Até 2022 a tensão entre os Poderes deve aumentar e a democracia será a pauta
Entre tanques que viraram motivo de memes e uma votação que, embora tenha rejeitado o voto impresso, mostrou significativo apoio legislativo (229 votos a favor), o Brasil caminha para 2022 expondo as entranhas de uma democracia combalida
Política é, em muitos aspectos, teatro. Marc Bloch nos conta dos reis taumaturgos que ao impor as mãos sobre seus súditos doentes tinham o poder de lhes curar erupções na pele. Afinal, a teoria do direito divido carecia de símbolos para se embasar. Os estudos medievais talvez sejam os mais profícuos em exemplos, mas não faltam ilustrações de outros tempos em músicas, novelas, cores… “Para frente Brasil, salve a seleção”, podemos cantar entoando um sentido muito além do esportivo. Aliás, no Brasil atual, as camisas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) se tornaram uma insígnia dos apoiadores do governo Bolsonaro. Ou seja, os estudos sobre poder simbólico medieval ainda têm muito a nos ensinar.
No caso brasileiro, os signos da semana foram os tanques do Exército que fizerem um desfile público em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. Tecnicamente, foram 40 veículos blindados, armamentos e outros equipamentos da Força de Fuzileiros da Esquadra em um episódio com contornos para lá de estranhos, com direito a convite para assistir ao desfile entregue em um dos tanques. Fato corrente entre os analistas políticos que o desfile seria uma manifestação de força por parte do governo no dia em que a proposta do voto impresso ia ao plenário da Câmara dos Deputados.
Na prática, enquanto a proposta era rejeitada no Legislativo, o desfile se converteu em algo pífio, com blindados a expelir fumaça e gerar memes. Inclusive, circula na internet um vídeo de um tanque que, ao se encaminhar para o desfile, capotou no acostamento tendo que ser içado. Quase no final da tentativa de “resgate”, o tanque acaba arrastando o próprio guincho para fora da via. Ambos, literalmente, caem em uma espécie de esquete de humor da vida real.

A tensão deve continuar
Embora tudo tenha ares anedóticos, enga-se quem pensa que a questão segue essa equação: fraca demonstração de poder externo e incapacidade de articulação política. De olho em 2022 que, do ponto de vista político, é amanhã, a tendência é que o governo Bolsonaro continue a tensionar as cordas. Se o Legislativo está por hora arrefecido pelo alto aluguel pago ao chamado “centrão” e tem sua articulação própria em torna da Reforma Política (vale lembrar que o voto impresso foi derrotado, mas teve significativos 229 deputados favoráveis), o Judiciário continua sem estar completamente ao alcance do Executivo. Contundo, cenas do próximo capitulo vem aí.
Na agenda dos três Poderes, em breve teremos a votação no Senado para a recondução de Augusto Aras como Procurador Geral da República (PGR); os mesmos senadores terão de aprovar a indicação de André Mendonça, atual Advogado Geral da União (AGU), para o Supremo Tribunal Federal (STF). Consta, que Mendonça já teria números suficientes (41 votos) no Senado, mas sua própria sabatina será um momento em que a indicação do Executivo deverá, ao menos em tese, defender uma postura mais amigável em relação ao Judiciário. De fato, Mendonça é bem visto por muitos ministros do Supremo, mas o momento de fala pública deve explicitar as tensões. São questões palacianas que mostram dois pontos: haverá outros signos que não tanques e até 2022 não há horizonte de calmaria.
Democracia exposta
Se há um morde e assopra nas relações políticas (o Supremo, por exemplo, tem evitado morder a isca de comentar qualquer ação do Executivo, a não ser em uma resposta mais articulada em torno de pontos específicos), por fora, na rua, acontece um espetáculo que demonstra nossa imensa fragilidade democrática. Na terça-feira, dia 10 de agosto, diante do episódio dos tanques, uma matéria do jornal britânico The Guardian vinha com a seguinte manchete: “Bolsonaro’s ‘banana republic’ military parade condemned by critics”.
Eis que voltamos ao poder simbólico. Não precisa ser nenhum gênio da comunicação política para ver os impactos de matérias como essa que veem retratando o desgaste da democracia brasileira nos últimos anos. Vale lembrar que mesmo a cobertura da Lava Jato no fundo expunha o próprio enfraquecimento do sistema político brasileiro e uma distorção do papel da Justiça.
Hoje as pautas são: voto impresso, tanques, ameaças autoritárias… Assuntos que, há tempos, extrapolam sutis análises de discurso. São uma amostra muito contundente que não se trata de algo a especular, embora a análise da conjuntura mais profissional deva articular o que é discurso e o que pode ocorrer no plano institucional. Em todo caso, a questão central é: no quadro atual tanto a mídia independente como uma parte considerável da mídia tradicional deixaram de discutir governabilidade para discutir democracia e golpe. Isso é, em si, algo bastante sintomático.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga). Seu trabalho se volta para a relação entre política, justiça e mídia.