Camareiras nos palácios nova-iorquinos
Clientes de prestígio, trabalhadores de palácios: nos hotéis de luxo, 2 mundos que se chocam vieram à tona após a prisão do ex-diretor do FMI. Meses de imersão em uma pesquisa etnográfica permitiram descobrir os segredos dessas relações domésticas dentro das quais, apesar das desigualdades, cada um faz seu papelRachid Khechana
Na prisão no último mês de maio em Nova York do ex-diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn, e de um homem de negócios egípcio, Mahmoud Abdel Salam Omar, ambos acusados de agredir sexualmente uma camareira, chamou a atenção do público sobre as relações de poder entre clientes e empregados nos hotéis de luxo. A indignação despertada por esses casos nos lembra que o cliente nem sempre é rei e que certos serviços não estão incluídos no pacote hoteleiro.
Falou-se menos, contudo, nas múltiplas comodidades que o Senhor ou a Madame podem pretender, em troca de centenas e, às vezes, milhares de euros que desembolsam por uma única noite nem no impacto desses direitos senhoriais sobre as condições de trabalho dos empregados. Doze meses de imersão no contexto de uma pesquisa etnográfica permitiram apreender e descobrir os segredos dessas relações domésticas dentro das quais, apesar das desigualdades extremas, cada um faz seu papel.1
Os grandes hotéis se distinguem pelo conforto, refinamento e objetos banhados a ouro. Mas os profissionais do setor sabem que o diferencial é sobretudo a qualidade do serviço, porque, como afirma um gerente, “todos nós temos camas e banheiros”. A equipe tem de estar atenta aos mínimos detalhes, chamando o cliente pelo sobrenome, precipitando-se para satisfazer seus mais ínfimos desejos e cuidando para memorizar suas manias com vistas a uma próxima estadia no estabelecimento. Um cliente assim exige para seu café da manhã fatias de mamão cortadas em lâminas retas, certamente não em fatias irregulares como é o costume da casa. Outro cliente não suporta chuveiros abertos e exigirá cortinas, ou vice-versa. O fumante encontrará em seu quarto um pacote de seus cigarros preferidos e, se não for o caso, haverá sempre um mensageiro à sua disposição para ir comprá-los de imediato. Os trabalhadores dos hotéis de luxo “mimam você mais do que sua própria mãe”, afirma um habitué.
Divisão étnica
A fim de cuidar da clientela e reconfortá-la, um palácio digno desse nome mobiliza centenas de empregados atribuindo-lhes as tarefas mais diversas. Estas dividem-se em duas categorias: o serviço direto aos clientes (front of the house) e o serviço indireto (back of the house), relegado aos bastidores. A contratação de um empregado para um ou para outro depende, em geral, de sua origem étnica.
Nos Estados Unidos, os bastidores recorrem com frequência a uma mão de obra imigrante proveniente da América Latina, da Ásia, do Leste Europeu e da África. A ela são incumbidas as tarefas menos visíveis e mais extenuantes, como a limpeza e a arrumação dos quartos, o recolhimento da roupa de cama e de banho, a lavanderia, o engraxamento de sapatos etc. O pessoal que faz esse trabalho “na sombra” não dispõe de nenhuma autonomia. Às camareiras, por exemplo, a direção impõe cotas draconianas (no mínimo doze quartos por dia em um hotel de alta categoria, às vezes o dobro) para um trabalho fisicamente árduo: arrumar as camas levantando colchões pesados, passar aspirador, lavar o chão, esvaziar os cestos de lixo, trocar os lençóis e as fronhas, esfregar os lavabos e as privadas, pendurar os roupões de banho limpos no banheiro, substituir as pilhas de toalhas e os produtos cosméticos. Outras passarão à noite para dar um retoque na limpeza, estender os lençóis, ligar o rádio, realinhar o par de pantufas, encher o cesto de frutas. Para realizar essas tarefas, não é raro que os empregados renunciem às pausas. Uma camareira afirmou ter perdido 5 quilos durante suas primeiras semanas de serviço.
As funções da linha de frente, que requerem uma relação direta com o cliente – recepcionista, telefonista, mensageiro, porteiro, zelador… –, são reservadas aos empregados brancos nascidos nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental. Ao trabalho físico que consiste em carregar as bagagens, assegurar o “serviço de quarto” ou fazer as reservas se adiciona a especificidade menos tangível do elo “emocional”.2 Sempre a postos para resolver os problemas mais insignificantes com urgência, submetidos aos caprichos e às mudanças bruscas de humor dos abastados, esses empregados não são menos favorecidos em relação aos trabalhadores dos bastidores – nem que considerássemos apenas o fato de receberem gorjetas, que representam quase sempre uma parte não negligenciável de sua remuneração.
