Autoestima dos brasileiros
A caminho de sediar dois grandes eventos, o Brasil já não precisa seduzir a comissão julgadora, mas os investidores. Os benefícios para o moral dos brasileiros e o prestígio internacional já se fazem sentir; não podemos pôr a perder esse que é o único ganho indiscutível
Futebol, definitivamente, não é só um jogo. É patrimônio cultural, mitologia contemporânea, criação artística coletiva. É ferramenta de inclusão social, instrumento de coesão nacional, elemento de construção da identidade coletiva. E um negócio fabuloso.
A Copa do Mundo é o ápice inconteste de todos esses aspectos. É o marco unificado no calendário de centenas de nações normalmente desencontradas na contagem do tempo. O direito de participar de uma Copa é disputado ao longo de vários anos (as eliminatórias sul-americanas começaram em outubro de 2007). O direito de sediar uma Copa, por período ainda mais extenso. A Rússia já defende sua candidatura a país sede de 2018, tendo como rivais Inglaterra, Espanha e Portugal (juntos), bem como Bélgica e Holanda. Estados Unidos, Qatar, Coreia, Japão e Austrália se oferecem para 2022.
Paixão e mercado
Em suas campanhas, os candidatos invocam a paixão nacional – e sua correlação com o potencial econômico. Os russos relembram, por exemplo, a vitória de sua seleção contra a Holanda nas quartas de final da Eurocopa 2008, “catalisadora de comemorações por todo o país, com russos orgulhosos se espalhando pelas ruas de cidades e vilarejos de Vladivostok a Leningrado (…), se felicitando e agitando bandeiras nacionais. É difícil imaginar outro evento que pudesse trazer tamanha exibição de unidade nacional e explosão de emoção positiva”, escreveu Igor Shuvalov, vice-primeiro-ministro da Rússia.
Já Andy Anson, que preside o comitê da candidatura da Inglaterra, defende: “A Inglaterra é apaixonada pelo futebol. A família do futebol, nossa comunidade empresarial, os principais partidos políticos e o público estão unidos em torno de nossa candidatura. Nós nos esforçamos para superar as exigências da FIFA quanto aos estádios e campos de treino, transporte e hospedagem, segurança e finanças. Em tempos tão incertos do ponto de vista da economia global, nossa candidatura minimiza os riscos e maximiza as certezas. A Inglaterra é o mercado n°1 do futebol no mundo. Nas áreas-chave como patrocínio, transmissão de TV, venda de ingressos e pacotes de hospedagem, a Inglaterra é claramente a líder global, fornecendo à FIFA a base para criar a Copa mais bem-sucedida comercialmente de todos os tempos”. Mais adiante, Arson insiste no “resultado sem paralelos, em condição de baixo risco”.
Os Estados Unidos, por meio de Carlos Cordeiro, um dos diretores do comitê de candidatura, reivindicam para si a posição de “um dos maiores mercados quanto ao pagamento de direitos de TV”; a Copa em 2018 ou 2022 daria o “impulso final” para a FIFA “conquistar o mercado” estadunidense, com potencial para elevar as receitas para “novas alturas”. E não deixa de assinalar o “espírito renovado do altruísmo americano, evidente nas prioridades do presidente Obama, em harmonia com a intenção da FIFA de usar o esporte como plataforma para alcançar a mudança social positiva”.
Ouvido pelo banco de investimentos Goldman Sachs, Kevin Roberts, diretor do grupo editorial que publica a revista SportBusiness International, aposta que a decisão da próxima sede deve se basear mesmo em “popularidade e política”, uma vez que as questões relacionadas à infraestrutura não chegam a desequilibrar a disputa. A Inglaterra é uma “aposta segura” quanto à lucratividade – “depois das aventuras mais arriscadas na África do Sul e no Brasil”. Os Estados Unidos e a Rússia têm mais potencial a ser explorado para o crescimento dos negócios do futebol. Já as empresas coreanas têm sido grandes patrocinadoras do futebol (Samsung, Hyundai, LG) e estão em boa posição para fazer pressão – e por aí vai.
Em todos os textos oficiais, a expressão “Copa do Mundo FIFA” aparece acompanhada das iniciais TM – de “Trade Mark”, marca registrada. A tabela que classifica as seleções conforme seu desempenho nos últimos anos é chamada de “FIFA/Coca-Cola world ranking”. Quando se fala em negócios e oportunidades, não sobra um palmo de campo sem uma boa jogada.
