Bolsonaro e o Enem
Um presidente fiscalizar uma prova em função de sua crença moral é algo impróprio, para dizer o mínimo
A fala do presidente eleito Jair Bolsonaro em relação ao Enem 2018 ganhou as páginas dos jornais e as redes sociais nos últimos dias. Analisando suas declarações, identificamos que elas estão equivocadas do início ao fim e que inspiram preocupação. Vejamos em partes: i) Bolsonaro não entendeu o que foi tratado na questão pontual que criticou; ii) ele deduz que se materializa na prova do Enem uma rede conspiratória ligada ao que denomina “ideologia de gênero”; iii) insinua que irá fiscalizar uma prova cuja elaboração desconhece e que nem o presidente nem o ministro da Educação têm acesso previamente, por questões de segurança.
É natural, em função de sua formação tradicional, que Bolsonaro ache que o fato de um tema ter sido abordado em uma prova significa necessariamente que os estudantes teriam de conhecê-lo antecipadamente ou tenham de passar a fazê-lo a partir dali. Isto é, apenas faria sentido o modelo: “cai na prova aquilo que foi transmitido ao aluno”. Esse pensamento está ligado a uma visão obsoleta da avaliação educacional, que preza basicamente pelo ato pragmático de decorar. Todavia, o Enem tem um formato avaliativo de aferição de habilidades hermenêuticas e não de memorização de conteúdos. É fundamental que se compreenda essa diferença entre uma avaliação classificatória e uma avaliação formativa. O que está em jogo aqui não é a capacidade de registrar quantitativamente informações isoladas, mas a competência de interpretar, relacionar, refletir e inferir.
Sobre a questão mencionada pelo presidente eleito, cabe dizer que tratar de um dialeto da comunidade travesti para debater o papel linguístico e político de se ter (ou não) um dialeto não é uma exigência de que as pessoas conheçam o dialeto a ponto de usá-lo no seu cotidiano. Se assim fosse, o próprio caráter de dialeto secreto não faria mais sentido.
Ao dizer que as pessoas (homossexuais, travestis, transgêneros) devem “ser felizes” deixando as crianças e os jovens “fora disso” e que “sexo é assunto para o papai e a mamãe”, Bolsonaro confunde muitas coisas. Ele encara o necessário trabalho pedagógico de combate ao preconceito justamente para que as pessoas sejam felizes como um “incentivo” à homossexualidade. Bolsonaro trata a educação sexual, tão fundamental em um país com índices altos de gravidez na adolescência, abusos sexuais no meio familiar e disseminação de doenças sexualmente transmissíveis, como uma espécie de estímulo à sexualização precoce. Essas suposições sobre o que realmente ocorre nas escolas são oriundas de um impulso obscurantista que marca nossos dias e denotam total desconhecimento do que acontece nos estabelecimentos de ensino.
A premissa de que as pessoas estão suscetíveis a mudar sua orientação sexual ou sua identidade de gênero em função de conhecer elementos ligados à diversidade humana é infundada. Não há nenhum respaldo na literatura científica para a crença de que as pessoas escolhem deliberadamente suas “preferências” sexuais ou de gênero em função dos ventos culturais e morais ou de acessar discussões específicas. Cercear o debate sobre a diversidade, a discriminação e a liberdade de ser e estar das pessoas é justamente o que naturaliza e reproduz a violência contra a comunidade LGBT.
Um presidente fiscalizar uma prova em função de sua crença moral é algo impróprio, para dizer o mínimo. Os estudantes e as famílias podem elaborar suas opiniões convergentes ou divergentes sobre questões de uma prova, podem debater ou não os mais diversos temas. Porém, uma censura presidencial prévia, baseada, daí sim em ideologia pessoal, seria nociva para a pluralidade tão cara ao universo educacional e para a democracia como um todo.
*Gregório Grisa é doutor em Educação pela UFRGS e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul.