O solo tremia debaixo dos pés. As arquibancadas urravam, como quando a bola atravessa a linha e vai parar na rede. Não era o caso: os jogadores se agrediam em campo. O placar, irredutível, testemunhava uma goleada de 3 a 0 do Bangu, mas eram os torcedores no setor destinado ao Flamengo que estavam encolerizados. O resultado dava ao clube, sob a gestão da família do contraventor Castor de Andrade, o troféu de campeão carioca de 1966. Aquilo, contudo, não era o suficiente para conter os grunhidos em vermelho e preto no Maracanã. Principalmente devido às denúncias de sabotagem contra os atletas, por ora derrotados. As acusações se estenderam por semanas na cobertura esportiva, das páginas dos jornais especializados aos programas televisivos. Não seria a última vez que o amálgama entre política, esporte e grupos paramilitares tomaria de assalto as manchetes.
Entre murros e xingamentos, o rubro-negro Almir, o Pernambuquinho, saía altivo da final entre Flamengo e Bangu. De craque com a bola nos pés, fora convertido em combatente pelos ares sufocantes que circundavam a partida. O histórico agressivo no futebol não resistira à incendiária decisão do torneio. O jogador iniciara o tumulto, partiu para cima dos adversários e recebeu o cartão vermelho. Distante dali, em Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro, a festa começava a ser preparada. A diretoria tinha as suas motivações para incentivar uma celebração de grandes proporções. Era o projeto de poder de lideranças do jogo do bicho que emergia com o sucesso do time alvirrubro. As aspirações políticas de Castor de Andrade se consolidavam justamente durante a Ditadura Militar.
Em fardas estavam alguns dos principais ministros de Estado quando, em 2020, devaneios para instauração de um novo regime autoritário ganhavam contornos reais. O presidente, Jair Bolsonaro, era dos poucos que não trajava verde-oliva nas reuniões ministeriais – havia sido expulso do Exército antes de se lançar em longa e sonolenta carreira legislativa. Marasmo que só seria rompido por elogios a torturadores, conspirações e, finalmente, pela campanha eleitoral de 2018, que ofereceu ao então deputado federal o mandato de quatro anos na Presidência. Não parece ser suficiente. Bolsonaro tenciona os poderes a fim de irromper, soberano, como o mito dos rompantes ditatoriais de seus mais fervorosos entusiastas. A combinação com esporte e milícias não poderia se dar em campo, como em 1966. O calendário esportivo estava suspenso por conta da pandemia de coronavírus. A aproximação com os clubes seria, mesmo assim, intensa. O elemento que faltava para recompor aquela fusão era Fabrício Queiroz, antigo assessor da família presidencial.
A despeito de cintilarem diante dos olhos, os dois episódios têm particularidades e a aproximação entre ambos não é automática. Milícias não são o aparato militar que protege o negócio das apostas irregulares e as consequências das ações dos bicheiros para o cenário partidário se distinguem dos desdobramentos das atitudes de milicianos. Mais de meio século separa a final do último Campeonato Carioca em que o Bangu foi vencedor do alinhamento de dirigentes dos clubes de futebol com Bolsonaro. É necessário entender por que, em períodos de ascendência autoritária, grupos à margem da lei se avizinham de setores influentes, na sociedade brasileira, e como essa conjunção é atravessada pelo futebol. Ou, pelo menos, observar quais são os motivos que tornam a relação mais evidente nesses momentos.

Para enxergar a combinação com nitidez, seria possível recorrer a várias fontes. Como foi a multidão que exultou a briga liderada por Almir em 1966, é interessante se concentrar na cultura popular. Por meio de um processo iniciado na década de 1950, a televisão se tornou o principal mediador da experiência esportiva no Brasil[1]. Um gênero televisivo, em especial, cumpre a função de promover um espaço para a discussão sobre o tema: o das mesas redondas sobre esportes. No ar desde os primeiros anos da TV no país, os debates ao vivo muitas vezes se ativeram a outros assuntos. Com a escassez de ambientes democráticos que tratassem a vida social brasileira, os comentaristas abordaram, com frequência, nuances políticas e culturais[2]. Poucas mesas redondas, contudo, reuniram tanta intensidade e verve dramática quanto a Grande Resenha Facit. Contemporâneo ao último título carioca do Bangu, o programa se dedicou às denúncias contra os bicheiros.
