As guerras e a produção da vida nua
O conceito de vida nua é pertinente para a análise de fenômenos contemporâneos como esses que estamos vivendo atualmente, que utiliza um estado de exceção como política de governo
O ano de 2022 já mostrou ao que veio. E não está à passeio. Precisou pouco mais de dois meses para eclodir um conflito europeu, bélico, em que de um lado está uma superpotência nuclear e do outro um pequeno país que acenava à Otan. A mídia internacional deita em berço esplêndido e noticia diuturnamente o ataque russo à Ucrânia, em uma guerra anunciada há décadas. E não é para menos: as principais cidades ucranianas têm sido destruídas por mísseis e bombas, centenas de pessoas morreram, milhares estão refugiadas e a eminência dessa situação tomar proporções ainda maiores assusta o planeta. Os Estados Unidos, a Europa e a China espiam pelo buraco da fechadura.
Mas a guerra não é um artifício usado apenas do lado de lá. Por aqui, a guerra nunca parou. Em um país assentado pela cultura da violência, a guerra já virou rotina. Os povos indígenas vêm sendo dizimados ao longo da história, assassinados, jogados à miséria, cujas terras são invadidas por garimpeiros e agricultores. A população negra, em todas as cidades brasileiras, sofre com a necropolítica, cujo racismo é o pilar estrutural que assassina, encarcera, exclui e empobrece. Uma mulher é assassinada a cada seis horas e o Brasil é o país que mais mata homossexuais no mundo. Países vizinhos também vivenciam conflitos, como a Colômbia, a Venezuela e o Haiti, e no Oriente Médio milhões de pessoas são brutalmente assassinadas todos os anos. Sem falar nas crises humanitárias do continente africano. Essas guerras são pouco noticiadas, e quase ninguém olha pelo buraco da fechadura.
Embora gravíssima, seria um erro considerar que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia seja uma exceção relativa à arbitrariedade e à ruptura aos direitos humanos. Não é de hoje que o pensamento moderno ocidental opera mediante a separação das vidas que pertencem ao mundo humano, e que são zeladas; e outras que habitam o mundo subumano, cuja existência é negada por princípios e práticas excludentes. A prisão de Guantánamo, por exemplo, representa uma das manifestações mais absurdas do pensamento jurídico, da criação do mundo desumano como um não-território em termos políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia1. E o que é pior: existem muitas Guantánamos desde o Iraque até o Brasil e a Palestina. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discriminações sexuais e raciais na esfera pública e privada em todos os países do mundo: nas megacidades, nos guetos, nas prisões, nas novas formas de escravidão, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho infantil, na exploração sexual e na descartabilidade de um número cada vez maior de pessoas.
À medida em que os corpos dos mortos se amontam em guerras civis e militares ao redor do mundo, a pobreza e a fome avançam. O capitalismo também. Os 10% mais ricos detém 76% do patrimônio do planeta. Desigualdade abissal. A indústria armamentista lucra com a guerra, as elites também. Não são guerras sem causa ou resultados da natureza humana. As guerras são motivadas por homens brancos que representam a elite internacional, em que algumas vidas são jogadas ao léu na busca pelo acúmulo de riquezas. Como denunciou Peter Pelbart2, o capital nunca penetrou tão fundo na vida e na alma das pessoas, no núcleo de sua vitalidade, tornando-se a fonte de valor do mundo contemporâneo.

Os resquícios das guerras são avassaladores, e aqueles que sobrevivem são excluídos, como o imigrante que foge do conflito, o indígena que tem sua terra devastada, a mulher negra violentada. São vidas que representam a vida nua, conceito proposto pelo filósofo Giorgio Agamben3 para se referir aos sujeitos excluídos socialmente, destituídos de desejos ou possibilidades, já que não existem mecanismos previstos para mantê-los protegidos. Entretanto, essas vidas não são eliminadas claramente, mas são “sacrificadas”. A sobrevivência se torna insustentável e o Estado, com seus mecanismos de governabilidade, é o ente que as deixam morrer.
A vida nua é o produto da máquina biopolítica, o seu resultado, o último estágio, o “fundo do poço”, como se não pudesse regressar para outra forma de vida produzida pela biopolítica2. O conceito de vida nua é pertinente para a análise de fenômenos contemporâneos como esses que estamos vivendo atualmente, que utiliza um estado de exceção como política de governo.
Mas é preciso resistir, e os estados de exceção podem ser enfrentados. Valérie Mérange lembra que os relatos literários dos sobreviventes de campos de concentração retratavam sentimentos de uma afirmação vital e política; ou mesmo no relato de Robert Antelme há um elogio no fato de viver em si, despojado de superestruturas morais e sociais, em uma espécie de vida desculpabilizada2.
Não que a vida nua seja bela, mas só é nua em aparência, pois há composição de relações, amizades, força produtora de formas de vidas, de estratégias, de transformações. Entretanto, essa resistência é condicionada pelos poderes que a relegam à vida nua, desprovida de toda qualificação que poderia protegê-la. Portanto, a vida nua possui pouco espaço para resistir, senão apenas pensar-se para além do julgamento e da autoridade que a condena2.
O ano de 2022 está apenas começando, e é preciso coragem para enfrentarmos nossas guerras de cada dia. As guerras de lá e as guerras daqui. O grito é de resistência.
Roger Flores Ceccon é pós-doutor em Saúde Coletiva.
Referências
1. Amann, D. M. Guantánamo. Columbia Journal of Transnational Law, New York, v. 42, n.2, p. 263-348, Nov. 2004.
2. Pelbart, P. P. Vida Capital: ensaios de biopolítica. 2. ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2011.
3. Agamben, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.