Banquetaço: ativismo alimentar e a construção de novas formas de expressão política
A ansiedade alimentar que atinge o comedor contemporâneo é resultado das inúmeras crises alimentares que vêm afetando as diferentes sociedades e, também, da intensificação, industrialização e globalização do sistema agroalimentar que geram um distanciamento e um desconhecimento de como nosso alimento é produzido
“Liberdade ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões”
(Guimarães Rosa)
Nas últimas semanas, notícias, imagens e informações sobre o Banquetaço ganharam espaço nas mídias e redes sociais. Mas o que é, afinal, o Banquetaço? Um movimento político, uma refeição festiva, uma rede social? É muito difícil situar novos fenômenos e comportamentos sociais em enquadramentos analíticos plenamente satisfatórios. É por aproximações sucessivas, portanto, que conseguimos os melhores resultados para definir esse fenômeno.
O Banquetaço pode ser enquadrado no conceito de “ativismo alimentar”, considerado um dos movimentos sociais mais vibrantes da atualidade e que se debruça sobre questões que vão além da comida. É uma vertente do ativismo político, que corre por fora dos partidos, e que emergiu como uma perspectiva mais porosa e criativa de fazer política, sendo recorrentemente associado a causas progressistas e à promoção da equidade e dos direitos das minorias, visando uma transformação da realidade a partir de estratégias coletivas. As manifestações contra guerra do Vietnã e o uso de energia atômica e a favor dos direitos das mulheres e do meio ambiente são repertórios que se encaixam nos clamores do ativismo político que surgiram nas décadas de 1960 e 1970.
O ativismo político envolve processos participativos e diferentes formas de comportamentos coletivos que incluem a defesa, a propagação e a manifestação pública de ideias; o boicote no ato de consumo – chamado de buycott; a realização de manifestações públicas organizadas –, protestos, comícios, marchas, recrutamento de simpatizantes e o fomento a diferentes tipos de campanhas. Além disso, a estratégia privilegia as ruas e utiliza os meios de comunicação de massa. Recentemente, as novas formas de ativismo têm recorrido as redes sociais para questionar as diferentes formas de autoridade, os valores e as instituições do establishment e para divulgar visões de esquerda, a favor da liberdade de expressão e de apoio a movimentos ambientais e sociais das minorias étnicas, raciais e sexuais. Em outras palavras, sua pauta política e cultural é tão ampla quanto são as formas concretas de opressão, segregação e “invisibilização” dos atores sociais modernos. Cada pauta de reivindicação encontra sua forma de expressão sem que se unifique por afinidade política, como é próprio dos partidos.
Mais recentemente, nas ciências sociais, foram surgindo teorias de médio alcance sobre a cultura política contemporânea para dar conta desses comportamentos. Ulrich Beck propõe o conceito de subpolítica que remete ao propósito de modificar regras “de baixo para cima” – como um desdobramento não-institucional da política clássica; as ações elencadas por Anthony Giddens como política-vida ou políticas emancipatórias se referem a formas de ativismo através dos quais o âmbito pessoal torna-se imediatamente político; a antropolítica, de Edgar Morin, remete a uma prática política civilizatória colocada sob o domínio da humanidade a serviço do planeta. Por último, mas não menos importante, o discurso das micropolíticas das práticas cotidianas, dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari, transfere o poder para as mãos dos indivíduos, grupos e organizações. São teorias que têm em comum o deslocamento das ações transformadoras para um território ainda não “colonizado” pelos partidos tradicionais, mesmo os de esquerda.
Diante da própria crise do Estado democrático, conforme desenhado pelas teorias políticas, do declínio dos Estados-nação sob a globalização, além da descrença e da decadência moral que envolve os espaços e estratégias formais de ação política – os processos eleitorais, os partidos, o parlamento e o sistema judiciário –, toda forma de ativismo político ou ações políticas “não legitimadas como formais” focam nas “ações orientadas por cidadãos”, privilegiando uma visão segundo a qual uma “nova ordem” está em processo de constituição, embora não se saiba onde essas ações vão chegar. Essa é outra característica desses movimentos. São surpreendentes, criativos e não se encaixam em estruturas teóricas conhecidas.
