Boko Haram, o crescimento de um monstro
Grupo religioso marginal dopado pela miséria, Boko Haram semeia o caos na Nigéria. Por que bater tão violentamente no coração das áreas muçulmanas, com o risco de alienar e aterrorizar suas populações?Jean Christophe Servant
Muitas vezes descrita como “democrazy” (democracia louca) por causa da agitação social e cultural que a caracteriza,1 a Nigéria produziu um monstro: a Boko Haram. Em seus primórdios, há doze anos, ela não passava de um movimento religioso contestador que tentava preencher o vazio criado pela negligência dos partidos progressistas. Mas os doutores Frankenstein do governo acabaram por transformar essa seita em uma questão geopolítica, princípio ativo de um ciclo de ataques e represálias tão espetacular quanto assassino.
Os aparelhos políticos – do Partido Democrático Popular (PDP) no poder ao oposicionista Partido de Todos os Povos da Nigéria (All Nigeria Peoples Party, ANPP) – e os meios militares e de segurança que assessoram o presidente Goodluck Jonathan contribuíram para radicalizar a seita nascida no nordeste do país no começo da década de 2000. Ferozmente reprimida, a Jama’atu Ahlul Sunna li Da’awati wal Jihad (Comunidade dos Discípulos para a Propagação da Guerra Santa e do Islamismo) é agora conhecida por duas iniciais: BH, de Boko Haram – “livro”, em inglês pidgin, e “proibido”, em árabe. Entre julho de 2009 e o início de fevereiro de 2011, ela reivindicou 164 ataques, atentados suicidas, execuções e roubos perpetrados até no coração da capital federal, Abuja; 935 pessoas foram mortas, entre as quais uma imensa maioria de nigerianos de fé muçulmana.
A notoriedade da Boko Haram não escapa aos katibas (militantes) da Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI) nem à shebab(combatentes islâmicos) da Somália. Pega de surpresa, a imprensa internacional se pergunta2 se o gigante nigeriano com 160 milhões de habitantes não está se dirigindo para uma divisão entre o norte muçulmano e o sul cristão. Isso significa esquecer que a verdadeira fratura nesse país onde mais de 60% da população vive com menos de US$ 2 por dia continua a ser a extrema pobreza. Os doze estados que compõem a faixa norte da federação – nas fronteiras com Níger, Chade e Camarões – permanecem sendo os menos desenvolvidos do país. As desigualdades se aprofundaram até no sul, desde o retorno de um civil, o ex-general Olusegun Obasanjo, à Presidência em 1999, após cinco anos da ditadura do general Sani Abacha.
No estado de Borno, onde os yusufiyasda Boko Haram – do nome de seu falecido líder espiritual, Ustaz Muhammad Yusuf – começaram seu caminho para o derramamento de sangue, três quartos da população vivem abaixo da linha de pobreza. Um recorde no país. Ali, apenas 2% das crianças com menos de 15 meses de idade são vacinadas. O acesso à educação também se revela muito limitado: 83% dos jovens são analfabetos; 48,5% das crianças em idade de ser escolarizadas não o são. E 34,8% dos muçulmanos entre 4 e 16 anos de idade nunca frequentaram a escola – nem mesmo uma escola corânica: “Todos esses fatores tornam a população particularmente vulnerável a influências negativas, entre elas a violência”.3
Yusuf começou a tornar-se conhecido no início dos anos 2000. Tinha então 30 anos e pregava na aldeia em seu estado natal de Yobe, vizinho de Borno. Ele se destacava entre dezenas de milhares de pregadores itinerantes, guardiões de uma tradição “quietista”, que defende uma atitude de reserva, que falavam às multidões nos mercados das grandes cidades. Ele se opôs aos fiéis de outro muçulmano nigeriano, Abubakar Gumi, que morreu em 1992, ideólogo do movimento neo-hanbalita Izala Yan.4 Este tinha se abrandado consideravelmente após a introdução da charia a partir de 2000 nos estados do norte – era uma de suas principais reivindicações. Ele havia até mesmo concordado em juntar-se aos comitês encarregados da aplicação da lei islâmica nessas áreas. Mas a instauração da charia viria se mostrar menos religiosa do que política, suscitando a zombaria ou a reprovação da população. Na verdade, os círculos políticos e militares no norte do país eram sobretudo um instrumento de pressão em sua queda de braço com o governo central. A zakkat5– um dos cinco pilares do Islã – nem sequer foi aplicada.
Yusuf, que estudara Teologia na Universidade de Medina, na Arábia Saudita, inspirou-se nos sermões intolerantes do egípcio Shukri Mustafa, baseados na excomunhão e no exílio. Para ele, a aplicação estrita da lei islâmica expressa um ideal de justiça de acordo com os preceitos do Profeta. Ele também recusa uma educação pública “corrompida pela ocidentalização”, a participação nas eleições, assim como as marcas principais da indústria agroalimentar nigeriana – do cubo Maggi aos confeitos de leite Dairy Milk. Essa rejeição da “modernidade” não impediu que alguns assassinos da Boko Haram usassem motos para ir executar vários seguidores de Izala, conhecido por suas simpatias salafistas, assim como certas figuras das irmandades sufis Tidjaniyya e Qadiriya.
O norte da Nigéria já tinha experimentado outros surtos de violência ligados ao confronto de seitas muçulmanas “antiocidentais” no início dos anos 1980. O movimento Maitatsine, que proibia até o uso de relógios, tinha invadido as ruas de Maiduguri e de Kaduna. A feroz repressão militar de seus seguidores entrincheirados perto do mercado de Kano – a grande metrópole do norte – provocou mais de 3 mil mortes em fevereiro de 2012.
