Autonomia universitária e protestos sociais no Peru
Em 21 de janeiro, oficiais da Polícia Nacional peruana destruíram um dos portões de entrada da Universidade Nacional Mayor de San Marcos a fim de prender pessoas que acampavam no campus da universidade. Como resultado, 205 pessoas foram presas e levadas à sede da polícia antiterrorista e da investigação criminal
De acordo com a Defensoria do Povo, 60 pessoas morreram e 1881 foram feridas desde o início dos protestos sociais no Peru, que se iniciaram em dezembro de 2022. Esses protestos ocorrem em todo o país, com seu ponto de partida na região centro-sul, habitada em sua maioria por indígenas e camponses. Em janeiro, grupos de todo o país começaram a se mobilizar em Lima para exigir, entre outras coisas, eleições gerais antecipadas.
Nesse processo de mobilização, diferentes grupos sociais se organizaram para oferecer alojamento e comida para o povo. Isso incluiu a federação de estudantes da Universidade Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM), localizada em Lima, que convidou essas pessoas a passar a noite em tendas no campus universitário. A decisão não foi aprovada pelo gabinete da reitora da UNMSM, o que levou à maior operação policial dentro de um campus universitário desde o regime de Fujimori, em meados dos anos 1990.
Em 21 de janeiro, oficiais da Polícia Nacional peruana destruíram um dos portões de entrada da UNMSM a fim de prender pessoas que acampavam no campus da universidade. Elas tinham ido a Lima para participar dos protestos sociais e foram convidadas a permanecer na universidade pela federação de estudantes. A reitora da universidade havia se oposto à sua presença e, após um incidente com um segurança universitário na sexta-feira à noite, a operação foi realizada no sábado de manhã.
Como resultado, 205 pessoas foram presas e levadas à sede da polícia antiterrorista (DIRCOTE) e da investigação criminal (DIRINCRI), acusadas de apropriação violenta de propriedade alheia, usurpação. Alguns dos estudantes presos estavam em sua residência universitária. Diante da violência e da forma como a operação foi realizada, em 22 de janeiro o conselho universitário emitiu um comunicado denunciando a ação policial. Nesse mesmo dia, todas as pessoas que haviam sido presas, com exceção de uma que tinha um mandado de prisão válido, foram libertadas sem acusação.
No mesmo dia da operação policial na UNMSN, dezenove caminhões da polícia estacionaram ao redor da Universidade Nacional de Engenharia (UNI), também localizada em Lima. A universidade igualmente hospedava pessoas que tinham vindo à capital para participar dos protestos. A diferença com o que aconteceu na Universidade de San Marcos é que o reitor da UNI havia recebido e dado boas vindas a essas pessoas.
Possivelmente, a condenação da incursão em San Marcos por líderes políticos e organizações internacionais levou a que as forças de segurança decidissem não entrar na UNI. Porém, o que aconteceu no Peru, num contexto de polarização social, nos permite discutir três aspectos de extrema importância para a liberdade acadêmica e a autonomia universitária no país. Para esta análise, serão utilizados como base os Princípios Interamericanos sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária, adotados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em dezembro de 2021.
Autonomia universitária e participação no espaço público
Um dos elementos fundamentais da liberdade acadêmica é o compromisso social por parte da comunidade universitária em participar nos debates sobre assuntos públicos. Isso é central para a missão da universidade e está ligado ao direito à educação, à liberdade de expressão e ao direito da sociedade de se beneficiar do progresso científico.
Os Princípios Interamericanos se referem a esse elemento, mas a participação no debate ou o que fazer em público foi geralmente entendida como prerrogativa do corpo docente. Um exemplo recente pode ser o debate em torno as medidas tomadas pelo governo brasileiro para silenciar acadêmicos e pesquisadores que criticaram a política do governo federal para lidar com a pandemia de Covid-19.
Entretanto, diante dos acontecimentos na Universidade de San Marcos, pode ser que essa visão seja limitada. Em outras palavras, a comunidade estudantil tem também o compromisso social de utilizar o espaço universitário para participar no debate público? Se a resposta for afirmativa, então o fato de a federação universitária da UNMSM ter convidado pessoas para acampar no campus universitário poderia ser visto como uma forma de participar, pacificamente, em questões de assuntos públicos.
Pessoalmente, não tenho uma resposta, e é provável que haja uma cláusula em algum regulamento que a proíba. Porém, o uso excessivo da força para prender e deter 205 pessoas deveria levantar essas questões sobre o que é a participação no debate público e como diferentes grupos dentro da comunidade universitária podem participar.
O campus universitário como um espaço livre de violência
Os Princípios Interamericanos estabelecem que o campus universitário é um espaço livre de violência e que o Estado tem o dever de preveni-la. Isso inclui a proibição e punição de toda agressão “contra pessoas por causa de sua participação na comunidade acadêmica ou no exercício de atividades”. As imagens do operativo policial demonstram atitudes violentas nas residências universitárias para prender estudantes. Isso incluiu não apenas o emprego de força física contra aqueles presos, mas também o uso de linguagem humilhante e racista por parte dos policiais.
Lamentavelmente, isso não foi tudo. Há denúncias de que, uma vez levadas à sede da DIRCOTE, as mulheres foram obrigadas a se despir diante dos policiais homens para revistar suas partes íntimas em busca de drogas. E isso sem qualquer indício de que elas estivessem na posse de narcóticos. Trata-se de um ato de violência sexual praticada contra mulheres, incluindo estudantes universitárias, como meio de intimidação. A proteção contra a violência não está somente no campus universitário, mas se aplica a pessoas que foram presas enquanto estavam no campus, pacificamente e sem terem cometido nenhum crime.
A inviolabilidade do espaço universitário
A Constituição Política do Peru reconhece, de forma semelhante a outras cartas fundamentais latino-americanas, a proteção da autonomia universitária, a fim de assegurar sua autonomia administrativa e financeira. É somente em situações excepcionais que as forças de segurança podem entrar no campus universitário.
Nessa linha, os Princípios Interamericanos reconhecem a inviolabilidade do espaço universitário. Isso significa que um campus só pode ser ocupado por terceiros em situações excepcionais, que em qualquer caso devem respeitar os direitos humanos reconhecidos internacionalmente. Nem mesmo a declaração de um estado de emergência pode ser usada para desconhecer absolutamente a liberdade acadêmica e a autonomia universitária.
No caso da Universidade de San Marcos, o próprio conselho universitário rechaçou a forma violenta com que a operação policial foi realizada. Tudo indica que não houve articulação entre o Ministério do Interior e o conselho universitário, usando um incidente isolado como pretexto para entrar na universidade.
É importante reiterar que, de todas as pessoas presas, apenas uma permaneceu sob custódia policial e com um mandado de prisão sem qualquer relação com a entrada na UNMSM ou qualquer outro evento relacionado com os protestos socias. Portanto, o que vemos neste caso é o mau uso do estado de emergência como pretexto para afetar a inviolabilidade do espaço acadêmico.
Conclusões
Em primeiro lugar, a maior preocupação é que se o governo atual não teve dúvidas em realizar esse ato numa das maiores universidades da América Latina, com a operação policial sendo transmitida ao vivo pela televisão e redes sociais; as consequências poderiam ser piores se isso fosse feito em uma universidade rural ou localizada fora de Lima. É por essa razão que organizações de direitos humanos apresentaram um habeas corpus para evitar que esse ataque à autonomia universitária se repita. A título de transparência, a Clínica de Direitos Humanos na Universidade de Ottawa que eu dirijo entrou como amicus curiae neste processo, solicitando ao tribunal que adote diretrizes para impedir que o dever constitucional de manter a paz e a segurança pela força pública viole a autonomia da universidade e a integridade de sua comunidade.
Em segundo lugar, é importante ver os Princípios Interamericanos de Liberdade Acadêmica como uma ferramenta para proteger os membros da comunidade estudantil da detenção e perseguição arbitrárias. Uma das razões de ser de resoluções de organismos internacionais, tais como os Princípios da CIDH, é o avanço das normas em uma determinada matéria. Não se trata apenas de cristalizar ou codificar práticas já estabelecidas. O que aconteceu na Universidade de San Marcos deve nos levar a utilizar esses Princípios como ferramentas para proteger (e não apenas promover) a autonomia universitária.
Não usar os Princípios dessa forma é deixar as ações de solidariedade ligadas à autonomia universitária, como a realizada pelo reitor da UNI, à mercê de interesses políticos. Pelo simples fato de ter acolhido pessoas que vieram a Lima, a Controladoria e o Congresso o estão investigando por um suposto uso indevido dos bens do Estado. Sobre esse ponto, é bom lembrar que a solidariedade também é um direito humano extremamente necessário em um contexto de fortes divisões políticas e sociais. E o fato de ter que recordá-lo em um artigo de opinião é um sinal de quão complicada é a situação dos direitos humanos no meu país.
Finalmente, um dos aspectos mais marcantes é que, até hoje, não houve nenhuma autocrítica por parte do governo ou do Ministério do Interior. Porém, em declarações públicas das autoridades governamentais, é comum que sejam utilizados termos como “violentistas”, “terroristas” e outras expressões similares. Explicar essa questão é tema para um outro artigo, mas se aceitarmos que para parte da opinião pública e do governo é aceitável nomear pessoas que protestam como “terroristas”, então não deve ser surpreendente que as pessoas da Universidade de San Marcos tenham sido presas e entregues à divisão de polícia anti-terrorista. Nessas situações, não existem coincidências.
*Salvador Herencia-Carrasco é diretor da Clínica de Direitos Humanos do Centro de Pesquisa e Ensino de Direitos Humanos da Universidade de Ottawa, Canadá. Membro do Comitê Editorial do portal Rule of Law Agenda. Twitter: @Sherencia77.
Uma versão preliminar deste artigo, em espanhol, foi publicada no portal Agenda Estado de Direito.