Blowin’ in the wind
Quantas vezes pode um homem virar a cabeça e fazer de conta que, tão-somente, não está vendo nada?
Romance em cartas (gênero epistolar).
Uma amiga me perguntou se eu sempre me entendi antissionista. Respondi: “Nunca fui sionista e, em algum momento, me transformei em antissionista (cada vez mais radical). Fiz o ensino fundamental em colégio judaico no Bom Retiro (Renascença). A certa altura, me dei conta do sionismo e de que os judeus deveriam ir para Israel, a Terra Prometida. Então pensei comigo mesmo, ‘Nossa! Eu então aqui sou o rei, porque nasci lá’ (eu sempre acho que sou o rei da cocada preta… até cair do cavalo).
“Ingressei no ensino médio em colégio público (o Estadual do Parque D. Pedro II), em plena ‘guerra triunfal’ de Israel em 1967, e foi lá que ouvi as primeiras alusões antissionistas. Em 1968, comecei a militar na Polop e me posicionava a favor do povo palestino.
“Em 2012, depois que meus pais deixaram este mundo, comecei a escrever as suas memórias do Holocausto… e foi assim que eu caí do cavalo. Descobri que eu não era o rei porque nasci na Terra Prometida, eu, na verdade, era um traidor.

“Em Returnees, consta ‘Haim Yahil, do Ministério das Relações Exteriores de Israel, que estava na Alemanha trabalhando no Acordo de Reparações, disse que os judeus brasileiros, ao invés de imigrarem para Israel, manifestavam o seu sionismo sendo hostis aos returnees.’”
Minha amiga, que não é judia, respondeu: “Acho que a queda é um mito que nem todos têm a sorte de viver. Minha queda desse cavalo – eu cresci entre sionistas de esquerda, centro e direita – veio bem mais tarde, em 2019, e levou uns anos até se consolidar em 2023. Fico chocada como são poucos os que se atrevem a cair desse cavalo.”
Outro amigo, este de ascendência judia, que acompanhava de perto a minha trajetória antissionista, ao ler o artigo A violência dos sionistas, postado após o 7 de outubro de 2023, escreveu em 22 de novembro do mesmo ano: “Não posso concordar com um artigo que começa com a frase ‘A violência dos sionistas em relação aos palestinos não começou em 7 de outubro de 2023…’ Não concordo com o inteiro teor do texto, ou seja, com a seleção de fatos e argumentos que se encaixam teleologicamente na concepção do autor. Com a omissão, por exemplo, do fato de que centenas de milhares de judeus foram expulsos de países árabes do Oriente Médio e do Magreb depois da vitória de Israel na guerra de 1948. Não concordo especialmente com o final do texto, que usa como recurso retórico a posição alucinada de judeus fundamentalistas que são contra a existência de Israel porque acreditam que tal advento só poderia ocorrer com a chegada de um suposto messias. Aí já se ingressa no terreno do aluamento. Vai quem quiser. Eu, não. Espero que você reconheça o direito à divergência. Saudações.”

Três meses depois, o mesmo amigo me encaminhou um email com o título “Crise”: “Teu relato sobre os returnees foi um primeiro sinal de que havia alguma (ou muita) coisa errada com Israel. Hoje digo para você que estou horrorizado não apenas com o governo israelense e a maioria que o levou ao poder, não apenas com a trajetória histórica do Estado de Israel, não apenas com os setores fascistas, reacionários e todo tipo de picaretas da Diáspora, mas com a própria imagem da judeidade formada na minha cabeça ao longo de mais de 70 anos. Como você pode imaginar, Israel, na minha infância, adolescência, juventude, idade madura e bem depois era uma entidade acima das críticas que poderiam ser feitas a certos aspectos daquela sociedade. Acho que funcionava assim para a maioria dos judeus fora de Israel. Tudo isso desabou em semanas. Compreendo melhor, agora, as tuas posições. Deixou de existir a imagem de um conjunto de valores morais pelos quais supostamente se guiariam os filhos do ‘povo eleito’. Era uma premissa entranhada que alimentei (ou com que fui alimentado) década após década, apesar dos pesares e mesmo reconhecendo os direitos dos palestinos. Nunca imaginei me ver num contexto tão adverso. Acho que só existe saída na luta pela paz, que ainda estará engatinhando, se tanto, quando nós tivermos morrido. Mas não vejo outro caminho. Sem isso só restará amargura e, no limite, desespero. Abração.”
Quantas mortes serão necessárias até que se saiba que muitas pessoas já morreram?
Quantos anos pode um povo existir até que permitam que ele seja livre?
The answer, my friend, is blowin’ in the wind.
Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Salaam Aleikum, Palestina!