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É imprescindível, antes de acompanhar os comentários esportivos dos anos 1960, explicar os vínculos entre o jogo do bicho e as milícias no Rio de Janeiro. Apesar das diferenças, os dois são chamados, grosso modo, de grupos parapoliciais ou paramilitares. Publicações recentes sublinham as distinções entre ambos, mas também indicam suas afinidades. O sociólogo Michel Misse identifica semelhanças na negligência do Estado e na conivência de setores policiais com três expressões específicas do crime organizado – o tráfico de drogas, o jogo do bicho e as milícias[3]. O pesquisador esboça um panorama histórico acerca da atuação dessas quadrilhas: na década de 1950, a chefia de polícia fluminense criou um grupo para executar pessoas entendidas, então, como criminosas; nos anos de 1960, agentes de segurança do Estado formaram a “Scuderie Le Coq”, com a mesma vocação justiceira; e, após o Golpe de 1964, os membros desses grupos tiveram suas atuações fortalecidas, com o surgimento de grupos de extermínio na Baixada Fluminense[4].
O relatório final da Comissão da Verdade do Rio aponta que a Ditadura Militar foi instaurada com atos de terror de extremistas de direita e que, mais adiante, utilizou setores da Polícia Civil em suas articulações[5]. As quadrilhas estavam subordinadas aos militares e essa associação permitiu que a repressão política assassinasse, sequestrasse e ocultasse cadáveres. O texto reconhece que a relação de torturadores com bicheiros antecedeu a ofensiva contra o presidente João Goulart e permanece ativa depois da redemocratização[6]. Esses militares participariam igualmente de bandos de justiceiros. Na lista de nomes que deveriam ser responsabilizados por crimes no período de exceção, publicado no documento, está um agente da repressão preso por envolvimento com as apostas[7]. Já a Comissão Nacional da Verdade indica que o regime até condecorou um bicheiro com a Medalha do Pacificador com Palma, no Volume I do relatório final do grupo de trabalho[8].
Futebol e jogo do bicho ganharam corpo no Rio de Janeiro quase simultaneamente, no ocaso do século XIX[9]. Embora as apostas tenham surgido para cobrir as despesas do zoológico municipal, a agitação do seu entorno, no ano seguinte, mobilizava a população, o que motivou a intervenção policial e a proibição da loteria[10]. A comparação com o universo futebolístico ocorre, principalmente, porque os dois se consolidaram em um momento que a então capital federal vivia um processo de urbanização e adotava como modelo as cidades europeias. O hábito de apostar fazia parte da rotina carioca e contribuiu, por exemplo, para a popularização do turfe no mesmo período[11]. Já eram recorrentes os jogos clandestinos e constantes as ações policiais para controlar a atividade na então capital[12].
Nos anos 1960, o interesse de Castor de Andrade pelo Bangu teria sido um artifício para ampliar a influência da contravenção e, ao mesmo tempo, aumentar a aceitação social de seus líderes[13]. Castor se tornou também patrono do Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, cuja quadra é vizinha do bairro de Bangu[14]. Apesar de ter sido preso pela Ditadura Militar, o bicheiro teve transações facilitadas pelas autoridades durante o período de exceção[15]. Reconhecido por ser contrabandista, o contraventor teve crimes ignorados sob a gestão do general Ernesto Geisel. O Serviço Nacional de Informação teria tramado para isentar Castor das implicações de seus crimes[16]. Há relatos, inclusive, de que as famílias Andrade e Figueiredo tinham a negócios em conjunto[17]. João Baptista Figueiredo foi o último presidente militar durante o período discricionário.
A Ditadura Militar, entretanto, estava apenas no início no instante em que o juiz apitou o fim da partida contra o Flamengo e o Bangu se tornou o campeão carioca de 1966. Os comentários, na Grande Resenha Facit, são anteriores ao recrudescimento da repressão aos opositores do governo, mas oferecem uma perspectiva sobre o princípio do processo que consolidou o domínio do jogo do bicho em regiões do Rio de Janeiro. Muitas dessas áreas estariam sob controle das milícias quando, em 2019, Jair Bolsonaro tomou posse na Presidência da República. Observar a forma pela qual os grupos à margem da lei se aproveitaram da proximidade com as autoridades para expandir o poder no período ditatorial oferece respostas sobre os usos políticos do futebol por ditadores ou governantes que pretendem recrudescer o regime contra a democracia.
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“Cada Resenha Facit é uma pequena e luminosa lição de futebol e de vida. Balzac, se a ouvisse, havia de babar na gravata.”[18] Assim o dramaturgo, cronista e comentarista esportivo Nelson Rodrigues caracterizava a mesa redonda, da qual também participava. Era transmitida incialmente pela TV Rio e, em seguida, entrou na programação da TV Globo. Considerada paradigmática pela presença de comentaristas populares – como o próprio escritor; o radialista e treinador João Saldanha; os jornalistas Armando Nogueira e José Maria Scassa; e o técnico da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1950, Flávio Costa –, a Grande Resenha Facit induz muitos pesquisadores a erros, como atribuir ao programa a gênese das mesas redondas esportivas[19]. O gênero televisivo, em constante transformação, não permite uma mitologia de origem, mas requer atenção às rupturas ao longo da sua história[20].
O fato de ter sido exibida por mais de uma emissora e ter um elenco de comentaristas que também variava reforça essa necessidade. Grande Revista Esportiva Facit, outra denominação pela qual era conhecida, tinha como marca o tom dramático de Nelson Rodrigues. Sua grandiloquência se perdeu, no entanto, no descaso com os arquivos das emissoras de televisão. Esse conteúdo audiovisual na TV Globo é inacessível, o que faz com que seja preciso procurar em outros vestígios os rastros das discussões. Com a popularidade dos participantes, os debates foram registrados em publicações na imprensa, que ainda estão disponíveis para pesquisas. Os resquícios, apesar de rudimentares, permitem enxergar de que maneira o programa acompanhou as suspeitas que pairaram sobre a conquista do Bangu em 1966. A desconfiança contra o time da zona oeste carioca foi alimentada durante todo o campeonato.
Por terem sido incentivadas principalmente por José Maria Scassa, as acusações devem ser recebidas com ressalvas. O comentarista desempenhava a função de representante da torcida do Flamengo na Grande Resenha Facit. O clube, por outro lado, era o então campeão e pretendia repetir o sucesso do ano anterior. Desde o princípio do torneio, os rubro-negros reconheciam no Bangu um oponente forte que investiu para reforçar o elenco de jogadores. A transferência de um jogo do Flamengo para o gramado do Bonsucesso, em Teixeira de Castro – que, segundo Scassa, não tinha condições para receber atletas profissionais –, esquentou os debates no programa[21]. Uma rara menção a Castor de Andrade aconteceu quando o Fluminense perdeu sob sol intenso para o Bangu, em uma derrota que causou estranheza pela facilidade. Armando Nogueira, o mais moderado dos comentaristas da bancada, fez um trocadilho para brincar com a situação: “Perdoe a rima, você acha que foi pelo calor ou pelo Castor?”[22].
As dúvidas quanto ao conluio se intensificaram com a proximidade da decisão. Na Grande Resenha Facit, o também comentarista José Dias informou que Almir e mais dois jogadores do Flamengo passaram mal depois de tomar um cafezinho no setor 4 do Maracanã, enquanto Flávio Costa confirmou que os atletas foram atendidos pelos médicos do clube com indícios de intoxicação e tiveram que tomar vomitórios e laxativos[23]. O caso marcou o dia em que os três enfrentaram o Botafogo, na antepenúltima partida do torneio. Na edição após o episódio, João Saldanha reforçou a desconfiança – “Aquele café ali perto dos vestiários, onde os jogadores vão, dá prá desconfiar, não? É um café meio maroto”[24]. Foi chamada assim, com bom-humor, a bebida que supostamente havia prejudicado o desempenho da equipe.

As provocações não responsabilizaram o Bangu, houve um clima de sugestão. As denúncias antecederam a final contra o Flamengo, acirraram os ânimos de torcedores e jogadores envolvidos e precipitaram aquela convulsão no Maracanã diante da briga em campo. Depois do resultado, a mesa redonda se concentrou menos nas possíveis sabotagens do campeão. Houve apenas uma alusão nesse sentido. “O único caso palpável de amarelo no jogo foi o do nosso amigo Valdomiro”, reconheceu Nelson Rodrigues[25]. A expressão deu a entender que o goleiro rubro-negro não conseguiu dar o seu máximo em campo na decisão. Colega do jogador na equipe derrotada, Almir tinha uma impressão diferente: não se tratava de falta dedicação, Valdomiro havia mesmo recebido dinheiro para facilitar o título do dirigente Castor de Andrade. Pernambuquinho sustentou essa e outras acusações até a sua morte.
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A expulsão contra o Bangu é a cerimônia de encerramento da carreira de Almir Pernambuquinho. Depois da saída do Flamengo, até foi contratado pelo América, mas problemas físicos determinaram o fim de sua trajetória profissional. Quando se aposentou, o ex-jogador manteve acesas as memórias da final do Campeonato Carioca de 1966. Sustentou suspeitas em entrevistas e depoimentos, o exemplo maior disso foi o livro autobiográfico Eu e o Futebol. Os principais alvos das denúncias eram o goleiro do seu próprio time e o árbitro da decisão, Aírton Vieira de Morais, conhecido como Sansão. Logo na entrada do gramado, o juiz teria feito uma provocação. “Te cuida que hoje eu te expulso”, palavras que permaneceram nas lembranças de Almir[26]. O craque rubro-negro reafirmava ainda que Valdomiro estava na gaveta, isso é, foi comprado pelo clube adversário para entregar a última partida do torneio.
A desconfiança começou na semana anterior à final. A um companheiro de time, perguntou: “Você notou a transformação do Valdomiro nos últimos dias? Ele parece muito alegre, anda até cantando”[27]. Os dois fatos reforçaram, na cabeça do jogador, a suposição de que houve uma conspiração contra o Flamengo, porque a vitória foi alcançada com falhas do goleiro e marcações duvidosas de Sansão. “O Bangu armara um esquema para ganhar o título de qualquer maneira […] A partir de 1964, os dirigentes do clube, Eusébio de Andrade (seu Zizinho) e seu filho Castor de Andrade, aplicaram um dinheirão no Bangu para montar um grande time.”[28] Almir insistiu durante anos nessa versão a respeito da confusão no Campeonato Carioca de 1966 e da derrota rubro-negra na decisão. A voz do atleta, contudo, rapidamente se silenciou: sete anos depois da decisão contra o Bangu, foi assassinado em Copacabana.
Nenhuma das suspeitas foi confirmada, nem os acusados foram incriminados pelos fatos relatados. Até a morte do ex-jogador suscitou suposições sobre um homicídio encomendado[29]. A investigação concluiu que o ataque contra o antigo atleta do Flamengo foi uma resposta do assassino à abordagem de Almir, que tentou conter uma briga de casal. Mais importantes foram as consequências dos relatos e, por conseguinte, as implicações daquela decisão. As reações dos torcedores rubro-negros, em vários sentidos, foram incentivadas pelas acusações que recaíam sobre o time da zona oeste. O clube comandado pela família de contraventores, em contrapartida, aproveitou as celebrações no bairro de sua sede social para conquistar a simpatia dos moradores[30] e assegurar as aspirações de expandir o controle político no Rio de Janeiro. O domínio das lideranças do jogo do bicho, de fato, foi ampliado durante os governos dos generais. O recrutamento de figuras e procedimentos da repressão política, mesmo após a redemocratização, sustentou esse projeto de poder.
