Brasil: do vírus à peste da autocracia
Um nefasto teatro dos horrores tomou conta da capital federal. Pedidos por ruptura institucional e toda sorte de manifestações com grotescas referências a momentos sombrios da história da humanidade fazem parte da nossa rotina dominical
Há alguns anos, Achille Mbembe, utilizando preceitos foucaultianos, explicou o que denominou de “necropolítica”. O termo se refere à ideia de que “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”.
No Brasil do coronavírus, dos soturnos clamores por rupturas institucionais e do desprezo pelas minorias e pelos mais pobres, a necropolítica parece ter encontrado campo fértil, seja nas filas dos hospitais públicos ou nas imensas filas da Caixa Econômica Federal. A vida dos mais pobres parece ter sido escolhida como descartável diante da realidade dos fatos.
O vírus avança sem que especialistas consigam afirmar se já chegamos ao pico ou se estamos ao menos próximos de ver alguma luz no fim do túnel. Ao contrário, tateamos os parcos dados da nossa falta de teste e tentamos montar enigmáticas estatísticas. Ao fim e ao cabo, nos sentimos como aqueles que passaram pela gripe espanhola: sem qualquer luz sobre a peste que paira entre nós.
Mas, como se não tivéssemos problemas o bastante, um nefasto teatro dos horrores tomou conta da capital federal. Pedidos por ruptura institucional e toda sorte de manifestações com grotescas referências a momentos sombrios da história da humanidade fazem parte da nossa rotina dominical.
A democracia agora é o inimigo. Parecemos viver um momento tirado das páginas de 1984, o célebre e distópico livro de George Orwell. Aliás qualquer semelhança entre o slogan do partido ficcional do livro e a realidade não é mera coincidência: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.
Em um momento em que se rejeita a ciência, as vacinas e até as noções de física básica, a ignorância passa a ser uma potência inigualável. Aquele com o mínimo senso crítico é execrado ao posto de inimigo.
A figura do inimigo é sempre tentadora. Guardados os devidos paralelos, o Estado brasileiro parece estar se rendendo também ao direito penal do inimigo, teoria segundo a qual, em curtíssimas linhas, aqueles considerados inimigos passam a ter um tratamento mais rígido e perdem o status de cidadão.
A mistura entre a necropolítica e o direito penal do inimigo é o ponto final do início da escuridão que se avizinha. É o início de uma forte marcha ao abismo da autocracia, do negacionismo e do ódio.
A inquietação dos protestos em defesa da nossa jovem e sofredora democracia começam a brotar aos poucos, mas teremos força de barrar o ódio? A ignorância? A necropolítica? Ou empurraremos as manifestações inconstitucionais ao posto de loucura?
A própria loucura, aliás, manifesta, segundo Erasmo de Roterdã um grande desprezo pela ingratidão e o fingimento dos mortais que nutrem por ela grande veneração e ao mesmo tempo não lhe prestam nenhum elogio público, embora aparentemente, no Brasil, a loucura agora possa sorrir com os elogios diários que recebe.
Se o vírus da autocracia se espalhar como uma peste, quando chegaremos ao pico da nossa curva de contágio? E o mais importante: onde acharemos uma vacina? Parece que nossa melhor opção agora é usar nosso único coquetel reconhecido contra a peste: reforçar nossas instituições, fazer leis rígidas para inibir discursos de ódio e apologia ao nazismo e à ditadura, proteger os vulneráveis e não tolerar os intolerantes.
O paradoxo da tolerância, de Karl Popper, deveria ser parte da nossa formação cidadã: “Devemo-nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante”.
Por fim, não podemos deixar nossas instituições desabarem. Através da arte, seja em Inhotim ou pelo rock nacional, tive acesso anos atrás à história do prédio Linda do Rosário, segundo a qual dois amantes se escondiam em um antigo hotel quando o prédio desabou e, aparentemente, escolheram morrer abraçados ao invés de sair quando o porteiro os alertou sobre a tragédia vindoura.
Pois bem, a realidade bate em nossas portas: nossa democracia está prestes a colapsar. A escolha agora é entre nós e nossas instituições morrermos abraçamos nos apegando a preceitos que não valem mais diante dos fatos ou acordarmos da nossa distopia para fugir dos riscos autoritários.
Luísa Leite é advogada eleitoralista, professora e palestrante da Escola Superior da Advocacia (ESA). Pós-graduada em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura (ESMAPE) e em Direito Eleitoral pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE)