma estreita margem de manobra. Ainda assim, buscou-se tomar providências para ativar o deprimido mercado interno. Iniciava-se, então, o reformismo petista, que pode ser englobado em cinco fases.3
A primeira abrange praticamente o primeiro governo (2003-2005), sendo marcada em especial pelo lançamento do Bolsa Família, pela expansão do crédito popular e pela política de valorização do salário mínimo. Esse conjunto de medidas promoveu considerável alívio entre os segmentos mais pobres da população, ao passo que propiciou alguma dinamização da economia por meio do estímulo à demanda.
A segunda fase (2006-2008) foi caracterizada pela guinada ao desenvolvimentismo. A redução da taxa de juros e a execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) sugeriram um encolhimento do componente liberal. Simultaneamente, a geração de empregos formais e a política de ganhos reais do salário mínimo começaram a dar resultados sensíveis. Esse foi o momento de consolidação daquilo que Amado Luiz Cervo chama de Estado logístico, que planeja e induz o desenvolvimento, mas deixa a realização das obras nas mãos de grandes empresas privadas.4 O crescimento econômico acelerado criou um círculo virtuoso no qual o aumento do poder de compra dos mais pobres gerou um incremento correspondente dos investimentos empresariais para o mercado interno, que por sua vez redundou em mais empregos.
A terceira fase (2008-2010) utilizou o referencial externo da crise financeira de 2008 para analisar as respostas do governo na tentativa de reduzir seus impactos no Brasil. A solução encontrada foi a adoção de medidas anticíclicas para ampliar o consumo popular, entre as quais: desonerações fiscais, utilização dos bancos públicos e alongamento do crediário. Por outro lado, foi inaugurado o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, responsável pelo tripé: incremento das vagas de trabalho, estímulo ao setor de construção privado e acesso à casa própria. A classe C emergiu como protagonista, entrando no mercado de consumo ao adquirir carros e eletrodomésticos desonerados e imóveis financiados por bancos públicos.
A quarta fase compreende o primeiro triênio do governo de Dilma Rousseff (2011-2013). A presidenta manteve as conquistas sociais e uma alta taxa de emprego da população, ainda que por tempo limitado. Em meados do primeiro mandato, porém, teve início um ciclo econômico recessivo, marcado pelo fim do boom das commodities, excesso de concessões tributárias, aumento da inflação e desvalorização do real. Associado a isso, durante todo o período dos governos do PT, houve um expressivo aumento da mobilização política de diversos movimentos sociais, principalmente os de caráter progressista, embora pulverizados por diversas pautas, que reivindicavam cada vez mais melhorias de vida urbana e de garantias sociais pelo Estado. As manifestações iniciadas em junho de 2013 poderiam ter indicado a possibilidade de avanço na agenda petista, mas sinalizaram os limites do petismo e do reformismo tímido.
A quinta fase se iniciou em 2014 e foi abruptamente interrompida em 2016. As jornadas de junho de 2013, por um lado, reforçaram as pautas das lutas históricas e das novas lutas sociais, mas, por outro lado, suscitaram o recrudescimento de ideias conservadoras, algumas das quais já se pensavam extintas do imaginário político. A reeleição ocorreu com uma margem estreita de votos, e a promessa de “guinada à esquerda” não se concretizou. O segundo mandato combinou a crise econômica com a crise política. Em 31 de agosto foi ratificado o impeachment da presidenta democraticamente eleita.
Repensar o papel das esquerdas
Os governos do PT colocaram em prática políticas públicas de natureza distributiva sem confrontar diretamente o rentismo e sem realizar reformas estruturais. Ainda assim, o petismo – mesmo que distanciado de suas premissas originais – realizou um importante trabalho de ascensão social, embora centrado na inclusão de parcelas expressivas da classe trabalhadora na ciranda de consumo – conquista que foi apropriada politicamente, em grande medida, pela Teologia da Prosperidade das Igrejas neopentecostais. As melhorias na configuração socioeconômica brasileira são notáveis e reconhecidas por inúmeras organizações internacionais, sendo particularmente importante, segundo o economista Thomas Piketty,5 a política de valorização do salário mínimo – hoje ameaçada pela contrarreforma de Michel Temer.
Apesar de todos os erros praticados nos governos petistas e dos limites sistêmicos apontados, conseguiu-se obter progressos sociais importantes. Para além da associação com a corrupção estrutural, talvez o principal equívoco do PT tenha sido tentar colocar em prática um Estado de bem-estar social sem realizar as reformas que permitiriam custeá-lo e viabilizá-lo.
Este momento de crise do Estado democrático de direito torna urgente e necessária a autocrítica dos movimentos progressistas e a construção de novas estratégias de ação política para as esquerdas.