As Olimpíadas, a meritocracia e o valor relativo da vitória
Perante contexto segregatício, o esporte serve como ferramenta para suturar o tecido social e ensinar melhores parâmetros filosóficos à vida comum
O Brasil não protagonizou o topo do quadro de medalhas na Olimpíada de Paris. Apesar disso, levou uma delegação numerosa, com representantes em muitas modalidades. O público brasileiro chamou especial atenção pela capacidade emocional de valorizar seus atletas. Vibrou-se em cada participação. E as nossas conquistas tiveram sabor de ouro.
A forma como uma sociedade define seus conceitos de sucesso e fracasso, vitória e derrota, é uma questão fundamental para a busca do bem comum. Defensores da meritocracia entendem a vitória como decorrência direta de esforço e trabalho árduo. Embora sejam fatores evidentemente muito importantes, não é possível dizer que só isso seja determinante para alcançar sucesso. Os princípios teóricos da meritocracia não são aplicáveis à realidade. Muitos outros fatores influenciam a ascensão social. O esporte ilustra isso e fornece novas perspectivas para definir esses conceitos.
São notórios os privilégios dos atletas oriundos de países com mais medalhas. Sabe-se não haver condições verdadeiramente justas de competição entre as nações. Atletas latino-americanos e africanos precisam enfrentar dificuldades de cunho sociopolítico, que extrapolam todos os desafios inerentes aos esportes. Em muitas situações, não possuem sequer recursos mínimos de subsistência, que dirá equipamento atualizado, acompanhamento médico, equipes técnicas e treinadores especializados.
Remediar as desigualdades existentes entre indivíduos – e entre nações – seria elementar para resolver injustiças. Porém, nem assim tornaria benevolente o sistema meritocrático. Como explicou o filósofo estadunidense Michael J. Sandel, o problema da meritocracia não é somente conjuntural. Não se encerra na equivalência de oportunidades por meio de políticas afirmativas. Isso porque a própria ideia de conceber apenas o esforço como condição ao sucesso leva a sociedade a um individualismo que danifica o tecido social. Passa-se a acreditar que o sucesso e o insucesso são sempre consequências de ações pessoais. Jovens passam a carregar pesado fardo diante do fracasso. Pensar que pessoas vencem somente pelo próprio esforço, desconsiderando contextos de vida, oportunidades, sorte, talento, acaso, ajudas, circunstâncias, pode tornar raro cultivar gratidão e humildade. E, como diz o autor, “sem esses sentimentos, é difícil se importar com o bem comum”[1]. Para ele, a ética meritocrática promove comportamentos moralmente desagradáveis.
A ideia de que o sistema capitalista recompensa o esforço, sobretudo numa sociedade profundamente desigual, incentiva pessoas de classes sociais mais altas a deduzirem seu sucesso como medida de sua virtude e a desprezarem pessoas menos afortunadas. Espalha-se um raciocínio presunçoso e falacioso de que, se elas merecem seu lucrativo destino, então pessoas abaixo também mereceriam o destino delas, por mais precário fosse. Ignora-se que a classe trabalhadora cotidianamente empenha muito mais tempo e saúde às suas profissões. A arrogância e o desprezo das elites para as classes inferiores vêm dessa crença que transforma ricos em vencedores e pobres em perdedores. Atribui-se valor tão somente financeiro às existências, olvidando valores humanos e comunitários. Quem alcançou sucesso, caso inserido nessa ideologia, tende a esquecer a sorte e a sina que os ajudaram ao longo do caminho. Por outro lado, quem não consegue dinheiro suficiente para se sustentar, alimenta-se de um pensamento desmoralizante de que seu fracasso é culpa totalmente sua, minando a autoconfiança, obstaculizando a reação e prejudicando o recomeço.
Segundo o sociólogo britânico Michael Young, criador do termo, a meritocracia seria uma receita para a discórdia social, pois envenenaria o debate público. Não se pode pressupor que o esforço leva sempre à vitória e que cada membro da sociedade seja absolutamente responsável pelo próprio fado, pelo próprio porvir, como se não existissem sorte, acaso e graça. A meritocracia exclui todos os sentidos de dádiva. Nas palavras de Sandel: “Diminui nossa capacidade de nos enxergar compartilhando uma sina comum. Deixa pouco espaço para a solidariedade que pode surgir quando refletimos sobre a contingência de nosso talento e destino. É isso que faz do mérito uma espécie de tirania, ou regra injusta”[2].
A política da humilhação consiste na pressão psicológica que confunde valor financeiro com valor humano, conferindo respeitabilidade a quem tem dinheiro e entendendo a pobreza como condição de inferioridade. Isso gera mágoa e raiva, sentimentos que abastecem discursos autoritários. Hoje, o bem comum é compreendido em termos econômicos, tendo menos relação com fraternidade, solidariedade e laços de cidadania. A arrogância entre vencedores e o ressentimento entre perdedores fazem com que membros de uma sociedade não se identifiquem enquanto compatriotas. Aprofunda-se a polarização social e política, impedindo um lado de reconhecer o outro como detentor de dignidade.
Nesse sentido, o escritor brasileiro Machado de Assis retratou uma nação dividida. Em publicação no Diário do Rio de Janeiro em 1861, afirmou haver dois Brasis: “o país real”, que “é bom, revela os melhores instintos” e “o país oficial”, que “é caricato e burlesco”. O romancista paraibano Ariano Suassuna retomou essa divisão. Em 1999, escreveu no jornal Folha de S.Paulo haver um Brasil “oficial e mais claro”, dos “brancos e poderosos”, contraposto por um Brasil “real e mais escuro”, “autêntico, vivendo na barbárie”, formado por “nosso povo, pobre, negro, índio e mestiço”.
Perante esse contexto segregatício, o esporte serve como ferramenta para suturar o tecido social e ensinar melhores parâmetros filosóficos à vida comum. A jovem ginasta brasileira Rebeca Andrade alcançou, em Paris, a credencial de ídolo nacional, ao tornar-se a maior medalhista olímpica da história do Brasil. Com isso, conseguiu unificar o país num só êxtase de felicidade. Ela representou um país completo, realizado, que comemorava uníssono. Há quem tente, todavia, usar seu exemplo para endossar a tese meritocrática, como se seu esforço comprovasse que a ascensão social depende exclusivamente de trabalho. Não se trata de uma visão ingênua, mas da apropriação equivocada de uma façanha que comunica precisamente o contrário disso. Na verdade, muitas Rebecas invisíveis existem ao redor do país, esquecidas na pobreza. O vasto território brasileiro esconde muitos talentos oprimidos pelas circunstâncias. A atleta nasceu em Guarulhos e, num sopro do acaso, conheceu a ginástica artística por intermédio de um projeto social de iniciação esportiva da prefeitura de sua cidade. A propósito, todos os 60 medalhistas brasileiros de Paris são integrantes do Bolsa Atleta ou já estiveram, em algum momento, ao longo de suas carreiras, em editais desse auxílio governamental. Incentivos públicos como esses, num Brasil dividido, são necessários para que cidadãos consigam descobrir seus dons e não desistam de seus objetivos. E para que, a partir disso, afinal, possam representar as ambições de toda a nação rumo à grandeza humanística.
O saudoso líder sul-africano Nelson Mandela, por meio de seu exemplo, explicitou como o esporte é instrumento de transformação social, ao utilizá-lo na superação do apartheid. Em discurso proferido em maio de 2000, Madiba afirmou: “O esporte tem o poder de mudar o mundo. Tem o poder de inspirar, de unir as pessoas de uma forma que poucas coisas conseguem. Fala aos jovens em uma linguagem que entendem. O esporte pode criar esperança onde antes só existia desespero. É mais poderoso do que os governos em quebrar barreiras raciais, e ri na cara de todo tipo de discriminação”.
Eventos esportivos fomentam virtudes humanas. O olimpismo consiste, desde sua origem, no desenvolvimento de um conjunto de valores e qualidades morais a partir do esporte. A química dopaminérgica causada nos corpos físicos e as emoções que as disputas induzem nas massas fazem do fenômeno esportivo um indispensável recurso cultural para o avanço civilizatório. Sonhos individuais de atletas possuem um poder afetivo impressionante de representação de sonhos coletivos. O esporte instiga a capacidade humana de sentir experiências compartilhadas. A excitação individual espalha-se à comunidade. Torce-se pelo outro e, através de sua representação, torce-se por si mesmo.
Na teoria desportiva, existem adversários, não inimigos. Os jogos olímpicos manifestam-se como uma sublimação da guerra. Nações enfrentam-se em arenas construídas como coliseus. Nelas, o público desabafa tragédias de suas vidas pessoais, que assim doem menos. Extravasam ódios reprimidos, transformando-os em sentimentos coletivistas. Nacionalismos são deslocados da política para o âmbito dos esportes, concedendo espaço para sentimentos de orgulho e pertencimento e atenuando instintos primitivos de estranhamento de grupos étnicos diferentes. A identificação da humanidade entre os povos promove a busca da fraternidade universal. Pierre de Coubertin, francês idealizador dos jogos olímpicos modernos, inspirando-se nos modelos da Grécia Antiga e em seus ideais de excelência e desenvolvimento pleno do ser humano, escreveu: “Pedir aos povos do mundo que se amem uns aos outros é apenas uma infantilidade. Pedir-lhes que se respeitem não é nada utópico, mas para se respeitarem é necessário primeiro conhecerem-se. A história universal é o único fundamento genuíno de uma paz genuína. Celebrar os Jogos Olímpicos é apelar para a história”[3].
Apesar desse elevado intuito de respeito mútuo, nem todos são capazes de alcançar a altivez filosófica dos esportes. Alguns preferem permanecer na pequenez de seus preconceitos e usam o evento internacional na contramão de seu propósito, como plataforma para disseminar maus sentimentos. Noémi Gelle, técnica da ginasta húngara Fanni Pigniczki, fez, supostamente, com a mão, um gesto do supremacismo branco, utilizado por movimentos neonazistas, durante a transmissão da final da ginástica artística da Olimpíada de Paris. Enquanto isso, Simone Biles, estadunidense considerada a maior ginasta do mundo, reverenciava a ultrapassagem de sua adversária Rebeca Andrade, que ganhou ouro na categoria de solo, formando, junto com a terceira colocada Jordan Chiles, um pódio de mulheres negras.
A vitória é um conceito relativo. Depende de perspectiva. Vencer é um verbo que demanda atribuição axiológica, ou seja, demanda interpretação de sentido. As vitórias são sempre subjetivas, pois consistem em histórias. A força de um triunfo está no seu enredo, no seu mito, na sua narrativa. Não valeria nada uma medalha se não fossem as emoções populares exaltadas por ela. O ser humano é um animal construído por linguagem e significações. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche descreveu como sublime a qualidade humana da avaliação: “Foi o homem que pôs valor nas coisas para se manter – foi ele que criou o sentido das coisas, um sentido humano! Por isso denomina-se ‘homem’, isto é: o avaliador. Avaliar é criar: ouvi, ó criadores! A própria avaliação é o tesouro e a joia de todas as coisas avaliadas. É graças à avaliação que há valor: e sem avaliação a noz da existência seria oca.”[4]
Não são, portanto, as medalhas objetivamente consideradas que importam, mas as emoções das histórias contadas. A atleta brasileira Rafaela Silva foi quem decidiu a medalha inédita de bronze no judô por equipes mistas. Venceu em cinco segundos a luta contra a mesma adversária italiana que havia lhe tirado do pódio na disputa individual. Essa reviravolta confere um valor especial à vitória. A atleta Flávia Saraiva, medalhista de bronze por equipes na ginástica artística, competiu com o olho roxo, após cair durante o aquecimento. A imagem de seu rosto concentrado nas acrobacias, com um curativo improvisado, escancarou sua garra, por vezes disfarçada em sua meiguice. Caio Bonfim ganhou prata na marcha atlética, a primeira medalha do país na modalidade, após disputar outras edições olímpicas, mostrando sua autossuperação. A equipe feminina de vôlei de quadra conquistou bronze, encerrando com chave de ouro a carreira da atleta Thaísa, que declarou, comovida, sua aposentadoria.
Gabriel Medina obteve a maior nota da história do surfe nas olimpíadas, além de ganhar uma fotografia que o eternizou. Ao avançar às semifinais, demonstrou como um vencedor pode perder por circunstâncias das quais não tem controle. O mar não deu onda. O atleta conquistou a medalha de bronze na modalidade, com sensação de ouro. Algumas injustiças também impediram atletas alcançarem o topo dos pódios, como o caso da nota contestável da última onda da surfista brasileira Tatiana Weston-Webb, que perdeu a final, levando uma “dourada” medalha de prata.
Outras vitórias são enaltecidas por valores culturais que encantam. Um samba do Raça Negra no solo da ginasta Julia Soares. Um malabarismo verde-amarelo do skatista Augusto Akio. A brasilidade da fadinha skatista Rayssa Leal, ouvindo Djavan no fone de ouvido. O carisma debochado do atleta Alison dos Santos, apelidado Piu, nas conversas com as câmeras. A combatividade da dupla Duda e Ana Patrícia, no vôlei de praia, que não atura desaforo.
O esporte ensina a viver, pois ensina a perder. Para alcançar a excelência, é preciso errar, sofrer, avaliar e reavaliar. É preciso lidar com o fracasso, aprender e continuar. A trajetória emocionante da seleção brasileira de futebol feminino pôs em perspectiva as nuances da vida. Não há vitória sem derrota, como não há alegria sem tristeza. A maior jogadora de todos os tempos, a rainha Marta, aposentou-se com uma medalha de prata, graças à dedicação das atletas mais novas, motivadas pelo seu pioneirismo.
O esporte ensina a amar, pois precisa de apoio e compreensão. Dialoga com laços familiares e de amizade e conecta o tempo que liga gerações passadas e futuras. A judoca Bia Souza bradou à sua família, com lágrimas nos olhos, “eu consegui!”, após conquistar medalha de ouro no judô. Dedicou, com os dedos apontados para o céu, a vitória à sua avó, que havia falecido recentemente: “foi para ela!”.
A avaliação do público brasileiro às performances dos atletas levou em consideração a realidade do país, demonstrando maturidade cultural, manifestada como um patriotismo realista. Predominou uma voz coletiva de celebração e enaltação das nossas próprias narrativas. Competimos contra nós mesmos. Conhecemos nossa história colonial, nossas dificuldades, nossas mazelas, nossos traumas. Admiramos ainda mais os nossos representantes esportivos justamente por isso. Pela sua fibra e pela sua resistência. Identificamo-nos e inspiramo-nos. Aplaudimos, dessa forma, não só o pódio, mas uma classificação inédita, uma posição histórica, uma primeira vitória numa categoria específica, uma evolução de um atleta, uma superação de uma lesão, ou até a simples, porém gloriosa, representação da nossa bandeira.
Pouco importam os resultados diplomáticos, a superioridade quase bélica que almejam as potências do topo do quadro de medalhas. Fala-se de uma perspectiva latino-americana. Se o conceito de vitória é relativo, subjetivo, pessoal, então que consideremos nossas adversidades como amplificadoras das nossas conquistas. Há mais honradez no olhar do hemisfério sul. Dinheiro e status não são virtudes. Podem ser suas consequências, mas não se confundem com elas. As verdadeiras virtudes são humanas. Resumem-se em paixões e legados. Vontade, ambição, foco, força, coragem, determinação, generosidade, fraternidade, honestidade, essas sim devem ser enaltecidas. Precisam voltar a dar sentido humano à terra, ao corpo e à vida. Que todo valor das coisas seja novamente atribuído por nós. Enquanto houver gente no mundo para sentir as dores e alegrias do outro, haverá esperança na humanidade.
Lilian Assumpção Santos é Mestranda e pós-graduada em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP. Graduada em Direito pela mesma instituição.
[1] SANDEL, Michael J. A Tirania do Mérito – O que aconteceu com o bem comum? Tradução de Bhuvi Libanio. 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. Página 23.
[2] SANDEL. Página 38.
[3] MacALOON, John J. This Great Symbol: Pierre de Coubertin and the origins of the Olympic Games. Chicago: University of Chicago Press, 1984. Página 268.
[4] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2022. Página 79.