No caso do ativismo alimentar, as ações são voltadas para assuntos (e criação de neologismos) diversos como o agrobiopoder, a reforma agrária e a soberania alimentar; a ecogastronomia; o risco e as contaminações alimentares; a insegurança alimentar e a fome; o fortalecimento dos atores sociais que produzem comida (no caso, os agricultores familiares, agroflorestais, quilombolas, ribeirinhos, pescadores indígenas, neoruralistas); o fomento de sistemas agroalimentares tradicionais; a valorização do prazer de comer e a importância da comensalidade; o bem estar animal e ao questionamento das visões antropocêntricas; as questões de gêneros e valorização do feminino ligadas a diferentes instâncias do ato de comer. Mas tudo isso aflora por que? É sintoma de que?
A ansiedade alimentar que atinge o comedor contemporâneo é resultado das inúmeras crises alimentares que vêm afetando as diferentes sociedades e, também, da intensificação, industrialização e globalização do sistema agroalimentar que geram um distanciamento e um desconhecimento de como nosso alimento é produzido. Nesse contexto de “gastroanomia”, nos termos de Fischler, o ativismo alimentar desenvolve-se como um guarda chuva que abriga diferentes movimentos e discussões de amplo alcance nas sociedades nos quais a comida segura aparece como elemento transversal, como a agroecologia e a agricultura familiar; o movimento da segurança alimentar e nutricional; a agricultura orgânica e todos os sistemas agroalimentares sustentáveis; o comércio justo; o slowfood; o locavorismo; o vegetarianismo; o veganismo; o freeganismo, a alimentação viva – entre os mais conhecidos – e o jovem brasileiro Banquetaço. Todos esses focos de ativismo, mesmo que guardando as suas especificidades, miram uma realidade que pode ser resumida na busca da “comida de verdade”, termo cunhado na V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em 2015.
De forma geral, as premissas do Banquetaço – uma alusão a outras formas de manifestações públicas bem humoradas e irreverentes como o Beijaço e o Mamaço – partem justamente da pluralidade das reinvindicações em torno desse tipo de comida. As ações do Banquetaço implicam o envolvimento maciço e diversificado da população que inclui agricultores, estudantes, intelectuais, chefes de cozinha, servidores públicos e ativistas. A divulgação e a organização dos eventos ocorrem sempre através das redes sociais e suas ações acontecem em espaços públicos e são discutidas e promovidas horizontal e coletivamente.
O movimento surgiu e cresceu com grande dose de espontaneísmo pela associação voluntária de centenas de pessoas, dezenas de ONGs e comunidades organizadas na Grande São Paulo para protestar, em 2017, contra o projeto do então prefeito João Doria de incluir um tipo de alimentação super-processada na alimentação escolar e que seria também distribuída para pessoas em situação de rua. A “farinata” não só foi repudiada como o movimento que se opunha a ela impôs significativa derrota ao prefeito, que teve que arquivar seu projeto. Serviu também para mostrar uma hierarquia católica demasiado comprometida com o poder secular, deixando de lado seus compromissos históricos com os despossuídos.
De lá para cá, seus coordenadores realizaram mais alguns atos públicos, como o Banquetaço realizado em Goiás (GO), em 2018, em meio a uma congregação de cientistas e ativistas discutindo o futuro da agroecologia e seus problemas presentes.
Mas a versão que aconteceu este ano foi muito mais surpreendente: mais de mil pessoas, distribuídas em vinte estados da federação, totalizando 41 cidades, organizaram uma manifestação pública no dia 27 de fevereiro para protestar contra a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), “um espaço institucional para o controle social e participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, com vistas a promover a realização progressiva do Direito Humano à Alimentação Adequada”, conforme definição no seu site.
Durante os eventos foram servidas mais de 20 mil refeições em manifestações independentes e articuladas nacionalmente, a partir de uma estrutura simples. Grupos de whatsapp, formados por ativistas de cada estado que se juntaram como uma bola de neve, especializaram-se por funções ou atividades: coordenação geral; infraestrutura e organização do espaço; cartazes e artes; cozinha; limpeza; mobilização e articulação com coletivos; divulgação, comunicação e educação; finanças; música, teatro e artistas; segurança; transporte; coleta de plantas alimentícias não convencionais (Panc).
As pessoas que tomaram conhecimento dessa forma de organização solidarista e voluntária foram, gradativamente, afiliando-se aos grupos que desejavam. Houve estados onde a segurança, por exemplo, foi feita por organizações autodeclaradas de policiais antifascistas. Na cozinha, foram definidos cardápios de acordo com a cultura culinária local ou pelas preferências dos cozinheiros, como cardápios veganos. O importante é que, inspirado pela cultura da dádiva, tudo adveio de doações de tempo ou de produtos do trabalho e não se aceitaram doações institucionais em dinheiro.
O voluntariado foi tão fundamental para o movimento quanto a ideia de compartilhamento em torno de uma mesa de alimentos saudáveis da sociedade civil que disse “não”! O Banquetaço de 27 de fevereiro foi um enorme “ninguém solta a mão de ninguém”, tentando abraçar o Brasil da esperança.
Mas como foi possível que o Banquetaço, sem qualquer estrutura permanente, sem qualquer financiamento, ganhasse, em pouco mais de um ano, expressão nacional? Como acolheu e decuplicou o número de ativistas dispostos a organizar atos públicos de protesto contra a extinção do Consea nacional?
Talvez o aspecto inicial a considerar seja o tema. A alimentação diz respeito à vida de todas as pessoas e a alimentação de qualidade que o Banquetaço apoia remete a um futuro melhor em termos de saúde, nutrição e prazer ao comer. Um “futuro melhor” é ideal perseguido por todo mundo, independente da orientação política. E a comida é uma forma concreta, material e universal de ligar esse ideal ao tempo presente e futuro. É um futuro que se pode vislumbrar confrontando o que se deseja – a comida agroecológica, livre de venenos, proveniente da agricultura familiar – como sistema agroalimentar hegemônico e o agronegócio, comandado pelo czares da era contemporânea – a indústria de insumos agrícolas e dos ultra processados e as grandes redes varejistas. É portanto, de saída, um movimento político anti-monopolista. E como o Banquetaço prega novas relações com a natureza e entre os seres humanos, apresenta um grande potencial de transformar as relações de produção e encaixa-se no conceito de “repertório político orientado por uma causa específica”. Além disso, o Banquetaço tem uma característica peculiar relacionada ao que o filósofo francês Nicolas Bourriaud chamaria de promoção de sociabilidades específicas que acontecem festivamente em torno de uma farta mesa, oferecendo pratos preparados a partir de ingredientes locais, frescos e frequentemente orgânicos, compartilhados por todos que passam na rua. Enquanto se come, acontecem os encontros casuais e o compartilhamento de ideias e estratégias, sob uma forma de ativismo que evita qualquer forma de intervenção contrária simplesmente porque é pacífico, é inclusivo, comovente e surpreendente, numa combinação de afetos e simbologia libertária. Como manifestou-se uma participante, o Banquetaço foi capaz de promover a maior rede social que existe – o alimento.
O Banquetaço sintoniza-se com as premissas de Janet Flammang, autora do livro Taste of civilization, que analisa os rituais das refeições e de preparação de alimentos como bases para uma educação voltada à promoção da civilidade, ao cultivo da democracia e ao exercício da cidadania. Flammang analisa o que chama de crise de civilidade que ocorre nos Estados Unidos sob a ótica da falta de tempo dedicada ao diálogo aprendida à mesa, no momento de compartilhar refeições. Para essa autora, reflexão e generosidade são sentimentos implícitos na comensalidade, como aqueles que o movimento coloca em prática nos espaços públicos.
Alguns “artivistas alimentares” brasileiros já utilizaram dessas estratégias do Banquetaço. O coletivo de artes carioca Opavivará enfatiza a sociabilidade no ato de comer ao oferecer, em espaços como praças públicas, almoços grupais e gratuitos. Uma estrutura de cozinha é montada na “praça de alimentação” e os passantes são convidados a preparar e a consumir as refeições coletivamente. A refeição torna-se um momento de agregação social, invertendo a ordem do privado e familiar e da relação entre comida e condição econômica.
No projeto Banquetes, um grupo convidado pela artista Louise Ganz também propõe refeições compartilhadas sobre mesas com toalhas, flores e pratos de comida cuidadosamente colocadas em espaços públicos de Belo Horizonte, expandindo o espaço doméstico para a rua, ampliando arenas de vivência das cidades e humanizando o meio urbano. A ação favorece a ideia de ocupação de espaços modernistas assépticos e sem vestígios de ocupação fazendo o que Frederico Canuto, professor da UFMG, chama de “uma ruptura com o cotidiano de distanciamentos”.
