‘As mulheres de direita são muito mais bonitas que as de esquerda’
Alas conservadoras definitivamente não entenderam o fenômeno #EleNão, um movimento que não diz respeito apenas a Bolsonaro: ele é só um indivíduo; #EleNão foi uma resposta ao movimento autoritário representado pelo presidente eleito
Ouvimos falar de Jair Bolsonaro faz tempo. Pudera: ele está na Câmara de Deputados desde 1991. Um detalhe, porém: nós o conhecemos não pela sua trajetória enquanto parlamentar, mas por seu discurso.
Em 2002, Bolsonaro disse que bateria em homossexuais que se beijassem em sua frente. No salão verde da Câmara, em 2003, empurrou a deputada Maria do Rosário e disse que não a estupraria pois ela não merecia – “sua vagabunda”, dissera.
Em 2010, manifestava-se contrário ao Estado fornecer ajuda a pessoas portadoras do vírus HIV, e reiterou: segundo o político, seria aceitável bater num filho caso ele se assumisse homossexual. Bolsonaro, inclusive, teve que pagar R$ 150 mil de indenização por suas declarações homofóbicas.
Em 2015, chamou refugiados de “escória do mundo”. Quanto às mulheres, disse que elas devem receber menos que seus colegas homens. Em tom de deboche, também declarou que deu uma “fraquejada” e teve uma filha mulher.
Nada disso é novidade. As frases foram registradas e amplamente resgatadas durante a campanha presidencial de 2018. Entretanto, quando questionado sobre suas falas preconceituosas, homofóbicas, xenófobas e misóginas, ele diz que nada disso falou e que nunca pregou o ódio, produzindo uma espécie de “mangueira de incêndio da falsidade”. Seus eleitores mais devotos seguiram uma espécie de cegueira coletiva negando os fatos. Bolsonaro criou sua própria verdade – e seus eleitores também.
É impossível ficar indiferente ao presidente eleito. Muita gente não perdoou nem esqueceu suas declarações ao longo dos anos. Nem deveria: são declarações que extrapolam o adjetivo eufemístico de “polêmico”. São, de fato, perigosas.
Diante de sua candidatura ao mais alto posto do executivo, um grito surgiu na internet: #EleNão. Um pouco de meme, um pouco de humor, mas muito representativo da angústia que a possibilidade de ascensão ao fascismo no país, articulou-se o grupo “Mulheres Contra o Bolsonaro” no Facebook, que contava no começo de outubro com quase quatro milhões de membras.
O grupo era muito bem-cuidado: apenas mulheres participavam e havia extrema cautela para verificar novos membros. Em setembro, o grupo secreto foi hackeado. Foi uma ação criminosa que expulsou participantes e mudou o nome para “Mulheres com Bolsonaro”. Hackers também invadiram o telefone de uma das fundadoras, ameaçaram as moderadoras e publicaram discursos de ódio.
Se a tentativa foi desarticular o movimento, eles estavam enganados. Semanas depois, mulheres se uniram nas ruas para gritar #EleNão e #EleNunca, no Brasil e na Europa. Mulheres jovens, velhas, mães, estudantes, trabalhadoras.
Sujeitas mulheres
Ao lado das mulheres estiveram nas ruas os que se sentiram ameaçados com as falas do então candidato. Bandeiras da comunidade LGBTQI+ coloriram as passeatas. A causa, afinal, extrapolava a problemática da mulher e convergia com pautas humanitárias, antifascistas e antirracistas. Homens heterossexuais e cisgênero também seguravam a bandeira pró-democracia e lançaram páginas “Homens contra Bolsonaro”. Mas não podemos esquecer: foi encabeçado por mulheres. E na internet.
#EleNão contou com sujeitas de diversas camadas populares. Era visível nas ruas e nas redes.
