As narrativas da guerra
Os conflitos do cenário global geram repercussões geopolíticas, econômicas e sociais profundas. Além disso, afetam diretamente a vida e a saúde das pessoas expostas à violência
“A guerra criou uma epidemia de pessoas com traumas físicos.”
“Imagine cuidar de pacientes que passaram por 20, 30 ou até 40 cirurgias em um curto espaço de tempo.”
“Eu gritei de dor e até pedi para amputarem meu braço.”
As vozes apresentadas na epígrafe deste texto são de pacientes e profissionais que narram o impacto devastador da guerra na Ucrânia. Desde a escalada do conflito, em fevereiro de 2022, houve um aumento dramático no número de pessoas com ferimentos graves que precisam de cuidados complexos e de longo prazo. Isso inclui indivíduos com ferimentos causados por explosões, estilhaços e amputações de membros, que exigem atendimento intensivo e especializado. De acordo com o Ministério da Política Social da Ucrânia, cerca de 300 mil pessoas foram registradas com algum tipo de deficiência física.
Com a crescente demanda por serviços de reabilitação precoce, o sistema de saúde local está com a capacidade de atendimento pressionada. Em resposta à alta demanda, Médicos Sem Fronteiras (MSF) desenvolve um projeto de reabilitação precoce no hospital Cherkasy, no centro da Ucrânia. No local, a organização médico-humanitária integra fisioterapia, apoio psicológico e cuidados de enfermagem para atender às necessidades do processo de recuperação de feridos de guerra.

Todos os ferimentos levam tempo
Esse é um sentimento que ressoa profundamente na equipe de saúde e nos pacientes do hospital, embora tenha um significado especial para cada grupo. Para fisioterapeutas, essa sensação aponta para a importância de cada minuto investido em exercícios e técnicas imediatamente após a cirurgia. Para psicólogos, enfatiza o valor das sessões de aconselhamento e apoio psicossocial. Para pacientes, faz alusão ao fato de que o processo de cura, tanto físico quanto emocional, é uma jornada que requer tempo e resiliência.
Muitos dos ferimentos tratados no hospital Cherkasy são relacionados a explosões, e o número de pacientes com amputações de membros está aumentando. “Os pacientes chegam com ferimentos graves nas pernas após pisar em minas terrestres ou com ferimentos por estilhaços. A guerra criou uma epidemia de pessoas com traumas físicos”, narra a gerente de atividades de fisioterapia de MSF, Blanche Daillet.
Quando os pacientes chegam ao departamento de reabilitação precoce da organização, geralmente já foram tratados em dois ou três hospitais. Além dos ferimentos primários, a equipe frequentemente encontra complicações como atrofia muscular e rigidez articular. Isso ocorre porque os cirurgiões geralmente priorizam a integridade do tecido e o processo de cicatrização de feridas, o que pode tirar o foco da restauração da funcionalidade dos membros.
Saúde mental para feridos de guerra
Na Ucrânia, receber ajuda psicológica durante os estágios iniciais da reabilitação é raro. Normalmente, o atendimento psicológico só é considerado depois que as feridas físicas estão quase curadas. No entanto, isso impede que os pacientes recebam apoio imediato e crucial para aceitar e se adaptar a seus corpos mudados. Com atendimento tardio, eles enfrentam a depressão ou o agravamento das condições de saúde mental.
“Imagine cuidar de pacientes que passaram por 20, 30 ou até 40 cirurgias em um curto espaço de tempo”, diz o supervisor de saúde mental de MSF, Vitalii Pavlieiev. “Essas pessoas precisam de apoio de enfermeiros e de psicólogos. Um paciente estava sendo preparado para uma amputação de perna, que os cirurgiões não puderam evitar. Nossos psicólogos trabalharam com ele para ajudá-lo a aceitar o procedimento. Após a cirurgia, mudamos nosso foco para o gerenciamento da dor fantasma.”
Distúrbios do sono, ataques de pânico e síndromes de dor – particularmente dor fantasma após amputação – também são comuns entre os pacientes de MSF. Volodymyr, 42 anos, chegou ao hospital Cherkasy com ferimentos nas pernas e nos braços e teve um de seus dedos amputado. Ele também estava sofrendo com ansiedade severa, distúrbio do sono e pesadelos. Como guitarrista e engenheiro de som, a amputação do dedo o afetou profundamente. “Eu costumava expressar tudo em minha alma através dos meus dedos, mas agora não consigo tocar”, diz Volodymyr, que está recebendo suporte da equipe de saúde mental de MSF.
A psicóloga Inna Kravchenko trabalha no projeto de reabilitação precoce de MSF em Cherkasy. “Geralmente o meu dia de trabalho consiste em sessões psicológicas individuais, onde trabalhamos os desafios de reaprender a viver em um corpo mudado”, explica. Muitas vezes, as conversas com um paciente fluem naturalmente para discussões com outras pessoas na sala, criando uma rede de apoio informal. O projeto também oferece sessões com as famílias dos pacientes, ajudando-as a construir a resiliência emocional necessária para apoiar seus entes queridos durante a recuperação.
Muitos dos pacientes sofrem de dor severa e frequentemente crônica, incluindo dor fantasma, que pode ser angustiante. Por isso, o principal objetivo do atendimento é estabilizar essas pessoas psicologicamente e então conectá-los a cuidados de longo prazo, se necessário. “Nós nos concentramos em ensinar técnicas simples de autorregulação, como refocalização, exercícios respiratórios e relaxamento muscular, para que eles tenham as ferramentas para controlar sua dor quando estiverem sozinhos e o efeito da medicação tiver passado”, conta.
Para quase todos os pacientes, o choque inicial de estar na cama, quase imóvel e com dor, é avassalador. Por isso, o papel dos profissionais de saúde também é orientá-los a aceitar essa nova realidade e navegar por seus sentimentos de rejeição ou tristeza.
Um dos pacientes de Inna é um jovem com ferimentos graves de bala e transtorno de estresse pós-traumático complexo. Durante a consulta, ele conta para a psicóloga que dormiu na noite anterior, o que era um desafio para ele. “Lembrei da técnica que você me ensinou. Tentei me concentrar na respiração, inalando e exalando profundamente e, de alguma forma, eu simplesmente adormeci”. Seu sucesso é uma alegria para os dois. “No final do dia, troco meu uniforme e lembro a mim mesma que deixei cada paciente com técnicas de autorregulação e que eles são fortes. Eles vão conseguir esta noite. E juntos, continuaremos avançando, um passo de cada vez.”
Os conflitos que permeiam o mundo atual produzem consequências geopolíticas, econômicas e sociais devastadoras. Mas também impactam a vida e a saúde dos indivíduos sujeitados à brutalidade humana. Ao ouvir atentamente as narrativas de pacientes e profissionais de saúde que atuam na trincheira da guerra, emergem histórias marcadas pela destruição do corpo, das emoções e do pensamento, cujos traumas físicos e emocionais podem condicioná-los à precariedade, ainda que esta não seja uma condição imutável, e a possibilidade de resistência está sempre premente. A guerra é um importante determinante social da saúde, e é um dever ético estancá-la para proteger contingentes de pessoas que se encontram à deriva de um futuro digno.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.