A luta contra a fome no Brasil iniciada por Josué de Castro e fomentada por Betinho e Dom Mauro Morelli nos anos 1990 é preocupação central do Consea, e é outro aspecto sensível que contribuiu para a adesão ao Banquetaço, já que o Brasil está na iminência de voltar para o Mapa Mundial da Fome do qual saiu em 2014. Boa parte dos participantes, ligados historicamente a essa luta, entende que o Consea é central para promover a alimentação adequada como direito de todos, e estão dispostos a lutar contra sua extinção como quem defende seu próprio território.
É preciso considerar também que a Constituição de 1988 criou um ambiente político propício para a participação cidadã através de conselhos consultivos e deliberativos, compostos por representantes da sociedade civil como organismos auxiliares na formulação de políticas públicas. Criado em 1993, em paralelo à Ação da Cidadania, o Consea teve como atribuição articular municípios, estados e federação, junto com a sociedade civil, para rever os programas federais existentes e fazer o Plano de Combate à Fome e à Miséria. Foi por esse caminho que o Brasil, pela primeira vez, se colocou fora do Mapa Mundial da Fome.
O importante, portanto, é atentar para uma nova cultura política que vai se formando, apesar do ambiente autoritário sob o qual vivemos. O imenso crescimento do Banquetaço não só mostra que está em sintonia com as pautas reivindicativas da sociedade como também que encontrou, por conta própria, uma forma organizativa capaz de crescer ao menor estímulo. O Banquetaço organiza-se, desde o início, como uma rede de comunicação que conecta atores políticos já sensibilizados para as bandeiras dos atos públicos que promove. Não depende de proselitismo de convencimento, visto que as pessoas e organizações que vão aderindo paulatinamente já se identificam com essas bandeiras, encontrando no anúncio de um Banquetaço a oportunidade de se manifestarem junto com outras pessoas e entidades que abraçam as mesmas causas.
O quadro de desalento político é o caldo de cultura do Banquetaço. Ele ativa fortemente o solidarismo, inclusive pela representação teatral de uma espécie de “santa ceia laica”, onde são servidos os alimentos doados que correspondem a uma utopia – alimentos limpos, sustentáveis e nascidos de relações sociais mais justas – contrapondo-se, ao mesmo tempo, ao mundo do agronegócio, agrotóxicos e alimentos ultra-processados, às políticas excludentes e ao autoritarismo. Em paralelo a esta teatralização, fluem os discursos políticos de repúdio ao presente.
Claro que essa forma de ativismo também exerce atração sobre o mundo político formal. Partidos de esquerda e seus deputados querem se juntar. Mas esta não é uma decisão fácil para um movimento que se pretende apartidário ou suprapartidário, conforme diferentes óticas de seus participantes. Muitas discussões se dão nos grupos de whatsapp e cada estado ou grupo é autônomo para decidir se concede ou não a palavra aos políticos. Às vezes setores do próprio governo buscam aderir.
É muito difícil para a teoria política moderna contemplar essa forma de ação e pensar sua interação com o Estado. Pioneiramente, Gramsci (esse autor que os novos áulicos amaldiçoam) nos deu uma indicação sobre aquilo que Hobsbawm, posteriormente, chamaria “pré-política”. O autor italiano chama a atenção para os movimentos que congregam massas em permanente estado de agitação “alarmada”, mas são incapazes de dar uma expressão unificada aos seus anseios – o que só acontece quando se tornam “Estado”. Só nele os anseios populares poderiam se unificar, como hoje ele unifica os anseios burgueses. Avançar para ocupar o Estado, eis o que parece ser o único caminho. Como fazê-lo sem partidos políticos populares e fortes é ainda uma questão.
*Carlos Alberto Dória é doutor em Sociologia pela Unicamp, especializado em Sociologia da Alimentação, e um dos coordenadores do movimento Banquetaço; e Elaine de Azevedo é nutricionista e doutora em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo pesquisando Sociologias da Saúde, Ambiental e da Alimentação e participante do Banquetaço.