Sedevacantismo a pretexto da sabotagem constitucional
Apesar de aparentemente ultrapassado o terror vivenciado na capital federal, não podemos esquecer que a conclusão do bolsonarismo, ainda alimentado por seus financiadores intelectuais e econômicos, é de que não há resposta satisfatória à República
O enredo dos atos radicais realizados recentemente nas sedes dos Poderes da República vem sendo germinado há muito tempo com sementes do fanatismo ideológico, que se consolidou em aceitar apenas seu “mito” como ente legítimo e divino a representar o país. Foi um ato ultrajante que nos envergonhou perante o mundo.
Evidentemente que essa tragédia foi alimentada pelas lideranças sociais e políticas – ativa e omissivamente -, que subverteram o direito fundamental de manifestação à vandalização do regime democrático. O código-fonte da ala mais extremista foi disponibilizado pelo alarde de fraude eleitoral, arquitetado durante todo o mandato do ex-presidente que, a pretexto de descredibilizar o sistema eleitoral que o elegeu, antecipou sua derrota como resultado inaceitável nas eleições.
A concepção de sedevacantismo é própria da estrutura religiosa de poder, que reside, em resumo, numa posição teológica dentro do catolicismo tradicionalista que defende que a Santa Sé está vaga e que o Papa é, na realidade, um impostor. Para os saqueadores da democracia brasileira, a chefia da República está vaga enquanto Jair Messias Bolsonaro não tomar seu posto.
Atrelado a isso, vieram os bloqueios de rodovias e a incitação em frente aos quartéis para que as Forças Armadas promovessem algum tipo de sabotagem constitucional, chegando-se à absurda falácia de acionamento do art. 142 da Lei Fundamental de 1988.
Os sabotadores do regime democrático permaneceram como cepas virais, circulando amplamente e causando infecções, passando a se alimentarem do sentimento de vandalismo típico daqueles que desprezam a democracia. Seus exemplos internacionais são evidentes e compartilham do mesmo ideal, como elementarmente proclamou Donald Trump ao dizer que uma fraude – sem provas – “permite o cancelamento de todas as regras, regulamentos e artigos, mesmo aqueles encontrados na Constituição.” (BUMP, Philip. Trump’s call to set aside the Constitution raises a question: Why now?. The Washington Post, 2022).
É preciso entender que o fanatismo se alimenta da insanidade, sendo este tipo de dominação capaz de abonar ou legitimar qualquer situação, por mais absurda que seja. É nesse ponto que os cupins da Democracia não podem ser considerados sócios ou beneficiários da omissão, descaso e da inércia daqueles que deveriam zelar pela integridade do patrimônio coletivo.
A Lei Fundamental, sedimentada no ideal dos pais fundadores, preconizou que Supremo é o povo e, nos seus exatos termos, impôs que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos […]”. Foi prestando continência aos Constituintes que no dia 30 de outubro de 2022 a maioria do povo externou sua supremacia.
É sob essa premissa que se corporifica aquilo que Abrahan Lincoln já alertava em 1838, em seu discurso diante do Liceu dos Rapazes de Springfield, Illinois, no sentido de educar sobre os assuntos do dia e compreender a importância de preservar nossas instituições políticas. Bernstein rememora que Lincoln enaltece “o estado de direito, das ameaças a este e da necessidade de preservá-lo” (2020, p. 23).
Apesar de aparentemente ultrapassado o terror vivenciado na capital federal, não podemos esquecer que a conclusão do bolsonarismo, ainda alimentado por seus financiadores intelectuais e econômicos, é de que não há resposta satisfatória à República se não jogar fora o sistema brasileiro e instalar o mito-supremo como líder mais uma vez.
Referências
BERNSTEIN. R. B. Abraham Lincoln. Escritos e Reflexões. 2020, p. 23.
https://www.washingtonpost.com/politics/2022/12/05/trump-constitution-2020-election-hunter-biden/