As Olimpíadas e a Rua
Os Jogos Olímpicos são um conjunto de competições entre as cidades, assim como entre os atletas. Eles são a ocasião de uma cidade ser designada como a mais moderna, a de maior mobilidade urbana, a mais cara, porque ela será a mais valorizada, num universo de referência previamente reduzidoAnne Querien
A preparação das Olimpíadas, no Rio de Janeiro, além dos jogos locais da Copa do Mundo de futebol, dá lugar, como em Londres e anteriormente em Pequim e Seul, à expulsão de milhares de habitantes das favelas da cidade, da região central aos confins da zona portuária. E, no entanto, a anunciada urbanização das favelas, nos últimos anos, supondo sua manutenção e melhoria, parecia estar efetivamente entre as preocupações. Esse programa enfrentou resistências, em especial de quem tem interesse em manter as favelas fechadas para não ter o tráfico de drogas interrompido. As negociações feitas incluíram até algumas demolições, mas raramente atacaram o hábitat, pois isso implicaria necessariamente uma mudança.
O programa olímpico tem a tradição de estar sempre acima das facções políticas e regiões geográficas com as quais lida. A venda dos direitos da transmissão televisiva gera um volume de dinheiro tal que fornece os meios para que se pense cada cidade temporariamente como a capital do mundo. Localmente, legitima as práticas de intervenção urbana maciça e brutal praticadas pelos políticos, de modo a aumentar o valor médio dos terrenos e imóveis em todas as regiões da cidade. A intervenção para as Olimpíadas não respeita objetos urbanos centrais, museus e catedrais que as respectivas cidades têm em seu patrimônio. Ela instala seu ou seus estádios e a vila olímpica em áreas industriais de preferência centrais, mas eventualmente periféricas, como em Londres, e anula todos os usos em favor da mobilidade responsável por facilitar e permitir o acesso aos novos locais centrais e aos ginásios e estádios olímpicos.
Por definição, uma cidade escolhida para sediar as Olimpíadas não é de antemão moderna o suficiente nem exemplar o suficiente para merecer essa distinção. Ela precisa, paulatinamente, se transformar, obedecendo a um planejamento e a um plano de ação que a elevará ao patamar de uma cidade-sede olímpica mundial. O plano de ação urbana é a condição prévia a ser aceita pela cidade, para que ela possa ter a chance de ser escolhida pelo Comitê Olímpico Internacional e, antes disso, pelo comitê olímpico nacional. Os Jogos Olímpicos são um conjunto de competições entre as cidades, assim como entre os atletas. Eles são a ocasião de uma cidade ser designada como a mais moderna, a de maior mobilidade urbana, a mais cara, porque ela será a mais valorizada, num universo de referência previamente reduzido. Por esse motivo é que Londres foi eleita, e não Paris. E mesmo assim Paris continua dando sequência, com menos recursos, ao plano de urbanização do setor de Batignolles, no 17º distrito, preparado para se transformar em caso exemplar, sediando e abrigando a vila olímpica em prédios que atendem às novas normas energéticas e ambientais.
Os Jogos Olímpicos são a organização de um salto no vazio em espiral ascendente, englobando um número sempre crescente de atletas, de países, de metros quadrados, de dinheiro, de espectadores. A exemplo do capitalismo, os únicos limites dos Jogos Olímpicos são os contornos do próprio planeta. Quando Pierre de Coubertin teve a ideia de ressuscitá-los, no final do século XIX, eles se inscreviam no quadro de reconstrução da França, após a guerra [franco-prussiana] de 1870. A questão central era, então, colocar-se acima da condição de pobreza por meio de provas de ginástica e competições escolares que forjassem num único movimento corpo e mente. Não se tratava, em absoluto, de uma perspectiva de revanche contra o Império Alemão, mas de abrir o leque das possibilidades, participando de um movimento comum ascendente, no qual a cultura clássica francesa pudesse marcar pontos, conseguindo se sobrepor à prática comum. Pierre de Coubertin defendia a ideia de práticas esportivas regulares nos pátios escolares, o que propiciava, segundo ele, a excelência do corpo e do caráter. Muito rapidamente, as aulas de ginástica dadas nas escolas foram consideradas insuficientes para o desenvolvimento de uma prática esportiva que permitiria o desenvolvimento, e espaços específicos precisaram ser criados.
