As múltiplas tragédias possíveis em torno do caso FSO Safer
Um acidente com a embarcação FSO Safer interromperia o funcionamento do porto de Hodeidah, porta de entrada de mais de 68% da ajuda humanitária destinada ao Iêmen. Com o fechamento do porto, mais de 8.4 milhões de pessoas teriam seu limitado fornecimento de alimento interrompido
Em tempos em que ainda se repercute a COP-27 de Sharm el Sheikh, no Egito, e que temas socioambientais abundam na mídia e na agenda internacional, causa espanto o silêncio sobre o caso FSO Safer. Além do custo ambiental incalculável, a possível catástrofe envolve danos humanitários intoleráveis, ameaçando uma das populações mais vulneráveis do planeta. Seu potencial devastador seria mais caro ao comércio internacional do que o navio Ever Given, cujo encalhe no Canal de Suez em 2022 gerou prejuízo de nove bilhões de dólares por dia. Diretamente afetado pela guerra do Iêmen, o caso FSO Safer expõe o enorme impacto socioambiental das disputas geopolíticas das grandes potências. Deixa também a reflexão sobre como uma catástrofe de tamanha proporção segue desapercebida, enquanto os grandes fóruns internacionais discutem conceitos de responsabilidade moral sobre temas socioambientais. Vale aqui um histórico do conflito do Iêmen, os vários cenários que impacta, e o que falta para evitar esta tragedia anunciada.
Segundo relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Iêmen é a pior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. Há mais de sete anos em guerra civil, a população enfrenta as consequências de um conflito intenso: violência, insegurança alimentar, violações de direitos humanos, e uma crise econômica que já levou milhões à miséria. Atualmente, mais da metade da população enfrenta grave insegurança alimentar, com aproximadamente 540 mil crianças em estado severo de desnutrição. Segundo relatório da ONG Save the Children, a fome em decorrência do conflito já custou a vida de mais de 85 mil crianças menores de cinco anos. Mais de 20 milhões de pessoas necessitam de ajuda humanitária, e com mais de quatro milhões de deslocados internos, o Iêmen é também a quarta maior crise migratória da atualidade. No entanto, um navio-tanque abandonado na costa do país pode causar um desastre socioambiental a qualquer momento, agravando ainda mais a situação do país e de toda a região.
O FSO Safer (Floating, storage, and offloading, em inglês) era uma embarcação utilizada para armazenamento e transferência de petróleo. Até 2014, o navio foi o ponto final do principal oleoduto do Iêmen, que conectava o petróleo produzido na refinaria do Marib, no interior do país, ao terminal portuário de Ras Isa, no Mar Vermelho. Localizado no estratégico porto de Al Hodeidah, o terminal fica na principal rota marítima da região, garantindo o acesso da indústria petrolífera local aos grandes mercados internacionais. O oleoduto era vital para a economia iemenita, cujas reservas de petróleo formam a maior fonte de receita do país. Porém, com a escalada da violência em 2014, o oleoduto se tornou alvo de disputa e ataques recorrentes. Rapidamente, a embarcação virou refém do conflito que aflige o país há mais de sete anos.
Em 2014, após capturar a então capital do Iêmen, Sana’a, o influente movimento Houthi avançou para a cidade de Al Hodeidah, assumindo o controle do porto e consequentemente do FSO Safer. O rápido avanço territorial do grupo armado, apoiado pelo Irã, levou o então presidente Rabbuh Mansur Al-Hadi a pedir apoio militar ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. O pedido, que foi acatado, deu início à coalizão militar liderada pela Arábia Saudita e apoiada por diversas potências árabes e ocidentais. Desde março de 2015, a coalizão vem lançando operações militares para impedir a expansão dos Houthis e restabelecer o governo do Iêmen. A ofensiva, porém, não conseguiu recuperar os territórios Houthis, que desde então se consolidaram como autoridades de-facto nas áreas do norte e centro do país. Atualmente, o conflito do Iêmen reflete uma rede complexa de relacionamentos proxy envolvendo as grandes potências. Com a fragmentação do território, o FSO Safer se manteve sob controle dos Houthis, enquanto a refinaria do Marib continuou com o governo do Iêmen. Com isso, as operações do oleoduto foram interrompidas em 2015. Sem qualquer manutenção desde então, o FSO Safer foi abandonado com mais de 150 mil toneladas de petróleo a bordo.
Com a integridade estrutural comprometida, o navio está propenso tanto a um vazamento quanto a uma explosão, já que o sistema designado para dispersar gases inflamáveis não funciona mais. Os prováveis impactos sociais, ambientais, e econômicos, de curto e longo-prazo, afetariam intensamente a região e o comércio global. Segundo relatório do Greenpeace, considerando diferentes quantidades de óleo vazando durante 2, 21, e 60 dias, estima-se que a costa do Iêmen seja atingida entre três e quatro horas. Países vizinhos como Arábia Saudita, Eritreia e Djibuti seriam atingidos em até uma semana. Se o derrame acontecer no inverno, as projeções sugerem que o óleo seguirá em direção ao Norte, área central do Mar Vermelho. Se acontecer no verão, seguirá em direção ao Sul, no Golfo de Áden. As comunidades costeiras de toda a região representam os riscos humanitários mais graves, já que não dispõem dos mecanismos necessários para enfrentar os impactos ambientais, econômicos e sociais.
Um acidente com o FSO Safer interromperia o funcionamento do porto de Hodeidah, porta de entrada de mais de 68% da ajuda humanitária destinada ao Iêmen. Com o fechamento do porto, mais de 8.4 milhões de pessoas teriam seu limitado fornecimento de alimento interrompido. Em três semanas, as usinas de dessalinização seriam atingidas, deixando mais de 10 milhões de iemenitas sem acesso à água tratada, um recurso que já é escasso no país. O impacto exato da poluição atmosférica na qualidade do ar depende da estação (verão ou inverno, por conta das diferentes correntes de ar e marítimas) e da forma (lenta ou repentina) que o evento aconteça. A evaporação do petróleo espalharia compostos químicos tóxicos voláteis na atmosfera. Na ocasião de uma explosão, por exemplo, poluentes altamente nocivos provenientes do petróleo queimado representariam um risco ainda maior, podendo causar problemas respiratórios graves a curto e longo prazo, sendo altamente nocivo à saúde da população que já sofre com a falta de estrutura hospitalar.
O impacto ambiental seria incalculável, ameaçando a vida marinha não só do Iêmen, mas também de toda a região. Com mais de 16 mil quilômetros quadrados e espécies endêmicas, a região do Mar Vermelho abriga alguns dos mais ricos e produtivos ecossistemas de recifes de corais, incluindo espécies de grande importância científica. Vale ressaltar que os esforços mais atuais para recuperar uma área exposta a vazamento de petróleo não conseguem remover mais do que 20% do derrame. Sendo assim, apesar do custo estimado em 20 bilhões de dólares para recuperar a região afetada, 80% dos componentes tóxicos seriam dispersados no meio ambiente.
Localizado em uma das rotas marítimas mais relevantes da atualidade, um acidente com o FSO Safer afetaria o acesso ao Canal de Suez, trazendo prejuízos bilionários ao comércio global. Em comparação, o encalhe do navio Ever Given no Canal de Suez, em 2021, como dito, gerou prejuízo diário de mais de nove bilhões de dólares. O acidente impactaria também a economia regional, aumentando os preços de energia e alimentos, além de afetar as colheitas, o turismo, e as comunidades costeiras de todo o Mar Vermelho.
Até 2022, todos os esforços da Organização das Nações Unidas para solucionar o caso Safer haviam falhado. A negligência a respeito do caso alimentava narrativas do governo do Iêmen e dos Houthis, ambos acusados de usar o navio como objeto de barganha. Foi somente em março de 2022 que um memorando de entendimento entre a ONU e os Houthis foi finalmente assinado. No acordo, aprovado também pela coalizão saudita, a ONU se propõe a transferir o petróleo do FSO Safer para outra embarcação, que continuará sob controle dos Houthis. Esse entendimento foi alcançado por diversos fatores, incluindo o avanço das negociações entre Irã e Arabia Saudita, mediadas pela China, e o recuo da ofensiva saudita no Iêmen. No entanto, apesar do acordo, a ONU vem enfrentando dificuldades para financiar a complexa operação de resgate do FSO Safer.
É curioso que uma ameaça de tamanha proporção não receba nem a atenção e nem os recursos necessários para sua prevenção. Se antes a relação entre Houthis e coalizão se colocavam como obstáculo, hoje é o desinteresse da comunidade internacional que coloca em risco a vida de milhões de pessoas. Em sua corrida contra o tempo, a ONU chegou a recorrer a campanhas de crowdfunding para atrair fundos de empresas privadas e da população civil. Até o momento, o fundo angariou U$105 milhões, valor suficiente para iniciar o resgate do FSO Safer. No entanto, faltam ainda U$23.8 milhões para cobrir os custos totais da operação, impactada também pela variação de preços causada pela invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022. Até sua resolução, o FSO Safer continua sendo uma bomba-relógio ameaçando uma das áreas mais vulneráveis do planeta.
Agora, fica também o questionamento: com o Brasil de volta a arena internacional, ativo nos fóruns multilaterais, com liderança em temas ambientais, sensível à questão dos refugiados, com presença militar na região através da atuação a partir do Bahrein, e buscando soluções para problemas globais que demonstrem sua relevância e capacidade, quem sabe não se anime em ter voz sobre tema tão delicado e potencialmente explosivo, literalmente?
Nathalia Quintiliano é mestre em Política de Conflito e Violência pela Universidade de Leicester, Inglaterra. Trabalhadora humanitária há dez anos, atuou pela ONU na Turquia, Jordânia e Djibuti e pelos Médicos Sem Fronteiras no Líbano.