Black Panther: que África é esta em Wakanda?
O afrofuturismo que permeia todo o filme não deixa de ser unilateral ao se fixar na visão norte-americana. Que África é essa cujo futuro está limitado à sua parceria com os Estados Unidos?
Depois de dois anos, eu finalmente decidi assistir o blockbuster da Marvel, “Black Panther” (Pantera Negra, em português) que estreou nos cinemas em 2018 com um elenco estrelar dirigido pelo jovem diretor afro-americano Ryan Coogler. Difícil não ver na escolha do diretor e também do elenco um programa político. Em plena era do Me Too e do Black Lives Matter, a indústria cinematográfica mais poderosa do mundo tinha que oferecer uma resposta à sociedade após os escândalos de assédio sexual em Hollywood e das inúmeras mortes de jovens afro-americanos vítimas de violência policial. Portanto, o filme traz personagens negros fortes; mulheres e homens independentes guiados pelos valores que Hollywood gosta de cultuar: família, lealdade, patriotismo e heroísmo.
No entanto, o fato do filme ser ambientado na África permite uma leitura diferenciada à que oferece em geral a crítica cinematográfica. Lançarei um olhar tanto da sociologia como da antropologia política sobre esse universo que a Marvel nos convida a acompanhar.
Identidade e territorialidade
Está claro desde o início do filme que a abordagem do diretor Ryan Coogler é conferir uma identidade específica a esses cidadãos africanos originários de uma misterioso reino chamado Wakanda e localizado entre Quênia e Tanzânia na África oriental; isso se confiarmos nos efeitos zoom-avant e plongé da câmera postos sobre uma imagem de satélite focada no globo terrestre. Mas o fato da Okoye, personagem interpretada por Danai Gurira, se expressar regularmente em xhosa, uma língua sul-africano, fragiliza uma ideia que era fundamentada numa boa intenção. Por que não optar pelo suaíli, por exemplo? Teria sido uma escolha muito mais realista.
A aparente exigência do diretor em construir um universo bem marcado do ponto de vista da identidade pena a se mostrar convincente apesar do uso de vestimentas características e da adoção de uma língua “local”. Nem mesmo a localização geográfica é suficiente para construir essa identidade. Por certo, a identidade se constrói a partir de trocas e contatos com o outro. Ela resulta da relação com a alteridade. Ora, é justamente nesse aspecto que o filme comete um dos seus principais erros conceituais. A Wakanda de Ryan Coogler, embora desenvolvida, é uma cidade fechada, claustrofóbica, e quase xenofóbica com dificuldades em encontrar seu lugar no mundo.
O problema maior é saber como uma cidade tão importante como Wakanda desenvolveu uma identidade tão forte estando permanentemente fechada sobre si. O paradoxo é ainda mais importante quando se sabe graças à historiografia e à antropologia que a noção de territorialidade na África pré-colonial era justamente o oposto. De acordo com autores como Achille Mbembe, a territorialidade africana antes da colonização é acima de tudo uma territorialidade itinerante. Ou seja, ela é feita de fluxos entre as cidades: é o que Mbembe qualifica de territorialidade em rede. A mobilidade caracteriza os povos africanos antes da colonização. É difícil imaginar uma cidade tão próspera fechada sobre si mesma, mergulhada na paranoia e no medo do outro. Como, nessas condições, a comunidade de Wakanda conseguiu forjar um sentimento nacionalista tão enraizado?
A evocação da época pré-colonial não é gratuita, pois ela remete à própria agenda do filme de fazer dialogar tradição e modernidade ao longo da narrativa, sabendo também que nesse universo, Wakanda nunca foi colonizada. Além disso, o fato de caracterizar o reino de Wakanda como uma cidade é uma escolha judiciosa porque remete à configuração das cidades pré-coloniais que a antropóloga Anne-Marie Péatrik qualifica de espécies de “Espartas africanas”. Existe no senso comum uma tendência que consiste em pensar que antes da colonização, o continente africano não conhecia formas modernas de cidadanias comparáveis às experiências ocidentais. Estudos na área da antropologia política mostram justamente o contrário. Não só elas existiam como também se tem traços e relatos de organizações citadinas similares à Esparta na região do atual Quênia, especialmente quando se considera o caso da etnia dos Meru Tigania-Igembe.
Ritos de passagem
Pantera Negra acerta ao dar protagonismo a diferentes ritos de passagem ao longo da história. Porém, erra quando opta por não problematizar esses mesmos rituais mostrados no filme, ou pelo menos ao se limitar ao mero aspecto do entretenimento, relegando em segundo plano sua dimensão política. Não há dúvida de que essa dimensão política teria conferido ao filme um ganho em maturidade.
