Brasil como laboratório da insurreição fascista – II
Enfrenta-se o problema do fascismo brasileiro exatamente pela via que o mais alimenta: a militarização da sociedade brasileira, a segurança como registro de governo
O debate sobre “Anistia Nunca Mais” precisa fugir de ser capturado pela lógica punitiva relegitimadora do sistema penal. É de um desejo abolicionista que deve sobreviver. Não por alguma complacência com os fascismos de ocasião, nem com os mais de 1.500 detidos, seja dos agentes das forças de segurança seja das massas mobilizadas com seus colaboracionistas e organizadores, mas para evitar que se revigore o que o poder punitivo sempre produziu: violência, ressentimento, sentimento de injustiça, assim como responsabilidade localizada e programada pelo reforço das vulnerabilidades. Novamente, defluir algum efeito benéfico futuro da punição, tendo em vista a reprodução de desigualdades concretas pela seleção estigmatizante de certos membros do corpo social é desconhecer a falência e a insustentabilidade de qualquer finalidade positiva dada à pena estatal. Nenhuma insurreição fascista foi evitada pela punição de quem quer que seja. Nenhum regime fascista deixou de se instaurar pelo receio de ser punido. Muito pelo contrário, não raro teve a lei a seu favor.
Servirão os presos como pretexto para, mais uma vez, clamar que as “instituições estão funcionando normalmente”? De alguma maneira, sim, funcionam como sempre. Sabido que familiares e alguns outros privilegiados foram retirados antes mesmo das desocupações dos acampamentos. É de ampla ciência, para olhos que querem ver, quem financiou, por exemplo, a manutenção e o transporte da turba nas diversas cidades pelo Brasil. Chega a ser pedagógico do funcionamento do poder punitivo que, para assimilar os presos preventivos daqueles mais de 1500 detidos nos ataques em Brasília, o sistema carcerário do DF colocou sob monitoramento eletrônico pessoal que já deveriam estar cumprindo regimes de semiliberdade, comprovando uma vez mais a decisão política de fundo na questão criminal e que temos o número de detentos que decidimos ter e, sobretudo, quem serão.
Despolitizaremos a questão primordial seja pelo viés da discussão desde um “garantismo de ocasião” (ou seja, “direitos humanos também para humanos golpistas”) seja com doses de “punição necessária” para os “terroristas”. Cabe o registro assustador de que ambas as dimensões são aquelas mais esgrimidas com naturalidade por setores de esquerda como reações ao 8 de janeiro. O que vivemos ganha ainda mais tons surreais quando se testemunha um general como o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, hoje senador, notório defensor da ditadura militar, pedindo respeito aos direitos humanos daqueles detidos nos ataques, ao passo que cada vez mais se clama à esquerda pela “punição exemplar aos terroristas”, como manifesto pelo presidente Lula. Ficarmos restritos a esse tipo de círculo vicioso é fatal. Sobretudo quando, uma vez mais, serão setores de esquerda a bradar por ordem reivindicando o poder punitivo. Fixados, acabaremos numa mesma servidão punitiva: uma através do excesso pelo gozo da dor alheia, outra amarrada aos truques das paixões tristes e das alegrias compensatórias de punição adequada.
Reitera-se, em outros quadrantes, a comum afasia que a esquerda possui de sequer conseguir elaborar uma linguagem senão desde a gramática do seu inimigo. “Terrorismo”, a sua vez, parece ter se estabelecido como conceito básico no léxico para classificar os ataques. Esquecemos que a categoria não é apenas jurídica. Mesmo que queiramos forçar o controverso enquadramento dos atos na Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/2016), perderíamos novamente o principal da sua questão política que coloca mais em jogo do que a tipificação penal. Direto ao ponto: desde a sua sanção por Dilma Rousseff, como condição para a promoção dos grandes eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) e no contexto nas manifestações de rua de 2013 e 2015, sabemos bem a que sujeitos e movimentos a Lei foi aplicada. Se não vier à memória, podemos perguntar para alguns governadores de partidos de esquerda que não titubearam em usar as PMs em reintegrações de posse ou em protestos de professores e estudantes. Em outros termos, estamos contribuindo vez mais para desbloquear um instrumento que desde sempre foi utilizado contra os mesmos que pedem punição exemplar aos terroristas.
