Banheiro do Papa: engajamento agridoce
Comédia popular de beleza plástica e certos efeitos (como montagens aceleradas e enquadramentos acrobáticos), o filme de Fernandez e Charlone celebra a inventividade, o jeitinho brasileiro-latino, a recusa à melancolia. Falta-lhe a crítica política — aparentemente, sua intenção inicialBruno Carmelo
Uma visita do Papa, numa terra tradicionalmente católica como a América Latina, é sempre um grande evento. Principalmente se Sua Santidade escolheu curiosamente visitar um vilarejo paupérrimo e minúsculo, esquecido na fronteira entre Uruguai e Brasil.
Esse visitante vai mudar completamente a vida dos cidadãos. Vivendo principalmente do contrabando, de pequenos comércios ou da corrupção (no caso, policiais que lucram também com o transporte ilegal de produtos pela fronteira), esses uruguais vêem no Papa um sinal direto de prosperidade. Porque religiosidade e ilegalidade caminham, no filme, de mãos dadas.
O primeiro significado da visita é de ordem puramente moral: o pontífice traria paz, prosperidade e alegria ao povo. Uma televisão local se encarrega de inflar a importância do evento e o amor da pequena região ao Papa. Como acontece freqüentemente, a figura do líder maior da Igreja serve a reacender aquela fé há certo tempo esquecida.
“Um invariável halo dourado, que dá a impressão de ser sempre fim de tarde no Uruguai”
Caso a prosperidade não venha até eles, eles vão buscá-la: contando com a chegada de milhares de turistas brasileiros, a cidade se mobiliza para armar barracas de comidas, bebidas e lembrancinhas. Mais inusitado ainda é Beto, protagonista da história, que tem a feliz idéia de criar banheiros para os visitantes.
A narrativa se declara abertamente como uma comédia sobre a precariedade de vida dos uruguaios. Nada de tristeza frente ao pauperismo. Essas pessoas são todas alegres e atrapalhadas, e as alternativas encontradas por elas para driblar os problemas despertam riso. A esposa de Beto quer vender medalhas brasileiras aos brasileiros, Beto faz pesquisa sobre banheiros, a televisão local é de um amadorismo atroz, os contrabandistas têm meios simplícissimos de driblar a vigilância.
Consumada a visita e o prejuízo, Beto aparece frente ao seu banheiro pouco utilizado, gritando “eu tenho uma idéia!”. Nada de tristeza: a platéia explode em risos. A vida continua
O Banheiro do Papa é um certo elogio ao “jeitinho brasileiro”, aqui expandido em versão latino-americana. Essa consciência da capacidade de “se virar” mesmo nas situações mais adversas e ainda que seja contra as normas, sempre foi uma qualidade da qual latino-americanos aprenderam a se orgulhar (mesmo que exista um elemento depreciativo nessa obrigatoriedade de rir da miséria). Aqui, os pobres são divertidos justamente por sua ingenuidade, por serem bons homens tolos.
Poderíamos ver no filme uma crítica contra o catolicismo? Contra as mídias? Embora a visita do Papa seja menos frutífera financeiramente do que se esperava, e os habitantes fiquem todos no prejuízo face a uma quantidade enorme de produtos jogados fora (numa certa de impacto, com intenção de denúncia social), Beto aparece na cena seguinte, frente ao seu banheiro pouco utilizado, gritando “eu tenho uma idéia!”. Nada de tristeza: nessa hora, a platéia explode em risos. E a vida continua.
A direção, igualmente, não traz à estética do filme nada de particularmente engajado. Junto do uruguaio Enrique Fernandez, o brasileiro César Charlone (fotógrafo de Cidade de Deus) assina a direção e transpõe ao filme seu eterno deslumbramento pela luz do sol, de modo a contornar todos seus personagens de um invariável halo dourado, que dá a impressão de ser sempre fim de tarde no Uruguai. O movimento também o agrada particularmente, e todas as cenas dos personagens com suas bicicletas são compostas de montagem acelerada e enquadramentos acrobáticos.
Ao fim da sessão, grande parte da platéia mostrava um grande sorriso nos lábios. O Banheiro do Papa funciona muito bem como comédia popular, e apresenta uma grande beleza em suas imagens. Somente a parte de crítica política ganha menor importância que esses outros fatores; o que é uma pena, já que a intenção do projeto parecia ser justamente essa ironia política.
O Banheiro do Papa (El Baño del Papa)
Co-produção Brasil-França-Uruguai.
Dirigido por Enrique Fernandes e César Charlone.
Com César Troncoso, Virgínia Ruiz, Virgínia Mendez.
Ano de produção: 2006.
Duração: 1h35.
Veja mais:
Fotos
Trailers
Mais:
Bruno Carmelo assina a coluna Outros Cinemas. Também mantém o blog Nuvem Preta, onde resenha e comenta outros filmes. Edições anteriores da coluna:
Mein Führer, ousadia e frustração
Lento e forçadamente debochado, o filme mais recente de Dani Levy pretende debater a relação entre Hitler e o poder. Mas, ao criar a imagem de um ditador pobre-coitado, converte-se em obra estéril, que não dialoga nem com a História, nem com a atualidade.
Greenaway dialoga com Rembrandt
Em seu mais novo filme, diretor inglês debate as artes plásticas. Mas a abordagem ? inovadora, ousada, livre de referências banais ? perde-se, em parte, na tentativa de criar suspense policial e apontar, em Ronda Noturna, a imagem de um assassinato
Filme debate o estado do mundo
Seis diretores aceitam desafio de organização portuguesa e produzem obra coletiva sobre o tempo em que vivemos. Contribuições enxergam crise e necessidade de mudanças, mas o fazem por meio de poesia e metáforas ? exceto no caso do curta brasileiro de Vicente Ferraz…
Hou Hsiao Hsien celebra a criação
Em Le Voyage du Ballon Rouge, novo filme do diretor chinês, os artistas são trabalhadores comuns, que andam pelas ruas, fazem compras, pagam aluguel. Mas uma série de surpresas estéticas sugere quanto é singular o seu ofício: propor outras formas, ousadas e inventivas, de enxergar o mundo e a vida
A morte é para toda a vida
Coluna revê El espíruto de la colmena (1973), primeiro filme de Victor Erice. Muito mais que homenagem ao cinema, ou debate sobre influência da TV, obra investiga o amadurecimento, em especial o trauma provocado pela noção de que teremos fim
Alexandra, o elemento perturbador
Em seu novo filme, Alexandre Sokurov introduz uma avó num acampamento de soldados russos na Tchetchenia. Por meio de um jogo de opostos, ele passeará por temas como as relações familiares, os desejos incestuosos, os conflitos entre Rússia e vizinhos e, em especial, a banalidade da guerra
Como se não fosse ficção
Abdellatif Kechiche dá ares de documentário a La Graine et le Moulet, seu novo filme ? talvez para fundir prosa e poesia e criar obra sutil em que afirma, sem descambar para o panfleto, a igualdade entre franceses e marroquinos, cristãos e muçulmanos
XXY aborda um tabu
Diretora argentina encara o desafio de tratar do hermafroditismo, um tema quase ausente do cinema. Mas falta uma pitada de ousadia: opção por narrativa lateral, baseada sempre em metáforas e alusões, produz clima opressivo, que contrasta com humanismo da proposta
Garage: o mito do homem bom
Filme irlandês premiado em Cannes traça, delicado e flertando com o humor negro, o retrato de um ser solitário, que não tem idéias próprias nem opiniões divergentes. Alguém tão puro que não encontrou seu lugar na sociedade
California Dreamin? e os absurdos do poder
Premiado em Cannes, filme de Cristian Nemescu serve-se da comédia e do absurdo para revelar impasses da autoridade, impotência oculta do militarismo e limites de certas resistências. Mesmo inconclusa, por morte do diretor, obra revela ascensão do novo cinema romeno
Suspiria, arte e sentidos
Avesso às fórmulas e clichês dos filmes de terror, o italiano Dario Argento produz obras