Avaliação de risco
Com o avanço da extrema direita no continente, o governo Lula perde espaço e iniciativa nas articulações regionais, deixando de exercer o peso que tem na América
Já houve um momento, em 2006, em que o Brasil se desvencilhou da dependência do Fundo Monetário Internacional, pagou sua dívida e rompeu com a dominação financeira e as imposições do FMI, afirmando sua soberania sobre seu destino.
Em 2008, o Brasil liderou a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), articulando um bloco de países que buscam obter maior integração e desenvolvimento conjunto, complementar suas cadeias produtivas e seus mercados, e desenvolver maior capacidade de defesa de seus interesses comuns e de negociação com as outras partes do mundo. Outro ato de afirmação de soberania.

Agora, a iniciativa por maior autonomia se expressa com a criação do Brics, um “clube político” ou “aliança”, para converter “seu crescente poder econômico em uma maior influência geopolítica”.[1] A adesão de importantes e numerosos países ao Brics faz dele, hoje, o polo político de oposição à dominação norte-americana. É um desafio à hegemonia do império, que não vai ficar quieto, sem reação.
São três momentos distintos, mas em todos se destaca a figura do presidente Lula como liderança nesses processos de afirmação de autonomia, ampliação do espaço público e defesa da democracia e dos direitos humanos. É uma luta por um modelo de desenvolvimento que integre a sociedade, combata a pobreza e melhore a vida de todos. Para isso, deve-se estimular e favorecer a criação de coletivos, grupos, associações, sindicatos, escolas de samba, partidos políticos, enfim, de uma vida social de maiores trocas e interações, de soluções coletivas. Essa realidade só prospera em ambientes democráticos, de liberdade e valorização da dignidade de cada um.
É de se notar que o governo Lula III opera em uma realidade distinta, tanto nacional quanto regional. Com o avanço da extrema direita no continente há uma fragmentação das articulações latino-americanas como o Mercosul e a Unasul, e uma composição do governo brasileiro que lhe deu a vitória eleitoral, mas lhe retira o impulso transformador anterior. O governo Lula perde espaço e iniciativa nas articulações regionais, deixando de exercer o peso que tem no continente.
Nas primeiras medidas do novo governo Trump, fica clara sua disposição beligerante. As novas taxações de produtos do Canadá e do México, assim como a ameaça de incorporar a Groenlândia e controlar novamente o Canal do Panamá, não parecem mais ser bravatas. A deportação de imigrantes ilegais está em curso, com grande cobertura midiática; Trump já mudou o nome do Golfo do México para Golfo da América; já sujeitou a Colômbia a suas condições de deportação de imigrantes, ameaçando taxar seus produtos com destino aos Estados Unidos; já impôs aos membros da Otan a exigência de uma elevação do gasto em compra de armamentos de 2% para 5% do PIB – ressalte-se, compra de armamentos norte-americanos.
Entre suas ameaças, há várias que envolvem o Brasil, que passou a ser considerado um swing state, isto é, de uma posição servil aos Estados Unidos durante o governo Bolsonaro, a política por conquista de maior autonomia frente ao império, expressa pelo governo Lula, torna o Brasil um inimigo de Washington, na visão de Trump.
Trump já declarou que não aceita a taxação de 15% de imposto sobre as multinacionais norte-americanas e que vai taxar em 100% os produtos dos países que buscarem sair do dólar como moeda internacional. Ele está se referindo à iniciativa do Brics de buscar um sistema próprio de compensações que permita sair do sistema Swift, controlado pelos Estados Unidos, e de promover e estimular transações comerciais entre seus integrantes com as moedas nacionais. Essas iniciativas são a verdadeira ameaça à hegemonia do dólar. E, para defender o dólar como moeda global, Trump pode ir à guerra.
Se somarmos a esses elementos de análise o alinhamento à extrema direita e a guerra de valores promovida por um governo supremacista branco, racista e plutocrata, o quadro de uma nova realidade política, que se afasta rapidamente da democracia e se orienta para o fascismo, torna-se cada vez mais real. E o alinhamento das plataformas digitais, liderado por Elon Musk, garante-lhe a manipulação midiática em escala global.
O Brasil tem nos Estados Unidos seu segundo mercado mais importante, com uma corrente comercial de cerca de US$ 80 bilhões, em 2024. As exportações, principalmente de petróleo bruto, produtos semiacabados de ferro e aço e aeronaves, somam cerca de US$ 40,3 bilhões. As importações são motores e máquinas não elétricos, óleos combustíveis de petróleo e aeronaves. Somam US$ 40,6 bilhões.
São previsíveis as pressões norte-americanas para combater o Brics, acabar com as pretensões de autonomia na América Latina e destruir a capacidade do governo Lula de liderar qualquer outro processo de busca de autonomia perante o império.
Uma campanha de desgaste da imagem do governo Lula coordenada na mídia e nas plataformas digitais, associada à taxação de produtos brasileiros e a exigências de distanciamento da China, poderá criar, internamente no Brasil, a mobilização de um bloco de oposição liderado por setores financeiros e empresariais pró-Estados Unidos para desestabilizar o governo, acabar com a liderança de Lula e realinhar o Brasil com os interesses norte-americanos. Não será a primeira vez que os Estados Unidos lançam mão do golpe político para tentar depor alguém que veem como seu inimigo. A deposição da presidenta Dilma e a prisão de Lula que o digam.
Em uma sociedade de classes, com o capitalismo assumindo seu novo e cada vez mais perverso modelo neoliberal, a dominação dos grandes bancos e fundos de investimento impõe governos autoritários e a destruição da democracia e de todas essas teias de relações que a sociedade vai criando para viver coletivamente, defender-se e defender seus direitos.
“Não existe sociedade, existem indivíduos.” Bandeira política para destruir as organizações populares, essa frase, dita pela ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher nos anos 1990, vale para expressar também o entendimento de Trump sobre a questão. Equivale a dizer: não existem cidadãos, existem súditos, e estes têm de obedecer sem protestar.
As reações ainda são débeis. A pedido da Colômbia, depois de seu embate com os Estados Unidos sobre a questão da deportação de imigrantes, a líder da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac),[2] Xiomara Castro, presidente de Honduras, convocou uma reunião extraordinária, cancelada por falta de consenso. O Brasil perdeu a oportunidade de liderar esse movimento de articulação e posicionamento regional, apoiando a convocação de Xiomara para que a reunião se efetivasse. E procura não polarizar com os Estados Unidos sobre a questão das deportações, usando a via diplomática para tentar negociar melhores condições para os brasileiros deportados.
Mas não há que se iludir. O governo brasileiro terá de se preparar para enfrentar novos conflitos de interesses com o governo norte-americano, suas pressões e tentativas de desestabilização política. E o caminho para isso é buscar articular-se com outros países, como o México, a Colômbia, o Chile, além de dar prioridade para um maior entrosamento com o Brics, ampliando o leque de relações comerciais com seus integrantes e com os países da África.
[1] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/BRICS
[2] A Celac é um bloco regional criado em 2010, reúne 33 países da América Latina e do Caribe e atua na cooperação para o desenvolvimento do bloco em temas como educação, infraestrutura, desarmamento e mudanças climáticas. Também busca fortalecer o diálogo da região com, por exemplo, a UE, a China e a Rússia. Ver https://www.band.uol.com.br/bandnews-fm/noticias/celac.