Bovespa em máxima histórica, PIB em frangalhos
A financeirização exacerba a lógica rentista, impede com que capitais gerem produção, emprego, renda e consumo, e fomenta os espaços especulativos da economia, como o mercado secundário da bolsa de valores
Quem acompanhou as notícias econômicas dos últimos anos fica sem saber por onde começar a interpretar as coisas. O PIB brasileiro vive a pior década em 120 anos, já o índice Ibovespa, diferentemente, segue crescendo forte desde 2016, alcançando máxima histórica em 2021. Difícil não perguntar, como conectar pontos tão contraditórios?
Para compreender o novo contexto é preciso esclarecer os paradoxos de um país financeirizado, que é, cada vez mais, o caso brasileiro. Interessante abordagem ao tema foi apresentada por Cédric Durand, professor da universidade de Genebra, e autor da obra Le capital fictif : comment la finance s’approprie notre avenir [Capital Fictício: como a financeirização está se apropriando do nosso futuro], que propõe voltarmos a Marx para entendermos o avanço da financeirização no mundo.
Capital fictício: uma chave para compreender a financeirização
Na obra O Capital, Marx propôs o conceito do capital fictício para abarcar os capitais capazes de superar o limite dos recursos disponíveis. Ou seja, os tipos de capitais que geram o que teorias de mercado chamam de desequilíbrios entre o montante investido e poupado pela sociedade. Para Marx, desequilíbrios são características intrínsecas ao mercado de crédito, uma vez que o crédito é uma projeção de um retorno futuro impossível de ser previstos. Por isso, segundo Marx, o mundo financeiro é um espaço especulativo por definição.
Além disso, como o crédito pode ser financiado por instituições privadas e pelo Estado, não encontramos, no autor, uma preferência de uma instituição a outra. Ou seja, diferentemente dos economistas posicionados mais à direita do espectro político, que tendem a glorificar o mercado (por taxá-lo como a instituição que produz perfeitos equilíbrios), e reduzir o Estado ao status de inimigo (por taxá-lo como o responsável por produzir desequilíbrios), Marx oferece uma abordagem menos maniqueísta. A especulação é um problema fundamentalmente econômico, que tem sua origem na própria forma crédito e que independe de quem financia.
Assim, mercado e Estado podem gerar crédito, capital especulativo e, consequentemente, desequilíbrios. Segundo Durand, por conta disso, Marx foi quem melhor antecedeu a realidade atual, na qual mercados financeiros passaram a ser altamente especulativos e o locus de crises internacionais.
Os três tipos de capitais fictícios
No livro III, Marx descreve três tipos de capitais fictícios: crédito, títulos públicos e ações. O primeiro, crédito, é essencialmente especulativo, uma vez que não depende de poupança para ser gerado, mas de cálculos relacionados às expectativas das instituições que financiam o crédito. O segundo, títulos públicos, é considerado um capital fictício, pois depende do retorno dos impostos. Ou seja, aqui, também, dívidas são geradas em cima de uma previsão futura incerta, uma vez que o Estado não tem como anteceder a receita futura. Por último, ações são o terceiro tipo de capital fictício, uma vez que o mercado acionário também promove financiamento baseado em especulações de retornos futuros.
Por serem altamente especulativos, capitais fictícios tendem a se afastar da economia real, gerando bolhas e crises. Peguemos, por exemplo, o caso do mercado de ações, que criou a ilusão de que o acionista está investindo na empresa ao comprar e vender ações no mercado secundário, quando, na verdade, esses papéis são apenas títulos que garantem o direito aos dividendos, ou seja, aos retornos anuais relacionados à operação da empresa. Durand relembra aqui que o investimento na economia real ocorre apenas no mercado primário, durante as IPOs. Ou seja, quando a empresa vende pela primeira vez parte de seu ativo em forma de ações para receber dinheiro que a empresa pode (ou não) transformar em investimento produtivo.
Essa ilusão, porém, criou historicamente um mercado secundário extremamente especulativo, que não tem necessariamente mais lastros com os dividendos: cada vez mais compra-se uma ação pensando mais no futuro valor de venda da ação do que nos dividendos pagos por ela. Ou seja, são cada vez mais bolhas especulativas que determinam os preços no mercado secundário, o que, consequentemente, faz com que bolsas de valores não espelhem uma relação entre poupança e investimento, tal como as teorias de mercado gostariam que fosse.

Brasil, um regime financeiro?
Entender os capitais fictícios passou a ser importante tarefa, posto que o Brasil expõe, cada vez mais, características de um país financeirizado. Segundo o economista Miguel Bruno é possível, inclusive, classificar o país como um regime financeiro, uma vez que a partir de 1994 a taxa de financeirização passou a crescer de maneira desconexa da taxa de acumulação de capital fixo produtivo. Expondo o fato de que, nesse momento em diante, capitais encontram formas de se revalorizar unicamente através de ativos financeiros, sem precisar passar pelo setor produtivo, tal como tipicamente ocorre em economias financeirizadas.
Para dar noção da importância do processo de financeirização da economia brasileira, segundo o mesmo economista, entre 1995 e 2005, em torno 30% do PIB era pagamento de juros, dos quais, quase 23% foi destinado a pessoas físicas ou instituições não financeiras, enquanto em torno de 7% foi, de fato, o valor que ficou na mão das instituições financeiras.
Pensando o Brasil a partir do conceito do capital fictício
Seguindo a proposta de Marx, é possível questionar então o caso brasileiro: que tipo de capital fictício é mais relevante para o lucro financeiro após 1994? E a taxa Selic é, aqui, uma importante variável para a resposta: o Brasil viveu desde 1994 duas fases, a primeira, caracterizada pela alta Selic, e a segunda, pela baixa Selic.
Como sabemos, após o plano real, o Brasil passa a ser um dos países com os mais altos juros do mundo. A taxa Selic chegava a valores reais acima de 15% ao ano no final da década de 1990, fazendo do país um paraíso aos rentistas. Pela ótica do capital fictício, portanto, é possível concluir que a primeira fase, ou seja, o período logo após 1994 (caracterizado pela alta Selic), expunha uma predominância do segundo tipo de capital fictício, os títulos públicos, uma vez que era ele o mais relevante para o lucro financeiro na época.
Mas a Selic não caiu?
Os altíssimos juros não foram uma condição constante. Como podemos ver no gráfico abaixo, os juros reais caem para -2,5% em 2020. O que demonstra que o setor financeiro passou por uma importante mudança no decorrer das últimas décadas: não podia mais depender dos títulos da dívida pública e, finalmente, passou a expandir as operações de crédito no país.

É a redução da Selic que explica, portanto, as famosas políticas de ampliação do crédito no Brasil: a expansão do FIES (crédito estudantil), Minha Casa Minha Vida, e outros tipos de crédito à pessoa física e jurídica, etc. Pela ótica do capital fictício, conclui-se que o segundo momento, de baixa Selic, é caracterizado por uma menor relevância (relativa) dos títulos públicos, e maior relevância das operações de crédito. Ou seja, durante a segunda fase, foi o primeiro tipo de capital fictício, o crédito, que mais garantiu os lucros financeiros.
E por que a Selic caiu?
Kalecki talvez seja o economista clássico que melhor nos ajude a entender o tema da queda dos juros. Em artigo escrito em 1943, especulou que quanto mais os grupos contrários à intervenção do Estado na economia (elites corporativas e rentistas) fossem vitoriosos no objetivo de eliminar o investimento público mais o crescimento dependeria de capitais privados, e a política monetária (ou seja, a redução dos juros) seria a única ferramenta para induzir o crescimento econômico. O problema, para o economista, é que capitais privados são incapazes de substituir o investimento público. Por isso, num futuro não tão distante, juros reais terminariam negativos e economias tenderiam à estagnação.
Nos Estados Unidos, os anos de 1980 em diante passam a concretizar o que Kalecki especulou: o investimento público direto foi, cada vez mais, substituído por políticas monetárias expansionistas (e outras políticas fiscais ineficientes). E a consequência no longo prazo foi a queda dos juros reais americanos, que alcançam valores negativos após a crise de 2008. Nos EUA, porém, o crescimento econômico não foi tão afetado assim. Primeiro, porque o investimento público nunca foi radicalmente eliminado, segundo, porque o poder do dólar ofereceu interessantes saída ao caso norte-americano.
O Brasil, diferentemente, caiu na armadilha da estagnação
Abarcar a atual condição de estagnação do Brasil requer, assim, entender a queda da Selic, que por sua vez é uma história de dois lados. Nossa condição de dependência ao dólar faz com que a Selic tenha determinantes externos e internos. Em relação ao primeiro, os determinantes externos, importante pontuar que os títulos de longo prazo de ambas as economias, EUA e Brasil, são correlacionados. Ou seja, que o principal determinante da queda da Selic, no longo prazo, foi a queda dos títulos de longo prazo dos juros norte-americanos. Em outras palavras, que a redução da taxa de juros praticada pelo Banco Central do Brasil não foi uma decisão tomada de maneira independente, mas refletiu a redução da taxa de juros dos Estados Unidos.