Trégua e anestesia
Os apelos à paixão e solidariedade não são meros artifícios. Assim como em outros grandes negócios – cinema, música – a exploração comercial não suprime os sentimentos e emoções que, de fato, acompanham a atividade.
Entrou para a história a trégua estabelecida durante uma guerra civil no antigo Congo Belga, em 1969, para que a delegação do Santos de Pelé pudesse transitar e jogar em segurança…
Em plena crise política, os hondurenhos deixaram suas diferenças de lado na noite em que o país se classificou para a Copa, e as ruas ficaram lotadas com a comemoração. Na Sérvia, a classificação para a Copa também propiciou raro momento de unidade e orgulho nacional.
Caso emblemático de injeção de ânimo foi a vitória da Alemanha na Copa de 1954 (retratada no filme “O Milagre de Berna”) quando o pais se encontrava em ruínas. Um segundo momento como esse foi quando a Alemanha sediou a Copa de 2006 e o povo exultou com a possibilidade de se mostrar amistoso e unido, 16 anos depois da queda do Muro. “Queremos demonstrar que somos um país democrático, que respeita a integridade humana”, disse Peter Struck, ministro da Defesa, em evento promovido pela Fundação Friedrich-Ebert, em sua sede em Berlim, pouco antes do início da Copa: “Does Football Rule The World?” (“O Futebol Rege o Mundo?”). Seu propósito era discutir os efeitos de grandes eventos esportivos para o conjunto da sociedade a curto e médio prazo.
Curiosamente, o aspecto puramente comercial não pareceu, na ocasião, tão bem resolvido quanto os candidatos a país sede acreditam ou dão a entender.
Os organizadores da Copa de 2002 na Coreia apresentaram o balanço de seus investimentos: as receitas com patrocinadores e ingressos não cobriram as despesas com o evento. O número esperado de turistas, 540 mil, não foi atingido – chegou-se a 450 mil. O incremento na atividade turística e comercial depois da Copa também não durou como esperavam. Portanto, os resultados “tangíveis” foram negativos – o que valeu foi o “intangível”: “o aumento da autoconfiança no país, um ‘upgrade’ no espírito de que ‘nós podemos’, uma vitrine para a divulgação de produtos e tecnologia reforçando nossa imagem no exterior”.
A conclusão dos representantes de Portugal (sede da Eurocopa 2004) e da França (Copa do Mundo de 1998) não foi diferente. Os eventos proporcionaram a aceleração de algumas obras e investimentos, mas a um custo altíssimo – inclusive o de manutenção, que é permanente.
Na Alemanha, a Copa ajudou a reformar e revitalizar estruturas antigas – o metrô, em Munique, havia sido construído para a Olimpíada de 1972 – e serviu como impulso para concluir projetos de infraestrutura por meio de parcerias entre governo e iniciativa privada. Mas os organizadores se ressentiam das condições leoninas impostas pela FIFA – que exige uma série de garantias governamentais e isenção tributária sobre todas as suas atividades no país. O fator “risco” é todo do país sede. O fator “lucro” é da FIFA, que recebe milhões (em direitos de transmissão, acima de tudo) sem risco algum. Em longo prazo, o desempenho econômico recente de países que foram sedes de grandes eventos demonstra, de forma clara, que o efeito de uma Copa ou Olimpíada pode ser tão volátil quanto a glória esportiva. Atenas recebeu os Jogos Olímpicos seis anos atrás e nem por isso a Grécia escapou de enorme crise. O Japão se debate com altas taxas de desemprego e déficit público altíssimo.
A caminho de sediar dois grandes eventos, o Brasil já não precisa seduzir a comissão julgadora, mas os investidores. Os benefícios para a autoestima dos brasileiros e prestígio internacional já se fazem sentir; não podemos pôr a perder esse que é o único ganho indiscutível. O desafio agora é dar transparência aos custos e à execução dos projetos. O aficionado por futebol sabe que a organização é a melhor moldura para o talento; que improviso funciona quando há entrosamento; que autoconfiança em excesso prejudica o desempenho, e que não adianta comemorar antes do fim do jogo. Que façamos uma boa Copa e que os ganhos sejam mesmo da nação, e não apenas dos proprietários da marca registrada.
Soninha é jornalista especializada em futebol, vereadora de São Paulo e integrante do Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.