As recomendações do Banco Mundial contra a Educação Superior no Brasil
Ao contrário do que leva a entender o relatório do Banco Mundial, o Brasil não tem gastado muito em educação superior se comparado com outros países.
O Relatório elaborado pelos economistas do Grupo Banco Mundial a pedido do governo Temer é questionável em vários aspectos. No que se refere especificamente aos cortes de gastos na educação superior, o que se verifica é um malabarismo argumentativo, cujas recomendações tendem a criar novos problemas para o já deficitário sistema de educação superior brasileiro, além de não levarem à redução da desigualdade.
Em primeiro lugar, ao contrário do que leva a entender o relatório, o Brasil não tem gastado muito em educação superior se comparado aos países da OCDE. Ao contrário, são esses países que, em sua maioria, têm reduzido vertiginosamente seus investimentos na área, sobretudo após a crise de 2008. Os efeitos negativos desse processo têm sido altamente criticados pelas populações desses países, com ampla repercussão na mídia internacional, tendo, inclusive, sido relacionado ao suicídio de um professor universitário no Reino Unido, em 2014 (Parr 2014) – o que tem levantado um sério debate acerca dos efeitos deletérios da redução de investimentos públicos e da paralela adoção de critérios de produtividade e eficiência meramente gerencialistas sobre a saúde mental de professores universitários (cf. Seeber & Berg 2016). Ademais, a taxa de crescimento dos investimentos brasileiros verificados na última década devem levar em conta o patamar inicial excessivamente baixo decorente das políticas adotadas na década de 1990, contextualização igualmente ausente no relatório. Em relação aos demais países BRICS, o relatório ignora o fato de que, ao contrário do Brasil, em vários desses países, as universidades são instituições majoritariamente direcionadas às atividades de ensino, recebendo, portanto, muito pouco ou nenhum financiamento para atividades de pesquisa (atividades estas que, no Brasil, absorvem a maior parte do investimento federal em educação superior). Ao lado de alguns institutos de pesquisa nacionais, no Brasil, as universidades públicas são as maiores responsáveis pela produção de ciência e tecnologia, fatores essenciais para a geração de crescimento econômico sustentável. Reduzir ainda mais os investimentos já altamente defasados nas universidades públicas significa aprofundar a crise, criando dificuldades ainda maiores para a retomada do crescimento (cf. Cruz 2016).
Em segundo lugar, da forma como está sendo proposta, a desigualdade de acesso à educação superior não será superada, sequer minimizada, através da simples cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Ao contrário, entre outros problemas, a tendência é de aumento de uma massa de jovens altamente endividados desde o início de suas vidas profissionais, o que, por sua vez, ao aumentar a demanda por contratação imediata à saída da universidade, tende a diminuir os já extremamente baixos salários praticados no Brasil, gerando graves problemas sociais e econômicos. Os efeitos negativos de políticas como essa nos Estados Unidos, por exemplo, são hoje um problema cada vez mais reconhecido e discutido na sociedade norte-americana, como mostra o estudo de Sara Goldrick-Rab “Paying the price: college costs, financial aid, and the betrayal of the American dream” (2016) e os filmes documentários Ivory Tower (2014) e Starving the Beast (2016).
Historicamente, a cobrança de taxas em universidades públicas foram justificadas em países como os Estados Unidos como forma de co-financiamento de um sistema de educação superior em expansão. Ao contrário, o que se está propondo ao Brasil não é a expansão do atual sistema (o que, caso acompanhada de mecanismos de garantia de acesso aos 40% mais pobres, poderia contribuir para a redução das desigualdades existentes), mas a simples transferência da responsabilidade pelo pagamento dos custos atuais do sistema, ou seja, da contribuição coletiva (financiamento realizado com os impostos já pagos pelos cidadãos brasileiros) para os bolsos individuais das famílias brasileiras ou através do endividamento do próprio estudante. O relatório argumenta que isso seria justo, pois a maioria dos estudantes das universidades públicas brasileiras pertence à parcela 40% mais “rica” do país, sugerindo que estes teriam plenas condições de arcar com os custos das mensalidades. O que o relatório curiosamente deixa de salientar é que, no Brasil, esses 40% mais “ricos” incluem todas as pessoas cuja renda familiar mensal é igual ou superior a R$ 1.356,00. De acordo com dados do Datafolha (2013), apenas 30% dos brasileiros têm uma renda familiar mensal superior a R$ 2.034 e, destes, em apenas 9% dos casos a família ganha mais do que R$ 3.390 (sendo estes considerados classe média-alta). Ao propor que a criação de bolsas gratuitas sejam direcionadas aos 40% mais pobres da população, o relatório exclui da possibilidade de elegibilidade à bolsa integral, portanto, todos aqueles jovens pertencentes à classe média-intermediária e classe média-baixa brasileira. Isso significa não uma maior inclusão dos 40% mais pobres, mas a perda do direito à educação superior por parte de uma parcela considerável da população brasileira que, ao contrário do que o relatório leva a entender, não pode, em absoluto, ser considerada rica.
Do ponto de vista da redução das desigualdades na educação superior, a cobrança de mensalidades seria justificada apenas se, para além de ser acompanhada da ampliação do sistema, fosse direcionada, de fato, às famílias brasileiras pertencentes às camadas mais ricas da população, o que corresponderia a, no máximo, 14% da população. Porém, essa é uma política que o atual governo não tem se mostrado disposto a adotar. Como o próprio relatório reconhece, “Certamente, há escopo para aumentar a tributação dos grupos de alta renda (por exemplo, por meio de impostos sobre a renda, patrimônio ou ganhos de capital) e reduzir a dependência dos tributos indiretos, que sobrecarregam os mais pobres. [… Porém,] Tais medidas não são discutidas em detalhe neste relatório”. Cabe perguntar, então, em que momento o governo Temer irá encomendar ao Banco Mundial um relatório para tratar dos privilégios daqueles que realmente se beneficiam da estrutura aristocrática que, ainda hoje, prevalece no nosso país, ao invés de buscar justificativas enganosas para um arrocho ainda mais violento sobre a população brasileira assalariada e um golpe inaceitável aos direitos básicos a ela assegurados pela nossa Constituição.
*Paula Cruz é professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora do BRICS Policy Center.