Escalada
No outono [do Hemisfério Norte] de 2003, a “cidade celestial” de Yusuf, introduzida em Kannamma no Yobe profundo, foi atacada pela polícia do governo. Vários fiéis foram mortos. Em 22 de dezembro de 2003, a Boko Haram lançou suas primeiras ofensivas contra as forças de segurança, em seguida retirou-se para Maiduguri, a capital de Borno, onde ela havia militado discretamente pela eleição, em abril de 2003, do novo governador, Ali Moddu Sheriff. Este último tinha prometido uma aplicação mais rigorosa da charia. Tão logo foi eleito, Sheriff nomeou um membro histórico da Boko Haram para dirigir o recém-criado Ministério dos Assuntos Religiosos: Buju Foi. A seita instalou em Maiduguri uma mesquita e uma escola. Essas instituições rapidamente atraíram jovens desempregados dos bairros pobres, mas também os estudantes jubilados das universidades, assim como funcionários empobrecidos. Por trás da religião, havia um ressentimento profundo dessas pessoas, que se sentiam abandonadas pelas elites do norte, pelo governo central e pelos policiais federais, corruptos e brutais.
Em outubro de 2004, os membros da Boko Haram atacaram um comboio de sessenta policiais perto de Kala Balge, na fronteira com o Chade. Tomados como reféns, doze oficiais perderam ali a vida. Em Abuja, o serviço de inteligência da Nigéria (State Security Service, SSS) começou a se preocupar. Mas o presidente Obasanjo tinha outras prioridades: a insurreição no Delta do Níger, onde gangues de jovens atacavam poços de petróleo.6 Preso pela SSS, Yusuf foi transferido para Abuja antes de ser recolocado em liberdade.
Em abril de 2007, o muçulmano Umaru Yar Adua sucedeu Obasanjo. Em Maiduguri, a Boko Haram batalhava então pelo candidato da maioria, Kashim Ibrahim Imam. Mas, após uma campanha marcada por vários assassinatos políticos, Sheriff foi eleito. Quatro anos depois de usar a seita para tomar o poder, ele lhe declarou guerra. Em junho de 2009, quinze fiéis montados em motocicletas foram assassinados pela polícia do governo, que os acusava de não usar capacete. As vítimas acompanhavam o funeral de um de seus entes queridos mortos por essas mesmas forças da ordem alguns dias antes. Na internet, Yusuf anunciou que iria se vingar. Em 26 de julho, a Boko Haram lançou uma grande ofensiva em quatro estados do norte, atacando bancos e delegacias de polícia. A polícia e o Exército federais replicaram: mais de oitocentos mortos, sem dúvida centenas de execuções extrajudiciais, incluindo a do próprio Yusuf. As imagens de sua eliminação circularam na rede e radicalizaram a seita. Até hoje, nenhuma comissão de inquérito governamental foi designada para lançar luz sobre os acontecimentos sangrentos de julho de 2009.
Alguns meses antes, em Bauchi, a Boko Haram tinha atacado uma prisão, libertando mais de setecentos homens, entre eles cem seguidores seus. A seita agora se irradiava para além de seu território histórico, até as brasas fumegantes em Jos, no centro do país: desde o início do ano 2000, a cidade constitui o epicentro de violentos confrontos sectários em um cenário de batalhas políticas para assumir comandos no estado de Plateau.7
A Boko Haram não tem mais comando central, mas uma shura(conselho), que conta sem dúvida com uma dúzia de homens. Apoia-se em duas células principais. Liderado pelo adjunto de Yusuf, Abubakar Shekau, o “canal histórico” concentra suas operações em policiais, líderes políticos e imãs que “mentem e se escondem atrás do manto da religião”;8 ele se financia atacando bancos que praticam a usura, e presumivelmente por meio da cobrança de momentos de trégua. A célula internacionalista, que reúne executivos que fugiram para o estrangeiro após a repressão de julho de 2009, seria dirigida por Mamman Nur, ligado ao jihadismo global. A ele se deve a mudança dos métodos operacionais e das metas da seita: o atentado suicida – uma estreia na história da Nigéria – contra um prédio das Nações Unidas, em 23 de agosto de 2011, em Abuja. Os homens de Nur também estariam por trás da campanha de ataques contra locais de culto cristãos, entre eles um, extremamente simbólico, em 25 de dezembro de 2011, em Madalla, periferia de Abuja. Em 20 de janeiro de 2012, a Boko Haram atacou Kano, a capital do estado de mesmo nome, ao norte do país. Oito ataques coordenados foram realizados contra postos de polícia e escritórios da SSS. Carros-bomba e assassinos disfarçados de policiais fizeram mais de 180 mortos.
Mas por que bater tão violentamente no coração das áreas muçulmanas, com o risco de alienar e aterrorizar suas populações? Em Kano, o representante local da seita, Abubakar Shekau, desfrutava de uma real simpatia nos bairros populares. Também podia contar com o ex-governador, Ibrahim Shekarau, derrotado em 2011 nas eleições gerais. A menos que essa estratégia de tensão – que passou a chamar a atenção do Departamento de Estado dos Estados Unidos e sua lista de organizações terroristas – beneficie os outros atores. “O maior motivo de preocupação”, enfatiza o pesquisador Morten Boos, “tem a ver com os rumores que falam de conluios entre a Boko Haram e alguns graduados da política e do aparelho de Estado. Não há nenhuma evidência até o presente momento, mas é preciso acima de tudo ver isso como um novo sinal dos meios que alguns estão dispostos a adotar para obter poder e riqueza.”9
Jean Christophe Servant é jornalista e autor, com Anne-Cécile Robert, de Afriques, années zéro (Nantes, L’Atlante, 2008).