As conexões do presidente da República eleito em 2018 com as milícias, de um lado, e com o esporte, de outro, têm contornos mais bem definidos. A relação com grupos paramilitares que controlam territórios fluminenses é representada, principalmente, pelo policial militar reformado Fabrício Queiroz. Por décadas assessor parlamentar de Bolsonaro e de seus filhos, Queiroz foi preso no primeiro semestre de 2020, enquanto se escondia em imóvel do advogado da família do presidente. A crise deflagrada pela operação contra o aliado bolsonarista foi quase simultânea ao arranjo do governo federal com dirigentes do futebol. No mesmo período, o Palácio do Planalto recebeu representantes dos clubes para negociar dois temas: a antecipação da retomada do calendário esportivo durante a pandemia de coronavírus e uma mudança nas regras para transmissão de eventos esportivos.
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Janelas tremularam de tanto ruído. Os estádios estavam fechados desde que as contaminações por coronavírus se tornaram irrefreáveis no território brasileiro. As ruas, nem tão vazias – ora devido aos estímulos para que fosse desrespeitado o isolamento social, ora pela imposição de sobreviver –, presenciaram súplicas de panelas estridentes. Embora certo apoio ao governo Bolsonaro fosse mantido, essas manifestações se somaram a corajosos protestos de torcedores de clubes de futebol, que enfrentaram atos a favor do fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso no primeiro semestre de 2020. A discussão sobre os laços entre grupos paramilitares, futebol e autoritarismo se ateve, na Ditadura, ao conteúdo de uma xícara. Hoje, o presidente se aproxima das diretorias dos clubes ao mesmo tempo que sua relação com as milícias se torna eloquente.
A Justiça ainda se debruça sobre as tramas de Queiroz. As acusações, entre as quais a de lavagem de dinheiro, indicam que o policial reformado aproximava milicianos da zona oeste do Rio de deputados. Havia empreendimentos imobiliários para a ocupação da área e, assim, para a expansão do domínio territorial. A contínua parceria com a família do presidente fez com que a investigação se desdobrasse para a atuação parlamentar de Jair e Flávio, seu filho, eleito para quatro mandatos na Assembleia Legislativa fluminense e agora senador da República. Até a região remete às iniciativas de Castor de Andrade no momento que o último troféu de campeão estadual foi erguido pelo Bangu. A ordem de prisão para o ex-assessor foi cumprida na fase em que o governo ensaiava uma ofensiva para a intervenção no Legislativo e no Judiciário.
Para a investida em direção a outro período ditatorial, Bolsonaro passou a contar com o apoio das diretorias dos principais clubes de futebol. O primeiro aceno foi da comitiva do Flamengo, liderada por Rodolfo Landim. Durante a mais severa crise sanitária do século, os dirigentes apelaram a Brasília para antecipar o retorno do calendário esportivo. A visita teve a companhia do presidente do Vasco da Gama, Alexandre Campelo. Depois do encontro, Flávio Bolsonaro vestiu a camisa cruz-maltina, enquanto seu pai surgiu com o uniforme rubro-negro para selar o acordo. O Campeonato Carioca foi o primeiro a voltar a ser disputado no Brasil. O gesto seguinte foi a edição da Medida Provisória 984/2020, que altera as normas para a exibição de eventos esportivos na TV.
O texto concede aos clubes mais autonomia para negociar as transmissões. As diretorias de Palmeiras, Santos, Internacional, Athletico-PR, Bahia, Coritiba, Fortaleza e Ceará se reuniram no Planalto para celebrar o pacto. As duas atitudes foram debatidas nas mesas redondas esportivas. Em circunstâncias muito distintas daquelas que margeavam a Grande Resenha Facit, em canais de pacotes por assinatura e com participações por videoconferência, os programas discutiram esses atravessamentos com a política. O tênue elo dos grupos paramilitares com o esporte, contudo, reside nas sutilezas e foi negligenciado pelos comentários. A forte relação dos torcedores com seus times incentiva acertos políticos em diversas passagens da história recente do Brasil.
