Bibliotecas comunitárias, mulheres e participação social
As bibliotecas comunitárias se mostram como um respiro a todos aqueles que buscam usufruir de ações culturais, sobretudo como forma de resistência ao que está ausente, precário ou escasso nas condições materiais que as tornam possíveis. Cada espaço é singular e assume características próprias de seus locais, legitimados pelas necessidades advindas de suas realidades
Brasil. Rio de Janeiro. Baixada Fluminense. Esse é o lugar. Marcado por um padrão geográfico segregacional que se consolidou de forma nítida e ampla ao longo dos anos, imperando a expressão “Baixada para os de baixo”. Nós somos “os de baixo”. E, nesse contexto, a Baixada Fluminense (BF) atravessa o século XIX e XX suportando diversas crises econômicas, transformações espaciais sem uma composição sólida de infraestrutura e políticas públicas de Estado, o que fez da região conhecida como “cidades-dormitório”.
À parte das questões mais básicas de urbanização, quando falamos de Educação e Cultura, as cidades da BF constituem uma série de problemas que já poderiam – ou deveriam – estar superados, como é o caso dos baixos índices de IDH, precárias condições de instituições educacionais e ínfimos equipamentos culturais. Aliado a esses fatores, o nosso lugar ainda sofre a violência institucionalizada pelas mãos do Estado e de grupos paramilitares.
Como então a minha gente não se resigna? “A gente combinamos de não morrer”. Essa frase do livro Olhos D’Água de Conceição Evaristo diz muito na nossa história. Não seria nossa origem, nosso distanciamento da metrópole, as inúmeras tentativas de nos fazer crer que não tínhamos direito à cidade, à habitação e a qualquer outra garantia para nossa sobrevivência que impediriam as nossas escrevivências.
Desde os anos de 1970, diversos movimentos sociais organizados em torno da leitura na BF encontraram no poder coletivo o caminho para escrever uma história diferente da que queriam para nós, formando movimentos literários nas descentralidades. Ao mesmo tempo, instituições sociais preocupadas com o desenvolvimento de suas comunidades começavam a pensar projetos que alcançassem as bases e apoiassem a garantia de direitos.
Assim se inicia a história de muitas bibliotecas comunitárias: a partir da intensa vontade de lideranças populares em mudar as narrativas nas periferias da BF, da parceria com instituições sociais e movimentos literários nas cidades. Mal sabiam que estariam reescrevendo a história de muita gente ao promover visibilidade às bibliotecas como um ambiente de integração social, provocando resistência àqueles que nos queriam isolados e quebrando as tentativas de silenciamento da nossa cultura.
A comunidade faz sua própria cultura e ela não está no campo do imaginário. São pessoas reais que compartilham nesse espaço em comum, as experiências, os sentimentos e seus projetos para um futuro melhor. Pertencem simbólica e fisicamente às esferas dos direitos e deveres, sem fugir de suas responsabilidades sobre a construção de seus rumos. Do encontro de famílias, vizinhos e lideranças locais resultam as produções de sentido para o bem-viver. Por isso, as práticas sociais em ação geram processos mais dinâmicos de participação em tudo o que ali acontece.
O município de Nova Iguaçu é um exemplo do esforço coletivo dos atores dessas comunidades que estão à margem do centro. Para nós, não é cidade-dormitório, mas sim, Cidade-Poesia. Onde todos os dias pelo menos 22 mulheres acordam dispostas a encantar alguém por meio da literatura, crendo que esta deve ser entendida como um direito humano bem como ensina Antonio Candido. Essas mulheres integram a Rede Baixada Literária que surgiu em 2009 com a missão de democratizar o acesso ao livro e leitura de qualidade na Cidade-Poesia.
Apesar da efervescência cultural na cidade, o cenário que se coloca é de apenas uma Biblioteca Pública localizada no centro do município, de difícil acesso aos moradores de áreas mais distantes e que muitas vezes necessitam de mais de uma condução para chegar lá. Além disso, é notória a concentração de recursos públicos direcionados para ações e outros equipamentos culturais no centro da cidade, excluindo ou dificultando o acesso dos moradores das periferias.
Na contramão dessa perspectiva, as bibliotecas comunitárias se mostram como um respiro a todos aqueles que buscam usufruir de ações culturais, sobretudo como forma de resistência ao que está ausente, precário ou escasso nas condições materiais que as tornam possíveis. Cada espaço é singular e assume características próprias de seus locais, legitimados pelas necessidades advindas de suas realidades. É nesse ambiente que emerge uma riqueza exponencial de potencialidades para a formação de famílias leitoras e possibilidades de interação entre os moradores da região e das adjacências, o que torna esse espaço viável para a efetivação de práticas emancipatórias por meio da literatura.
Ancorada nesta proposta e incentivada pelo Programa Prazer em Ler (PPL) do Instituto C&A desde 2006, a proposta inicial da Rede Baixada Literária era ser um grande movimento de bibliotecas comunitárias que abarcasse toda a Baixada Fluminense, parte daí o nome “Baixada Literária”. O sonho foi se transformando a partir da reflexão de que cada município da BF tinha suas particularidades, principalmente, no que diz respeito à luta por políticas públicas do livro que dependem do contexto local para serem implantadas, efetivas e executadas. Diante dessa dificuldade, optou-se em uma decisão coletiva de que o movimento fosse organizado restritamente em Nova Iguaçu, que por si só já é uma cidade geográfica e populacionalmente gigante.
Em 2010, a organização do “Polo” Baixada Literária reunia seis bibliotecas comunitárias. Conforme o movimento foi se expandindo, mais interessados em formar bibliotecas em suas comunidades foram se entusiasmando. A equipe apoiava com formações, mobilização de doações de livros, organização do espaço físico, com métodos de classificação e catalogação do acervo, além de um plano de trabalho estruturado para a sustentabilidade desses espaços.
Foi se consolidando uma grande Rede no território com um movimento literário que integrava vários atores em prol do livro, leitura, literatura e bibliotecas. Organizada sob os aspectos da Gestão Compartilhada, a Rede Baixada Literária está orientada pelo protocolo de gestão que define a participação de todas as integrantes no planejamento, na execução financeira e na prestação de contas de seus projetos. Até hoje está orientada também pelos outros 8 eixos que compõem o PPL, sendo eles: mediação, espaço, acervo, enraizamento comunitário, articulação, mobilização de recursos, comunicação e incidência em políticas públicas.
A paixão pela leitura se tornou tão imensa que crianças leitoras que frequentavam as bibliotecas comunitárias hoje são grandes mediadoras de leitura. Elas são provas vivas de que a literatura é uma ferramenta de transformação e precisa ser entendida por todos como um direito humano. Trabalham para que novos leitores sejam (trans)formados por meio de atividades literárias que estimulem a imaginação, despertem o interesse na leitura e na escrita, e, principalmente, ofereçam o direito a sonhar.
Essas atividades foram pensadas a partir de metodologias específicas para a promoção da literatura. Dentre elas, estão: os Jogos Literários – atividades que incluem o livro e a literatura em jogos de tabuleiro e populares, por exemplo: batalha naval, dominó, bingo humano, corrida do livro, pique bandeirinha literário, amarelinha literária e outras. Há ainda, performances literárias, clubes de leitura, cortejos literários, leitura compartilhada e o baú de histórias. Além destas, são produzidas atividades coletivas como Saraus, Acampe Literário, Bate-papo com autores e ilustradores, Ocupa Literatura, Correio Leitor e outras oficinas de escrita criativa, cartonera, dedoche e marcador de página. Mensalmente são realizados Fóruns Comunitários cujo objetivo é promover a participação social dos moradores nos processos de planejamento, execução, monitoramento e avaliação das ações das bibliotecas e das políticas públicas do município. A intenção com todas as atividades é que as histórias sejam ouvidas, contadas e representadas por todos os cantos.
Durante esses anos as mulheres que integram a Rede buscaram aprimorar o seu trabalho, investindo na adequação dos espaços físicos, na organização e qualificação do acervo literário, na formação da equipe, na articulação, no enraizamento comunitário, na comunicação, na gestão compartilhada e principalmente na Incidência política. De 2011 a 2014 dedicou esforços e estabeleceu parcerias para elaboração do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, aprovado na lei 4.439 em novembro de 2014, o primeiro do país com dotação orçamentária. Criou a Parada do Livro, um ato de mobilização em torno do livro e da leitura e também de reivindicação do cumprimento das metas do PMLLLB. Os protagonistas dessa ação são os leitores das bibliotecas comunitárias que produzem músicas, poesias, cartazes e fantasias para uma passeata nas ruas do calçadão. A participação da minha gente é a prova da importância desses espaços nos bairros, demonstra a razão da leitura ser parceira da cidadania.
Nesse percurso, a Rede tem uma longa caminhada na articulação com o poder público e agentes culturais, participando em espaços decisórios (Fóruns e Conselhos) a nível municipal e estadual, articulando-se com universidades, profissionais de diversos segmentos da Cultura, Educação, Sistema de Garantia de Direitos e, principalmente, com as comunidades ao entorno das Bibliotecas Comunitárias. É uma trajetória de ativismo em prol da luta pela garantia de Direitos, em especial do Direito Humano à Literatura, considerando os grandes desafios enfrentados nesse contexto no território de atuação.
Garantir que a Literatura seja uma Política Pública efetiva é um grande desafio, pois não depende exclusivamente da ação de agentes culturais, mas também da iniciativa do poder público. Nesse sentido, a busca de ampliar o raio de abrangência do coletivo nas demais Unidades Regionais de Governo (URGs) do município está relacionada com o desejo de envolver outros atores culturais da cidade por meio da incidência em políticas públicas, contribuindo para que o planejamento das ações seja mais democrático e participativo. Sabendo que essa é uma causa maior, desde 2015 mais de 100 bibliotecas comunitárias espalhadas por quatro regiões do país articulam a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC) para dar dimensão nacional ao trabalho de base.
A ideia do coletivo é quebrar o paradigma incutido no imaginário popular de que as bibliotecas precisam de ser lugares sóbrios, distantes, um tanto quanto burocráticos no qual imperam o isolamento e o silêncio. Embora haja aqueles que ainda tentam passar a mensagem de que “pobres não leem” como justificativa para taxar os livros, a Rede se apresenta no combate desta falácia com um acervo diverso, amplo e plural que dialoga com diversos temas, como igualdade de gênero, questões raciais, LGBTQIA+, de 20 bibliotecas comunitárias para mais de doze mil leitores de todas as idades que mesmo depois de uma pandemia continuam participando ativamente das bibliotecas.
Um instrumento basilar usado estrategicamente nas práticas e ações culturais promovidas nas bibliotecas comunitárias da Rede Baixada Literária é a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Por meio da leitura literária e da garantia do acesso à informação, a Rede apoia os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), pois crê que aliando as metas dos ODS à missão de promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida, é possível empoderar meninas e mulheres, reduzir as desigualdades, lutar pelo direito à saúde, proteger o planeta e garantir que as futuras gerações desfrutem de paz e prosperidade.
Pelo incessante trabalho dessas mulheres sonhadoras, da intensa participação social e pela (re)existência das bibliotecas comunitárias, a Rede Baixada Literária tem conquistado o seu espaço na Baixada Fluminense e no Brasil, sendo bastante premiada regional e nacionalmente. Em 2018, ganhou o Prêmio IPL – Retratos da Leitura na categoria “Bibliotecas como iniciativas exitosas na formação dos leitores”, o 23º Concurso FNLIJ: Os Melhores Programas de Incentivo à Leitura Junto a Crianças e Jovens de Todo o Brasil em Terceiro Lugar e Menção Honrosa em 2019 no Programa de Incentivo à leitura FNLIJ. Já em 2022, foi a homenageada no Festival de Literatura Infantil do Patronato, condecorada com monção honrosa pelo Conselho Municipal de Defesa do Direito do Negro (COMDEDINE) e premiada com o Diploma Heloneida Studart de Cultura da ALERJ. Soma-se a essas conquistas, a participação na Periferia Brasileira de Letras (PBL) que, juntamente com outros coletivos literários de regiões distintas empenhados em democratizar as diversas formas de fruição literária, fortalece a territorialização de políticas públicas saudáveis na cena nacional.
Esse reconhecimento é fruto de laços fortes de uma Rede cuja identidade coletiva foi fundada pelas relações comunitárias em torno da leitura, pelos círculos de pertencimento desses espaços em ação da comunidade e não para a comunidade, e, sobretudo, pelo enfrentamento destemido em busca da igualdade e justiça social para a transformação necessária do mundo. É na luta que a minha gente se encontra e de mãos dadas vence as pequenas-grandes batalhas.
Isadora Escalante é bibliotecária da Rede Baixada Literária. Mestranda em Ciência da Informação pelo PPGCI/IBICT-UFRJ. Vascaína, mangueirense e cria da BF.