O primeiro rito de passagem ao qual somos apresentados consiste num duelo organizado entre o príncipe herdeiro e qualquer cidadão, membro da família real ou não, que reivindique o direito ao trono. O duelo se dará em luta mortal. Além da pura estética coreográfica da luta, ao qual o filme se limita infelizmente, lutas de sucessão formam parte da longa tradição do continente africano mesmo antes da colonização. Não são lutas puramente motivadas pela cobiça, são ritos políticos e iniciáticos, uma passagem obrigatória ao qual o príncipe se prepara durante toda sua adolescência.
Na África pré-colonial, em diversas cidades e reinos, a sucessão de poder não é um momento pacífico. Pelo contrário. Trata-se de um momento de tensão onde a violência é legitimada e a demonstração de força por parte do herdeiro é uma garantia da perenidade e sobrevivência da comunidade. Como mostram os antropólogos políticos dedicados a esse tema, pai e filho lutam não por ódio, mas para mostrar à comunidade que o filho está pronto para assumir a proteção da aldeia diante das ameaças externas. Uma vez mais, a ideia de alteridade que tanto fez falta ao filme reaparece.
Em que medida esses duelos mortais informam sobre práticas contemporâneas na política africana? Uma das hipóteses com as quais venho trabalhando nas minhas pesquisas é que esse traço cultural se perpetuou e se manifesta hoje em forma de guerras de sucessão e/ou conflitos pós-eleitorais em diversos países africanos. De fato, embora a democracia e seus ritos estejam enraizados tanto como desejo quanto como processo concreto de aperfeiçoamento da vida política, ela não se basta em si. Na prática, os países africanos têm se mostrado incapazes de superar esse ciclo de violência cada vez que os prazos eleitorais começam se aproximam ao fim.
O filme Pantera Negra teria consolidado sua maturidade problematizando esses ritos de violências infelizmente estetizados pela coreografia cinematográfica. Curiosamente, a única pessoa que questionou a pertinência dessas práticas foi o vilão da história, porém, ele só teve a oferecer como alternativa mais violência ainda.
Morte e ressurreição
Os ritos de passagem que exploram a morte e ressurreição também estão muito presentes no filme que traz uma clara dimensão fantástica e mística. Esses momentos são importantes para lançar um olhar especial no lugar que as mulheres africanas ocupam na sociedade africana tradicional, especialmente no que tange à transmissão dos saberes ancestrais e conhecimentos práticos sobre ritos e rituais que organizam a vida política em geral. Elas fazem parte da estrutura cultural e política que sustenta a comunidade.
O antropólogo Gilles Holder mostrou que em várias cidades tradicionais, o status de cidadania da mulher está relacionado à sua capacidade de conduzir esses ritos de passagem. Não são o sexo e gênero que organizam o status de cidadania, mas a relação “iniciação-faixa etária”. Embora o filme explore essa dimensão, ele não consegue ir mais além do clichê da mulher cuidadora. As cenas de morte/ressureição apenas protocolam a presença da mulher, mas não dão protagonismo a suas personagens.
Um afrofuturismo unilateral?
Sem dúvida, uma das personagens mais interessantes e carismáticas do filme é a Shuri, irmã de “Black Panther” que lembra mais a cientista Marie Curie que a princesa Pocahontas. Apenas saída da adolescência, ela é a responsável por todo o polo tecnológico de Wakanda ao mesmo tempo em que desdenha os valores tradicionais de seu país como lembra outro personagem chave do filme. Mas é justamente nessa característica que ela se torna realista e acena para o futuro. Ninguém, na verdade, mobiliza os valores tradicionais 24 horas por dia. A maioria das pessoas os mobiliza quando necessário. Ela representa justamente essa juventude africana contemporânea que vive entre dois mundos: a África tradicional e o mundo globalizado. Não mais em tensões, esses dois polos da experiência africana moderna interagem e produzem aspirações que só a tradição não consegue preencher.
Entretanto, o afrofuturismo que permeia todo o filme não deixa de ser unilateral ao se fixar na visão norte-americana. Que África é essa cujo futuro está limitado à sua parceria com os Estados Unidos? A realidade do continente está muito longe disso: são bilhões de dólares investidos pela superpotência asiática no continente africano. Além disso, a China em breve superará os Estados Unidos em número de militares presentes em solo africano; serão 10 mil até 2026, de acordo com estudos especializados. A visão idílica das paisagens lindas na África mostradas em “Pantera Negra” tampouco reflete a realidade do continente africano que sofre com o fenômeno do desmatamento na África central onde a China pratica uma exploração desenfreada das florestas, ou, em outra medida, por causa da extração nas minas da República Democrática do Congo por empresas multinacionais. O filme tampouco trata com seriedade a questão da poluição no espaço urbano que, em cidade como Abidjã, atinge níveis dramáticos do ponto de vista do risco à saúde das populações.
Referências
HOLDER, Gilles. La cité comme statut politique. Journal des africanistes, 2004.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. N-1 Editora, 2018.
MBEMBE, Achille. À la lisière du monde. Frontières, territorialité et souveraineté en Afrique. IRD Editions, 2005.
PEATRIK, Anne-Marie. Une Sparte africaine. Journal des africanistes, 2004.