Eram mulheres universitárias, brancas, classe média alta, mas também negras, quilombolas, trans, indígenas, velhas, jovens, mães, contrariando qualquer formação de um sujeito universalizante. Todas gritavam a plenos pulmões as palavras de ordem: “Ele não, ele não, ele não, não, não” ao ritmo de Bella Ciao, música simbólica da resistência italiana contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial. O brado “nem fraquejada e nem do lar: a mulherada tá na rua pra lutar” também ecoou por mais de 40 cidades.
As manifestações tiveram um diferencial discursivo que não era encontrado em grandes protestos do passado na América Latina: mulheres ocuparam o espaço político assumindo-se enquanto sujeitas mulheres, mas longe de um apego à maternagem, ao afeto e a família. Eram mulheres se proclamando enquanto sujeitas políticas em um espaço majoritariamente masculino, sem se resumirem aos papéis de “esposas”, “mães” ou “avós”.
Certamente os movimentos pela democracia protagonizados por mulheres que faziam uso do discurso maternal foram essenciais na América Latina do século 20 – e isso fundamentou a democracia como a conhecemos e os movimentos feministas contemporâneos. Afinal, “somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”, não é?
Movimentos femininos e feministas sempre tiveram repercussão negativa: vagabundas, sujas, mal-amadas, entre outros adjetivos desrespeitosos.
O discurso de desprezo às mulheres acontece quase que concomitantemente ao enaltecimento da figura da mulher calma, mãe, pura e virginal. No fundo, isso quer dizer: gostamos de mulheres, mas não as vagabundas, não as revoltadas, não as insatisfeitas. Gostamos delas fazendo o nosso jantar e sendo agradáveis e com a voz leve. Gostamos de mulheres… desde que elas não nos incomodem.
Grupos de mulheres favoráveis a Bolsonaro também foram criados, mas menores. As participantes foram apelidadas de “Bolsonecas”.
O discurso de gênero é utilizado nessas páginas para discutir antifeminismo, defendendo ideais de beleza e feminilidade. Pregam um nacionalismo idôneo, um ideal de família cristã e um saudosismo militar. Têm medo tanto do comunismo quanto do feminismo. O voto bolsonarista por parte dessas mulheres tem diversos fatores, é claro. Mas um deles reflete o conservadorismo patriarcal que teme uma ameaça antifeminina, um auto-biopoder.
Segundo observei, as postagens nesses grupos eram majoritariamente memes e vídeos do candidato. Traziam também reportagens sobre marchas e carreatas, como a Marcha Cristã pela Família com Bolsonaro, sempre com a bandeira do Brasil em riste e o uso de camisetas verde e amarela da CBF ou estampada com o rosto do então candidato.
Em uma das manifestações, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho de Jair, disse: “As mulheres de direita são muito mais bonitas do que as de esquerda. Não mostram o peito na rua e não defecam para protestar. Ou seja, as mulheres de direita são muito mais higiênicas que as da esquerda”. Também afirmou: “Aqui não tem mulher com cabelo no sovaco”.
Tomando argumentos antifeministas, foi postado em uma das páginas pró-Bolsonaro: “Em 1964, nós, mulheres, ajudamos a salvar o país do comunismo. Agora, em 2018, novamente, está nas nossas mãos o futuro do Brasil”. Elas estavam falando das Marchas com a Família por Deus e pela Liberdade.
Essas marchas provinham do horror de uma parcela de mulheres católicas após o discurso no Comício das Reformas de Base proferido por João Goulart no dia 13 de março na Central do Brasil.
Jango apenas falou da urgência da reforma agrária, urbana e rural, mas isso foi tomado como a fagulha para um grande incêndio autoritário. Como resposta quase que imediata, movimentos femininos e setores católicos da classe média urbana e escolarizada, políticos conservadores (sobretudo os filiados ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e a elite empresarial do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, formaram as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. A motivação principal era a revolta com a política populista e a “onda comunista” que temiam se instalar no Brasil.
Dado, é claro, um olhar de distanciamento histórico, o discurso das Marchas pela Família não foi muito diferente do atual: mulheres cantaram o hino nacional prestando continência a uma fotografia de Jair Bolsonaro e fizeram uma grande corrente de oração em frente ao Museu de Arte de São Paulo antes de começarem as passeatas.
Também foi presente o discurso anticomunista, proferido por pessoas que, muitas vezes, não sabem sequer o que é o comunismo. Este é o monstro embaixo da cama das alas conservadoras. Um bicho que existe, mas não existe, que não tem rosto nem voz, mas que, volta e meia, com o aparecimento de alguma crise política e econômica, ressurge.
Foi assim em 1937 com o Plano Cohen, em 1950 com o macarthismo, nos anos 1960 e 1970 com a Operação Condor. Fatos históricos não se repetem, mas muitas vezes fazem parte de uma mesma linha estrutural, fazendo com que eles não sejam exatamente singulares.[1] E nós, embora dotados de historicidade e pensamento crítico, nem sempre armazenamos traumas e experiências do passado para fortalecer e repensar as nossas condutas no presente.
Não basta ser mulher
Setores conservadores não entenderam o que foi o fenômeno #EleNão e a motivação das passeatas. Não entenderam o porquê de feministas não comemorarem a eleição da advogada Janaína Paschoal com mais de 2 milhões de votos, tornando-se a deputada mais votada da história do país, ou de não terem apoiado a candidatura de Marina Silva, esquecendo que não basta ocupar este cargo e ser a favor de pautas que pioram a vida das mulheres brasileiras. Não basta ser mulher: a palavra-chave é representatividade.
Mulheres são minorias no congresso e nas movimentações políticas nas ruas. Logo, quando mulheres – sujeitas subalternas do espaço político – articulam uma grande movimentação política acontece uma espécie de reciprocidade, sujeitos atribuem sentido a sua própria realidade, reinterpretam sua própria realidade social e, em consequência, revoltam-se e unem-se a demais sujeitos subalternizados.
No caso das movimentações capitaneadas por mulheres em 2018, a revolta cresceu ante a possibilidade concreta de um discurso protofascista tornar-se práxis.
O #EleNão não diz respeito apenas a Bolsonaro. Ele é só um indivíduo, uma pessoa com sentimentos, inseguranças, medos e aflições assim como qualquer outro animal de nossa espécie. O #EleNão é uma resposta ao movimento retrógrado e autoritário que Bolsonaro representa.
O movimento se alinhou a uma trajetória de conquistas das mulheres e demais minorias, bem como às possibilidades de perda de direitos. Reagiu ao discurso do outsider, do politicamente incorreto, a desilusão com os governantes populistas da América Latina, a nostalgia pelo autoritarismo e nacionalismo dos tempos de ditadura militar, o pensamento conservador contrário às cotas, a demonstração da fragilidade das instituições políticas, a misoginia do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e as declarações machistas de Michel Temer.
Mas o #EleNão não foi um fenômeno simplesmente reativo. Veio com um fluxo contínuo de conquista de direitos e espaço político das mulheres: Lei Maria da Penha, Lei do Feminicídio, Marchas das Vadias, Marcha das Mulheres Negras, #meuamigosecreto, #meuprimeiroabuso – e Marielle, presente.
As movimentações antiautoritárias de 2018 demarcam como a politização da sujeita mulher é uma ferramenta para questionar as noções de democracia, e para levantar o quão fundamental é a igualdade, os espaços abertos e a ausência de preconceitos e intolerâncias.
Uma ameaça à democracia é uma ameaça às mulheres e às minorias. #EleNão não impediu a eleição de Bolsonaro, mas permitiu a formação de uma rede de articulação potente, que resiste ao espaço temporal, contrária ao autoritarismo que, de tempos em tempos, volta a florescer. Que floresça.
*Isabela Fuchs é designer e historiadora. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na linha de pesquisa Subjetividade, Gênero e Poder.