Em relação ao segundo, os determinantes internos, que o Brasil também passa a cada vez mais reproduzir as mesmas mudanças fiscais antecipadas e criticadas por Kalecki após o ano de 2011: cortes do investimento público direto se intensificam nos governos de Dilma Rousseff (2011 – 2016) até que viram a regra nos governos de Michel Temer (2016 – 2018) e Jair Bolsonaro (2018 em diante), trazendo estagnação. A quem interessar, escrevi sobre o assunto em artigo intitulado “Por que o Brasil retrocedeu na última década?”
Assim, se por um lado é verdade que a Selic caiu por conta de nossa condição de país subordinado monetariamente. Por outro, a direita econômica (ou seja, a ortodoxia) tem importante responsabilidade sobre o atual quadro de estagnação, uma vez que foi ela que defendeu cortes do investimento público, segundo a crença de que juros baixos sozinhos resolveriam o problema do crescimento econômico. Se a influência de tais teorias já foram problemáticas durante o governo Dilma, a coisa piora quando partidos de direita assumem o poder e limitam ainda mais o investimento público quando, por exemplo, aprovaram o Teto dos Gastos em 2018.
Estagnação: um dilema desde 1980
O problema não é novo, a tendência à estagnação ocorre desde 1980. Como podemos ver no gráfico abaixo, a década de 80 é um importante ponto de inflexão no quesito crescimento. Desde a abertura econômica, o Brasil nunca mais chegou perto de alcançar altas médias de crescimento. Se antes, durante o modelo de substituição de importação (1943 – 1979), o Brasil era um país que crescia muito economicamente, a fase após a abertura econômica foi, ao contrário, caracterizada por baixo crescimento. A última década (2010 -2020), porém, foi excepcionalmente problemática, apresentando crescimento negativo de -0.1%.

Importante dizer que não existe conclusão definitiva sobre como as tendências de financeirização e estagnação se relacionam. Para alguns economistas, é o processo da estagnação econômica que induz a financeirização, uma vez que crescimento baixo estimula a busca de lucros por meios financeiros e especulativos. Já para outros, ao contrário, é a financeirização que gera a estagnação, posto que lucros financeiros tendem a manter capitais fora do setor produtivo. Seja quem for que tenha nascido primeiro, o ovo ou a galinha, importante é notar a dupla causalidade, ou seja, que o processo não é uma via de mão única, mas de mão dupla.
A estagnação pela ótica dos capitais fictícios
Pela lente dos capitais fictícios, seria possível propor a seguinte análise ao Brasil. Após o fim do regime de substituição por importação em 1979, os anos 80 estruturam o Brasil em direção a um regime financeiro. As décadas de 1990 até 2010 correspondem à primeira fase do regime, na qual a altíssima taxa Selic garantia os lucros financeiros. Sobre essa primeira fase, é possível concluir que, se por um lado, o processo de financeirização já reduziu as médias de crescimento em comparação com as décadas anteriores (de 1943 até 1979), por outro, o crescimento foi, pelo menos, positivo. Aqui, os investimentos públicos foram essenciais na indução do crescimento econômico, praticados para compensar a Selic alta.
Já a última década, de 2010 até 2020, corresponde à fase na qual juros caem para a mínima histórica. Aqui, o Brasil vive um forte processo de substituição do investimento público direto por políticas monetárias expansionistas (Selic baixa), seguindo a crença de que juros baixos levariam a economia ao crescimento. Não surpreendente, o crescimento foi negativo e a década ficou conhecida como a década perdida. Assim, a última fase faz do Brasil um exemplo a favor de Kalecki, quem afirmou que a substituição do investimento público por uma ênfase na política monetária resultaria em estagnação e juros negativos.
Quando capitais financeiros triunfam numa economia devastada
A realidade macroeconômica brasileira demonstra que o país vive, atualmente, os típicos paradoxos de uma economia financeirizada, fazendo com que passe a ser normal lermos notícias do tipo o índice Ibovespa alcançou máxima histórica em 2021 enquanto, simultaneamente, o PIB brasileiro vive a pior década em 120 anos.
Como vimos, a financeirização exacerba a lógica rentista, impede com que capitais gerem produção, emprego, renda e consumo, e fomenta os espaços especulativos da economia, como o mercado secundário da bolsa de valores.
Mais especificamente sobre o terceiro capital fictício, ações, seria possível afirmar, portanto, que o crescimento do Ibovespa a partir de 2016, enquanto lógica especulativa, não ocorre apenas desconexo da economia real, mas, justamente, decorrente de uma economia que está em frangalhos.
Bruno Mäder Lins é cientista social formado na USP e mestre em Política Econômica pela Universidade de Genebra.