Na verdade, a obsessão da Terceira República era tirar as crianças da rua, onde elas poderiam ter outro tipo de aprendizado que não o da leitura, da escrita e do cálculo, e onde corriam o risco de ter contato com outro tipo de figuras, bem diferentes dos pais e professores. Mas o espaço urbano da criança não podia se resumir ao domicílio familiar, ao estabelecimento de ensino e aos espaços especializados em educação. Por isso, foi preciso encontrar uma fórmula de articulação com a não disponibilidade dos pais e os horários restritos da escola, desenvolvendo novos locais de lazer, animados por outros componentes da missão educacional, em particular o componente esportivo. Assim é que, por iniciativa das municipalidades, de associações e de mecenas, nasceram espaços dedicados à prática esportiva, que se multiplicaram a partir do final do século XIX.
Mas, para Pierre de Coubertin, a prática de esportes não deveria se restringir ao pontual, ao local, à rotina. Era preciso criar uma competição entre as cidades, com outros horizontes além do nacional, na linha do espírito de paz ao qual se aspirava e que cumpria incentivar. Por esse motivo, a prática esportiva deveria se tornar competitiva e internacional. O ideal grego das Olimpíadas antigas conferiu a essa competição uma referência comum. Os primeiros Jogos Olímpicos internacionais aconteceram em Atenas, em 1896. Depois dos Jogos Olímpicos de 1924, a França assumiu a necessidade de construir uma vila olímpica que fosse uma vitrine da arte da construção e se transformasse em modelo tanto para o país como para a cidade da vez. A construção de sucessivas vilas olímpicas ensejou novos modelos de acomodação social, pois tanto para a concentração dos atletas como para os próprios edifícios foram sendo propostas novas soluções, por motivos técnicos evidentes.
Se alguns países, em especial os Estados Unidos, puderam utilizar campi universitários como estádios olímpicos, outros, como a França, o Japão ou a Coreia, só dispunham de espaços pericentrais, que precisavam ser remodelados de modo a equipará-los às zonas centrais, de acordo com a doutrina olímpica. Por isso, a preparação dos Jogos é a ocasião de transformar as respectivas cidades em vastos canteiros de obras urbanos, que acabam se traduzindo na expulsão dos habitantes cujo nível de vida é inferior à média da população. Se olharmos as coisas pelo lado positivo, diremos que os Jogos são a oportunidade de promover uma urbanização necessária, que de outra forma dificilmente poderia ser financiada. Para os moradores envolvidos, no entanto, trata-se de uma expulsão pura e simples em nome do espetáculo temporário no qual eles serão envolvidos pelas mídias da indústria de cultura de massa, mas que não perdurará no tempo, acompanhando os problemas que foram criados, nem compensará, em absoluto, as perdas por eles sofridas.
Para os organizadores, o espetáculo dos Jogos Olímpicos em escala mundial justifica as exclusões e os incômodos que provocam. Mas o espetáculo dos novos bairros criados leva definitivamente à tristeza. As estradas, avenidas e outros vetores de mobilidade impedem todo um conjunto de atividades de rua, empurradas para longe, afastadas desse novo espaço urbano. O legado dos Jogos Olímpicos são bairros com espaços novos e mortos.
*Anne Querrien é corredatora das revistas Multitudes e Chimères, membro da Associação Internacional de Especialistas, Técnicos e Pesquisadores (Aitec) e do coletivo Un Pôle Public Financier (Um polo público financeiro).