Poderia ser uma boa entrada para analisar do que mais serve, além disso, esse tipo de semântica o próprio tratamento dado aos acontecimentos pela grande mídia nacional, como o caso da Rede Globo de Televisão. Passado mais dez dias dos fatos quando escrevo este texto, já podemos verificar um trânsito sucessivo entre expressões: primeiramente “manifestações”, depois “bolsonaristas radicais” e mais tarde “terroristas”, quando não, mais comum atualmente, chamá-los de “golpistas”. Já se pode perceber o que veicula chamar de “terroristas” estss práticas, ou seja, também uma espécie de espelhamento entre opostos, afinal havia terroristas tanto em 2013 como agora, de esquerda e de direita. Mais problemático ainda é o que importa tanto as expressões “bolsonaristas radicais” quanto os agora “golpistas”. Ambas, de alguma forma, isolam, camuflam e imunizam o bolsonarismo, jogando apenas com um registro mais estreito e extremo dele. Novamente o argumento das “maçãs podres” funciona, ignorando que é da imanência do fascismo bolsonarista esse tipo de postura violenta, reacionária e golpista. Assim como também o termo “golpistas” acaba por diluí-los, como se estivesse ali presente qualquer espectro político. Importante ainda observar em tempo real a reconfiguração das narrativas agora também atinentes às forças de segurança, dentro do registro de “defesa das instituições”. Já aparecem em massa noticiados os vídeos gravados, normalmente cedidos pelas próprias polícias, da “resistência heroica” que impediu a depredação completa dos prédios pelos seus agentes no dia dos ataques. Arma-se, depois da flagrante conivência estrutural das forças de segurança pública e militares, a renovação da condição de anistia, nem que seja por meio da salvaguarda de parte das instituições.
Para a abolição da gestão militarizada da sociedade brasileira
Assim, o debate é necessariamente mais amplo e deverá importar, primariamente, além da abdicação da crença num efeito positivo instaurador por meio da dor infligida penalmente, tocar naquilo que a questão da polícia já sinaliza. Não se trata propriamente de “desmilitarizar o Estado brasileiro”, mesmo que a exoneração de mais de 6 mil militares em alto escalão seja imprescindível. Mesmo que a identificação das empresas que financiaram essas mobilizações (quem sabe como reparação, seja proposta sua estatização, algo nada inédito vide o que foi feito com algumas empresas depois da Segunda Guerra Mundial na Inglaterra e França, ou a delegação de administração a um conselho de pessoas trabalhadoras) seja uma medida plenamente realizável. Mesmo que a imediata remoção do alto comando das três forças para a reserva (escolham o modelo: seja antes como Charles de Gaule seja hoje como Gustavo Petro) bem como de todos os comandantes militares responsáveis pela omissão, diante dos acampamentos bolsonaristas em todos os estados da federação, seja medida mínima de lógica como efeito de insubordinação. Mesmo que devam reiteradamente ser divulgados os documentos secretos que implicam os militares, sobretudo com desvio de dinheiro público, sem qualquer finalidade de mera depuração das forças, mas como medida de comprovação de sua histórica incompetência administrativa.
Mesmo que uma tática acertada esteja vinculada a acabar com a margem de manobra dos militares na política, deve-se perseverar e buscar verter a pauta ao extremo, para que seja dada a chance de explicitar as razões para a extinção, a dissolução através de um sucateamento “lento, gradual e seguro”, das Forças Armadas no Brasil. Ao menos que seja dada a chance para que se discuta isso. Eles são a amálgama que organiza, também por suas expressões policiais, a constante colonização da política brasileira pela gestão militarizada da sociedade. Não precisamos examinar a formação e educação nas três forças para entender como eles se veem como poder moderador da República e garantidores dos demais – por mais que algum wishful thinking hermenêutico ou outro sonho dogmático tenha boa vontade (ou ilusão) de impor alguma força no manuseio interpretativo da Constituição. Os militares sempre se sentiram como salvadores da nação frente a algum inimigo interno, repaginável dependendo do contexto. Tiveram a tortura como legítima para defender o país da ameaça comunista e, segundo eles, ainda devemos ser gratos a isso. Qualquer estratégia pragmática nessa direção não deve distar, tal como seria válido para o contingente policial, a começar: pela gradual desfinanceirização com o efeito de restrição de tecnologias que tenham a sua disposição; pelo afastamento radical de qualquer ideia de que mais militarização/polícia importa maior segurança e, sobretudo, pela redução intensa desde logo do escopo de suas atividades. Isso tudo, muito atento às práticas que tentarão remasterizar suas forças, tais como, novos mecanismos de formação, transparência e supervisão, como se exatamente maior remuneração, investimento, diversidade etc. não tivessem provocado senão a tentativa de dar maior legitimidade institucional.
Longe da direção posta pela decretação da “intervenção federal” na segurança pública do DF feita pelo presidente Lula. Novamente, revigora-se a estratégia da limpeza das forças, da minoria disfuncional, sobre a qual bastaria uma depuração e um diferente comando, em nada sinalizando até agora sobre qualquer transformação de fundo que podemos levantar. Sobremaneira, enfrenta-se o problema do fascismo brasileiro exatamente pela via que o mais alimenta: a militarização da sociedade brasileira, a segurança como registro de governo. A contingência nos lega essa tremenda oportunidade para que, ao menos, pudéssemos abrir o flanco a esse tipo de discussão. A experiência terrível parece não ter bastado.
Poder fazer circular a potência de ideias como essas é lutar contra uma falta de realismo que evita encarar uma herança histórica das Forças Armadas no Brasil: nunca serviram para nada que se propuseram, senão serem cúmplices das violências seja da Colônia ao Império seja como promulgadores e tutores da República. O desastre das mortes administradas durante a pandemia teve também as suas digitais. Passando por capítulos como o genocídio operado na única “guerra vencida” (do Paraguai no século XIX) ou da “demora” em figurar nas forças aliadas na Segunda Guerra Mundial, em 1942, pela simpatia flagrante às forças nazistas do presidente Getúlio Vargas e de seu ministro da Defesa e futuro ditador marechal Eurico Gaspar Dutra, chegando às missões de paz no Haiti, mais conhecidas pelos massacres chefiados pelo general Augusto Heleno, nomeado por Lula entre 2004 e 2005 (futuro ministro de Bolsonaro), depositar qualquer crédito ou confiança nesse registro institucional isso sim é irresponsabilidade. Por outro lado, isso importará não abdicar de pensar outros modelos de organização de defesa e de segurança precisamente para não cedermos e permanecermos reféns das formas atuais. Suas tarefas constitucionais de proteção de fronteiras, combate ao tráfico de armas e drogas ilícitas – sem falar na situação constrangedora de proximidade com o garimpo e desmatamento ilegais, ainda mais escancarado nos últimos anos, em que pese seu orçamento ter sido o quarto maior em 2022, superando investimentos em saúde e educação – apenas confirmam que “Anistia Nunca Mais” é enfrentar também de frente isso, tendo muito evidente que essa condição de não reconciliação não passará.
Fascismo afinal!
Por mais que possamos ficar restritos às análises conjunturais em termos de organização estatal, o que mais oportuniza o laboratório da insurreição fascista que se tornou o Brasil, entre outras coisas, é entender e poder realmente chamar as coisas pelo nome: fascismo. Ad nauseam têm-se insistido corretamente no argumento foucaultiano de nunca tratar o fascismo apenas como um fenômeno histórico ou localizado num regime político estatal estrito, mas como um regime libidinal que planifica nossas energias, quer dizer, um modo de vida e uma forma de condução de nossa existência. Mais ainda, como uma presença imanente nas formas hegemônicas da vida das sociedades liberais. Algo que habita a todos, persegue nossos espíritos e cotidiano. Não entendê-lo assim é tornar tal condição algo acidental, uma deturpação, exatamente perdendo de vista que se trata do modo como os processos de subjetivação se deram e são realizados, em grande medida, até hoje; enfim a forma como os indivíduos foram constituídos na modernidade. Figura do momento tão importante da própria autocrítica freudiana da civilização e que Reich tão bem soube explorar para definir um regime fascista do desejo. É o progresso mesmo estampado pelas instituições a fonte imanente de nossas regressões via racionalidade moderna. Por isso, o que vimos dia 8 de janeiro, com a correspondente reação institucional, por mais chocante que possa parecer, não é como gostaria facilmente o senso comum, o reflexo da luta da civilização contra a barbárie. É exatamente o contrário: aquilo foi a expressão candente da própria civilização, naquilo que a civilização sabe muito bem produzir, ruínas. Barbárie, sim, é o estado de coisas que vivemos, as violências naturalizadas e racionalizadas ardilosamente com os mais refinados argumentos. Apenas assim levaremos ao centro o alerta de incêndio benjaminiano e arrancaremos para a construção do “real estado de exceção” da sua oitava tese sobre a história.
Por outro lado, levar a sério o contexto que vivemos é assumi-lo, sim, como revolucionário. Obviamente, bem entendido com Reich, o fascismo como uma mescla de “emoções revolucionárias” e “conceitos sociais reacionários”. De todo modo, que tem como princípio a revolução, mesmo que negada, como assevera Bataille, “negada desde a dominação interna exercida militarmente por milícias”. Certamente, é de ferir o ego dos revolucionários ortodoxos que sonham com a pura epifania emancipatória final. A meu ver, parece ser esta a condição para fugir imediatamente daquilo que domina em geral o discurso crítico sobre o fascismo, fortemente fixado no Brasil, precisamente definido por Vladimir Safatle como uma “leitura deficitária do fascismo”. Em vários sentidos do termo, não apenas porque deixa de analisar o fundamental, mas porque permanece adstrito a tentar explicá-lo por razões deficitárias, ou seja, por falta ou deficiência. Assim multiplicam-se os apontamentos acerca das deficiências cognitivas (normalmente enganados por fake news) ou morais (conduzidos pelo “ódio” ou “ressentimento”), chegando ao extremo do viés nas leituras patologizantes. Se é para falar em doença, vale lembrar, antes de tudo, que ela normalmente revela muito mais sobre que tipo de saúde aspiramos, sobre que normalidade enganosamente queremos retornar. Sintomas sociais devem é ser problematizados. Logo, preferimos insistir não numa suposta superioridade moral, nem que estejamos a falar simplesmente de loucos guiados por notícias falsas. Há algo de mais fundamental na dimensão molecular dos fluxos de desejo aí mobilizados. Pensamos ser mais frutífero as lições clássicas, desde Spinoza ao menos (ou antes por Boètie), mas seguidas por alguns como Reich e Deleuze, de que as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo! A ilusão das massas não é suficiente em resumo para explicá-lo. Lembra Deleuze na sua clássica citação: “elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isto que é necessário explicar”. Assim, elas chegam ao ponto de quererem não só para os outros, mas também para si próprios. Aqui o ponto central, elas querem antes de se justificarem. Os memes produzidos em torno das imagens de pessoas rezando para pneus e muros de quartéis, ou ainda alguém grudado por quilômetros no para-choque de caminhão podem até ser caricatas e cômicas, mas não deixam de exprimir um certo engajamento e entusiasmo invejáveis. O que virá a dar substrato e procurará preencher as ações vai ser apenas o efeito de algo que nos faz fazer, nos altera e nos transforma antes. Por isso a importância dos afetos em política, não como meros estados sentimentais, mas como força vital que nos empurra para frente.
Por isso é que podemos arriscar dizer que, de alguma maneira, eles enxergam muito bem o problema: o esgotamento de uma ordem que não sabem elaborar, com uma resposta profundamente errada e deturpada. Percebem, por assim dizer, alguma verdade com as razões erradas. Para enfrentá-lo não haverá como ignorar este empuxe à criação que devemos recuperar, através de tramas mutantes que gerem novos desejos, contagiem e ponham a circular novos mundos. É na imanência inerente aos existentes que se incrementa a potência, por isso, sempre em ato e em comum e desde uma multiplicidade ética anárquica.
O que pode nosso corpo político?
A encruzilhada nesses momentos é sempre abrupta. E ela vem sinalizada no caso brasileiro por uma questão de fundo: haverá disposição, de fato, das forças de esquerda em quebrar a dinâmica de se comportarem como fiadoras de instituições em ruínas? Saberemos sair de uma condição de parasitismo liberal que impede radicalizar as pautas e que condena as esquerdas a serem gestoras de políticas públicas assessórias? As oportunidades tornam-se estreitas quando uma postura covarde condena a necessidade de construir novos modelos em prol do reforço funcional de instituições ruídas para seus melhores ajustes.
Poderia facilmente surgir alguma refutação que fizesse soar como irreais as percepções até aqui colocadas. Diria que fora da realidade é, antes, a maneira como suportamos o injustificável a todo instante. Irreal é o atual estado de coisas. A pergunta acaba por ser, não como organizar a revolta, mas como não nos revoltamos a todo tempo. Isso passa por como entendemos o Político. Não será suficiente entendê-lo apenas como um alargamento do possível. A lição da surpresa dos ataques que se passaram – insurrecionais, mesmo que organizados e planejados – nos ensina pedagogicamente. Daí retiram sua força política. Será a uma esquerda fadada a ser administradora de possíveis que não cessará de se surpreender com o impossível realizado pelas forças fascistas.
Retomar os fundamentos dessa cena política requereria mais que ampliar a área do possível, mesmo que a ampliação da esfera do possível passasse por se perceber que além das necessidades ligadas à evolução previsível da realidade presente, há uma dimensão que sempre pode ser libertada de suas formas. Se é a própria experiência do possível que precisa se expressar, numa espécie de alargamento que surge exatamente desses movimentos, ritmos outros que, a certa altura, ampliam o pronunciável e o visível, essa potência de modelação do imaginário que sempre é possível a cada instante só pode vir de outro campo que daria sentido a ele: a zona de um acontecimento que atravessa de modo enviesado qualquer horizonte possível.
Esta potência de um “futuro”, por assim dizer, da habilidade para criar futuros possíveis, que fujam das tendências finitas e que percebam as capacidades comuns, não deixa de ser interrogada pelo que impinge seus mecanismos de emergência. Para se pensar propriamente seu regime de possibilidade, quer dizer, a estrutura destes espaços de possibilidade, não poderá a pergunta se dirigir somente ao “possível”, por justiça ao lema. A exigência não deixará de ser convocada desde o impossível. Esta é a exigência do impossível como no lema do maio de 68: “sejam realistas, exijam o impossível”. Para que essa diferença política radical possa ser possível e atualizável, para que não se ampute o acontecimento, é do impossível que se fala, de algo que atravessa assimetricamente, que não espero vir, irredutível a qualquer horizonte de projeção. Os limites do possível sempre dependerão do que em algum momento é impensável, indizível, irrepresentável e inconcebível, mesmo que vinculado a ele numa contaminação inextrincável: possível e impossível numa assimetria complementar. Em última medida, essa contaminação sempre está lá. Há impossível no possível. Que instantes como este que vivemos no Brasil sejam o estopim de abertura para além do previsível, do acordado, do politicamente projetável e possível.
E isso não se traduz em garantia de nada. Essa perseverança traz consigo boas e más notícias. A potência do impossível, do acontecimento que vem pode sempre trazê-las. Mas só tem alguma potência quem se expõe, e maior será a potência quanto maior a capacidade de ser afetado pelo novo, mesmo que sob o maior esforço que terá para fazer frente a toda pressão. Ganharemos complexidade e envergadura apenas ao preço de uma maior afetação, exatamente àquilo que pode nos fazer padecer. O quanto poderemos apenas nossas forças dirão. A guerra apenas começou.
Augusto Jobim do Amaral é professor universitário, pesquisador, escritor e tradutor; @guto_jobim.