Nos limites do servilismo
Os “visíveis” estão lá para conferir ao cliente as mil pequenas atenções que contribuem para a grandeza da indústria do luxo. Eles conversam com ele, riem de suas piadas, concordam com suas opiniões, ajudam-no a encontrar seu caminho nos belos bairros, tentam apaziguá-lo quando uma adversidade o atinge. Para livrá-lo de suas preocupações, eles estão prontos a ir muito longe.
Um dia, o zelador de um hotel onde trabalhei teve de convencer o gerente de uma loja a abrir seu estabelecimento uma hora mais cedo para que um cliente pudesse comprar um terno novo antes de uma reunião de negócios. Outro colega teve de tirar os sapatos para emprestá-los a um cliente que tinha perdido os seus no serviço de lustrar sapatos. Cada vez, o empregado deve manifestar-lhe amizade (mas sem informalidade), atenção (mas sem exageros) e sincero devotamento. Nunca a atenção que lhe é conferida deve parecer rotineira: o cliente é uma pessoa única e muito importante e convém mostrar-lhe isso em qualquer circunstância.
Para dar consentimento a essa relação de domesticidade, os empregados devem sentir-se privilegiados por trabalhar em um palácio. Antes de tudo, pensam ocupar uma função particularmente qualificada – sobretudo de memorização, de discrição, de refinamento, de cortesia etc. – que os distingue tanto dos empregados dos hotéis de categoria mais baixa como de outros trabalhadores do setor de serviços.
Eles também valorizam a autonomia: o contato direto com os clientes faz que seu controle seja difícil, afastando qualquer possibilidade de regular seu trabalho. A necessidade de tomar iniciativas para mimar os clientes da noite até a manhã lhes proporciona um sentimento de liberdade, que permite aceitar as condições de trabalho mais facilmente. Pois, como mostrou o sociólogo Michael Burrawoy,3 quanto mais o trabalhador se acha autônomo e soberano sobre suas escolhas, mais ele vai se dedicar às suas tarefas com vontade, sem questionar seu sentido.
Conferindo-lhes gratificações simbólicas, os gerentes incitam implicitamente seus empregados a se dedicar de corpo e alma ao trabalho, exercendo assim uma forma invisível de coerção. A noção de “orgulho” é uma peça central nessa troca desigual. Em tal estabelecimento, o diretor de recursos humanos insiste em dizer a seus empregados que eles devem se sentir “orgulhosos de trabalhar aqui”, levando em conta a excelência dos benefícios oferecidos. Além disso, ele faz questão de abrilhantar o prestígio envolvido no fato de trabalhar a serviço de importantes tomadores de decisão, qualificados de “top 1%”.
Pertencimento de classe
A atitude dos clientes reforça essa ilusão. Muitos deles se comportam de modo amável com os empregados. Eles lhes agradecem calorosamente, lembram-se de seus nomes; alguns habitués perguntam até mesmo pela família ou oferecem presentes. As relações se inscrevem assim em um jogo de reciprocidade no qual cada um é reconhecido como indivíduo e no qual a discrição é a palavra de ordem. Colocar uma gorjeta em um envelope ou passar uma nota durante um aperto de mão faz parte dessa estratégia de confidencialidade que permite ao empregado se sentir cúmplice do cliente e, de certa forma, seu igual. A troca monetária passa quase despercebida, de modo que a relação parece ser voluntária de ambos os lados.
Clientes e empregados se dissociam de seu pertencimento de classe. Os primeiros não sentem que estão explorando os últimos, que também não se sentem subordinados. Todos participam de um mesmo teatro social no qual as diferenças de classe são normalizadas, e ambas as partes se concentram no que têm em comum, e não no que as separa.
Essa servidão negada oculta o fato de que o que determina as condições de trabalho dos empregados da hotelaria – salários, direitos sociais, cadência de trabalho – depende essencialmente da presença dos sindicatos. Segundo Annemarie Strassel, do sindicato Unite Here (“Unam-se aqui”), o tratamento correto reservado às camareiras dos grandes hotéis nova-iorquinos (US$ 24 por hora em média e seguro-saúde gratuito, além de um limite diário que não ultrapassa catorze quartos) se explica por uma boa representação local do sindicato correspondente. Nas cidades tradicionalmente receptivas ao sindicalismo, como Nova York, Las Vegas, Los Angeles ou San Francisco, mesmo estabelecimentos não sindicalizados tendem a conceder salários convencionados e seguros-saúde para evitar riscos de movimentos sociais.
A situação é outra em cidades hostis aos sindicatos. Em Indianápolis, por exemplo, uma camareira de um hotel de luxo ganha US$ 7,25 por hora para trinta quartos limpos em oito horas – uma cota impossível de ser atingida sem prejudicar a saúde. Segundo o Unite Here, os acidentes ou as doenças do trabalho nos empregados dos hotéis ultrapassam em 25% a média em vigor na indústria dos serviços, e são as camareiras que pagam o preço mais alto nessa área. Os estabelecimentos não sindicalizados preferem, em geral, terceirizar a limpeza dos quartos contratando empresas externas a encontrar seus próprios empregados, o que permite desvincular-se de um eventual problema.
No contexto norte-americano, marcado por um direito do trabalho pouco protetor e uma forte oposição patronal em relação às organizações salariais, os trabalhadores sindicalizados do setor hoteleiro estão em melhor situação do que seus colegas da indústria dos serviços, em sua maioria acostumados a salários deploráveis e ausência de seguro-saúde. Daí a afirmar que os trabalhadores são generosamente remunerados é um pequeno passo que o lobby patronal está pronto a dar – como recentemente ocorreu em Wisconsin, onde uma campanha de mídia orquestrada pelos meios patronais culpou os sindicatos pela remuneração “exorbitante” de professores e outros funcionários públicos. No entanto, mesmo sindicalizados, os empregados da hotelaria de luxo não ganham nem mesmo o suficiente para ter acesso ao nível de vida das classes médias. Eles fornecem um serviço do qual jamais poderão usufruir, e os clientes de quem cuidam vivem literalmente em outro planeta: Strauss-Kahn recebia do FMI um salário anual líquido livre de impostos de US$ 461.510, sem contar os benefícios e as vantagens diversas e o direito a uma superaposentadoria.
Independentemente das rendas e das condições de trabalho, as convenções sindicais protegem os empregados contra sanções injustificadas e demissões arbitrárias, ambos perfeitamente permitidos pelo direito norte-americano. Não foi por acaso que a suposta vítima de Strauss-Kahn obteve o apoio de sua diretoria: no Sofitel de Nova York, o sindicato está bem representado.
Dois chefes
Esse episódio ilustra outra característica do trabalho hoteleiro: a exemplo da maioria dos assalariados da área de serviços, os empregados dos hotéis se submetem à autoridade dos clientes tanto quanto à de seu patrão. Com frequência, uma é sustentada pela outra por meio de gerentes que incentivam clientes a reclamar pela menor falha, a dar notas aos empregados em cartões deixados à disposição, a se encarregar, em resumo, da avaliação do trabalhador. Muitos hotéis utilizam “clientes ocultos” para testar a qualidade do serviço.
Apesar de atuarem nos bastidores, as camareiras vivem com um medo constante de serem recriminadas, o que lhes conferiria, como uma delas afirma, uma “má reputação”. Todas sabem que as piores catástrofes provêm de detalhes: um cliente que telefona para a recepção para se queixar de um buraco em uma de suas quinze toalhas, outro que se ofende por uma marca na parede, ou ainda outro que dispara o alarme por causa de um fio de cabelo na banheira – que, contudo, ele próprio acabou de usar. O cliente compra também o direito de controlar os empregados, e essa prerrogativa, paga com rios de dinheiro, reforça a pressão que pesa sobre eles.
Se a maioria dos clientes adere às regras da civilidade recíproca e trata os empregados de modo adequado – os clientes de hotéis de categoria inferior seriam claramente mais difíceis, pois eles seriam mais irrealistas em seus pedidos e, portanto, mais inclinados a recriminar o pessoal –, outros se comportam de modo grosseiro, ameaçam os trabalhadores e vencem o Tio Patinhas em matéria de avareza. Ora, mesmo nesses casos – sobretudo neles –, o pessoal deve se manter polido e baixar a cabeça. O que não o impedirá de, mais tarde, se vingar de maneira sutil, atribuindo-lhe o quarto mais exíguo, estacionando seu carro em local inacessível, ridicularizando-o pelas costas ou fazendo corpo mole. Um porteiro explicou a respeito de um cliente: “Esse cara assobia para me chamar como se eu fosse um cachorro. De todas as ordens que recebo, sempre dou um jeito para que a dele seja a última a ser cumprida”. Outro dia, ouvi um recepcionista dizer depois de desligar o telefone, após conversar com um cliente difícil que o destratou: “Nada de desconto para você!”.
Esses pequenos episódios transgressivos ocorrem sem que o cliente perceba: eles dão a impressão ao empregado de deter um poder, reforçando seu sentimento de autonomia e, portanto, seu consentimento em relação às tarefas que tem de efetuar. Vingando-se individualmente de um cliente em particular, o trabalhador se esquece da resistência coletiva que colocaria a ordem social em questão.
Nos Estados Unidos, onde a convicção de viver em uma sociedade de iguais é tão forte quanto o abismo entre ricos e pobres, a evidência das relações de classe nos hotéis de luxo não passa sem provocar certo incômodo. O patrão pode, em geral, mostrar-se amável com seus serventes, mas a dominação de um sobre o outro não é em lugar nenhum mais verdadeira que sob o teto de um palácio. Os sindicalistas têm ainda muito trabalho pela frente para defender a dignidade dos empregados e seu direito a uma vida decente. Por agora, o trabalho cotidiano na hotelaria de prestígio reproduz a ideia implícita de que certas pessoas têm vocação para tudo receber e outras para tudo dar.
Rachid Khechana é Jornalista da Al-Jazira, responsável pelo Magreb.