O chão se move. A brutalidade autoritária buscou nos episódios na Ditadura Militar e no atual mandato refúgio na ligação sincera com o futebol para manter em curso os próprios projetos de poder. Além da perplexidade com a sanha militar, há a precária condição sanitária do Brasil atual. O futebol se constituiu como uma delicada forma de se opor ao controle no país durante o século XX, mas o horror da peste agora contribui para tumultuar a percepção. Encarar o esporte puramente sob a perspectiva da dominação seria uma leviandade e ignoraria a agitação social, cultural e política de toda a gente. O abrupto estremecimento da superfície é mais explícito se forem ouvidos os ruídos do passado. Das súplicas das oficinas de tortura aos urros das torcidas à beira do campo.
Helcio Herbert Neto é mestre em Comunicação (UFF), doutorando em História Comparada (UFRJ) e pesquisador do laboratório de História do Esporte e do Lazer (Sport/UFRJ).
[1] Helcio Herbert Neto, Programas esportivos de mesa redonda – a questão da autoridade no gênero televisivo (dissertação de mestrado). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2019.
[2] Helcio Herbert Neto, Neymar Challenge – Mesas Redondas Esportivas na TV sob Desafio. São Carlos: Revista GEMInIS, v. 10, n. 3, p. 55-76, 2020.
[3] “Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades”. Curitiba: Revista Sociologia Política, 2010, v. 19, n. 40, p. 13-25.
[4] Ibidem, p. 21.
[5] Álvaro Machado Caldas et alli, Comissão da Verdade do Rio – Relatório. Rio de Janeiro: Nova Imprensa Oficial, 2015, p. 389.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem, p. 405.
[8] José Carlos Dias et alli, Comissão Nacional da Verdade – Volume I. Brasília: Imprensa Oficial, 2014, p. 875.
[9] Micael Herschmann e Kátia Lerner, Lance de Sorte – Futebol e Jogo do Bicho na Belle Époque Carioca. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.
[10] Ibidem, p. 64.
[11] Victor Andrade de Melo, Cidade Sportiva – Primórdios do esporte no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 163.
[12] Ibidem, p. 165.
[13] Andrew Jennings, Um Jogo cada vez mais Sujo – O padrão Fifa de fazer negócios e manter tudo em silêncio. São Paulo: Panda Books, 2014.
[14] Ibidem, p. 15.
[15] Chico Otávio e Aloy Jupiara, Os Porões da Contravenção – Jogo do bicho e Ditadura Militar. Rio de Janeiro, Editora Record, 2015, p. 126.
[16] Ibidem, p. 198.
[17] Ibidem, p. 195.
[18] Nelson Rodrigues Apud Helcio Herbert Neto, Programas esportivos de mesa redonda – a questão da autoridade no gênero televisivo (dissertação de mestrado). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2019, p. 13.
[19] Bernardo Borges Buarque de Hollanda, Mesas-redondas: da falação esportiva ao futebol falado. In Bernardo Borges Buarque de Hollanda. et alli. Olho no Lance: Ensaios sobre Esporte e Televisão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013, p. 120- 147.
[20] Helcio Herbert Neto, Mittel, Foucault e Nietzsche – Cultura, Genealogia e História. Revista Aproximação, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 19-36, 2020.
[21] “Zezé fica porque está cotado para a seleção” (GRANDE REVISTA ESPORTIVA FACIT). Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1966, p. 7.
[22] “Mesa vê raça do Fla contra Bangu técnico” (GRANDE REVISTA ESPORTIVA FACIT). Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1966, p. 7.
[23] “Mesa considera Bangu o provável campeão” (GRANDE REVISTA ESPORTIVA FACIT). Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1966, p. 7.
[24] Ibidem.
[25] “Almir: herói de uns e vilão para outros” (GRANDE REVISTA ESPORTIVA FACIT). Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1966.
[26] Almir Albuquerque, Eu e o Futebol. São Paulo: Biblioteca Esportiva Abril, 1973, p. 35.
[27] Ibidem, p. 34
[28] Ibidem, p. 37.
[29] Tárik de Souza, “Killing no Mundo da Bola?”. O Pasquim. Rio de Janeiro, 24 de julho de 1973, p. 20.
[30] A festa pelo campeonato reuniu muita gente no bairro do clube. Informações em “Scassa faltou ao churrasco do Bangu” (GRANDE REVISTA ESPORTIVA FACIT). Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 1967, p. 7.