Notas sobre as lágrimas nas olimpíadas (e desigualdade social)
Apesar das divisões políticas e da ridícula discrepância econômica do país, o ritual festivo gerado pelo jogo coloca essas questões de lado pelo sentimento de pertença
Rebeca Andrade é a sensação do momento. Não entendo nada de ginástica olímpica e assisti a tudo com um nó na garganta e olhos marejados. Faz sentido: jogos olímpicos têm a função de trazer à tona e potencializar emoções que existem pelo sentimento de pertença nacional. Ou seja, trata-se de sentir-se realizado com o feito de outra pessoa que tem algo a ver com o seu grupo. Mais ainda se for uma história de sofrimento e superação.
Isso talvez seja verdadeiro para quase todos os torcedores ao redor do mundo, mas chama a atenção o grau que isso assume no caso brasileiro e o papel central do choro. Controlar as lágrimas foi um dos temas principais do narrador da Globo Everaldo Marques ao lado de Daiane dos Santos e Hypólito da Costa. O repórter Guilherme Pereira tampouco conseguiu se controlar ao entrevistar Rebeca Andrade e Flávia Saraiva. O mesmo com Guilherme Roseguini, que acompanhou as lágrimas de Valdileia Martins, que na infância pulava varetas no acampamento do MST e havia perdido o pai. A judoca Larissa Pimenta também desabou ao receber o bronze e foi abraçada pela própria adversária, a italiana Odette Giuffrida.
O Wall Street Journal publicou uma matéria sobre quem chora mais nas olimpíadas. O final foca na questão de gênero. Contudo, quando perguntam, caso você fosse laureado com uma medalha olímpica, com festejos em comemoração ao seu nome e a bandeira do seu país ao fundo, se você se manteria estoicamente ou cairia em uma choradeira cheia de ranho e lágrimas, penso que não se trata nem de uma escolha possível por um treino individual de controle emocional. Um ou outro desfecho seriam fruto de vivências sociais que fazem com que aquilo seja ou a realização de um sonho quase inimaginável ou de uma consequência lógica de um ambiente que aposta e espera aquilo. Usain Bolt não chorava. Aliás, era criticado por sua frieza. Michael Phelps chorou quando voltou da aposentadoria, quando o trabalho já estava feito.
Nossos esportes mais importantes estiveram um pouco apagados (futebol masculino e o vôlei em geral, que ganhou o bronze na modalidade feminina). Logo, foram os feitos dos “periféricos” que marcaram, para o Brasil, essa edição olímpica. A infância da própria Rebeca Andrade é de privação. Valdileia Martins, como já mencionado, era do MST. Beatriz Souza tampouco nasceu em berço de ouro, mas se tornou ouro em Paris. Isaquias Queiroz, Rafaela Silva, Roberta Ratzke iniciaram suas trajetórias em projetos sociais. São exemplos que tendem a emocionar mais. Apesar das divisões políticas e da ridícula discrepância econômica do país, o ritual festivo gerado pelo jogo coloca essas questões de lado pelo já mencionado sentimento de pertença.
Se, por um lado, o resultado disso acaba sendo a exposição das injustiças do país pelo sucesso de uma pessoa que, de início, não teria nenhuma razão para acreditar no seu êxito pelas suas condições materiais, de outro, acaba exaltando o falso discurso da meritocracia. “Viu só? Ela não tinha nada e conseguiu. É só querer.” Não, não é. Infelizmente, não temos políticas eficazes de educação e esporte até descobrirmos alguém que obstinadamente não aceitou o futuro de miséria que lhe estava reservado. A partir daí, sim, há apoio institucional. Mas existem seguramente centenas de Rebecas Andrade, Rayssas Leal, Florestans Fernandes que, por algum infeliz acidente do destino, não alçaram voo porque as condições sociais no Brasil são ineficazes. Quando alguém diz “É só você querer” seguramente morre algum sociólogo em algum lugar do mundo; afinal, sabe-se perfeitamente que é com segurança econômica que as potencialidades individuais podem ser encontradas e exercitadas. Contudo, o homem cordial que vive em Higienópolis ou no Leblon é capaz, ao mesmo tempo, de ser contra cotas, desprezar a empregada doméstica e se emocionar com as medalhas da Rebeca Andrade. Já se gastou muita tinta a esse respeito, mas não custa repetir: somos um povo capaz de vestir as mais diversas e contraditórias roupas ideológicas sem enrubescer pela vergonha que isso deveria causar.
Por tudo isso, o choro da nossa torcida pode ser, muitas vezes, contraditório. É a satisfação de quando se vê a vitória apesar das adversidades. Porém, adversidades que nós mesmos criamos como sociedade. Classes médias e altas vibrarem com as vitórias do povo preto, do povo periférico, nesse sentido, pode soar mais do que uma impostura, soa sádico, porque elas reclamam por uma sociedade desigual, que as privilegia no cotidiano com a miséria daqueles que as emocionam quando superam as dificuldades que elas mesmas criaram. Aliás, dificuldades ainda maiores para as mulheres, o gênero mais vitorioso dessa edição olímpica.
Até na hora de se emocionar em grupo, no Brasil, trata-se de uma espoliação grosseira e selvagem: é ver a vitória de um entre os milhões de submetidos que não aceitaram o jogo que se impôs. Entretanto, o jogo que eles venceram nas olimpíadas não é o jogo cheio de armadilhas que a sociedade brasileira criou para barrá-los. Considerando o quão rude são as relações de classe e raça no Brasil, caso fôssemos desprovidos de hipocrisia, deveríamos entender que o choro de emoção deveria ser um direito exclusivo dos espoliados. Ou que a empatia gerada nos momentos extracotidianos deveriam ter efeito no mundo do dia a dia. É uma esperança sensata no caso do Brasil? Infelizmente, a nossa história tem mostrado que não: aos pobres, negros, periféricos, está reservado o espaço do esporte, da dança, da música e da sorte (e isso, claro, quando os seus talentos são evidentes), enquanto as benesses do Estado de bem-estar social, por aqui, são entendidas como prerrogativa restrita aos bem-nascidos. Trata-se do mérito de não ter tido o azar de ter nascido pobre.
* Agradeço os importantes comentários e sugestões de Nicolás Gonçalves e Lia Vainer Schucman sobre este texto.
Rafael Mantovani é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autor do livro Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840) (Fiocruz). É coordenador do Pindorama – Núcleo de Estudos sobre Pensamento Social e Político Brasileiro da UFSC.