Como a câmera de Jorge Bodanzky revelou o Brasil escondido pela ditadura militar
Exposição reúne obra do diretor de cinema no IMS de São Paulo, misturando fotografia e vídeo para mostrar “uma imagem de um Brasil que não tinha imagem” no aniversário de 60 anos do golpe de 1964
“Trabalhar com a realidade brasileira era um risco”, explica Jorge Bodanzky sobre seu tempo fotografando e filmando o dia a dia do Brasil sob o regime militar. Há 60 anos, entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964, o que era a “realidade brasileira” iria mudar radicalmente: o país perdeu seu presidente, João Goulart, e sua democracia em um golpe dos militares, mas não sem apoio de grandes empresários, da Igreja Católica, da mídia e dos Estados Unidos.
Durante os 21 anos seguintes, alguns dos setores que apoiaram o golpe nos primeiros momentos perceberiam seu erro, enquanto outros continuariam no barco dos militares (que, com seu apreço por obras faraônicas fadadas ao fracasso, pode muito bem ser o Titanic) até a “década perdida” de 1980, quando a corrupção e os problemas do projeto nacional de desenvolvimento dos militares não conseguiam mais ser escondidos. O Brasil voltou para a democracia em 1985 com as contas no vermelho, um país quebrado e violentado por tecnocratas autoritários.
Essas duas décadas de repressão e transformação foram documentadas de perto por Jorge Bodanzky, diretor de cinema, fotógrafo e protagonista de uma nova exposição no Instituto Moreira Salles de São Paulo sobre seu trabalho durante a ditadura militar brasileira. Nos anos em que ele não podia “dar bobeira” e precisava tomar cuidado com o risco de ser um artista e um ativista, Bodanzky trabalhou como fotojornalista, câmera para vários filmes nacionais e realizou seus próprios projetos para o cinema e a televisão para mostrar o que acontecia no Brasil dominado pela censura e pela narrativa oficial do regime militar, “produzindo uma contra-imagem do país na ditadura”, como explica o curador da exposição, Thyago Nogueira.
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Bodanzky iniciou sua carreira de fotógrafo ainda na Universidade de Brasília, onde estudou entre 1964 e 1965. Trabalhou como fotojornalista para as revista Manchete e Realidade, entre outros veículos, pelos quais cobriu eventos como o golpe militar na Bolívia, a detenção do grupo de teatro The Living Theatre no Brasil e as associações culturais comunitárias no governo de Salvador Allende, pouco antes do golpe militar no Chile. Na Escola de Design de Ulm, na Alemanha, aprendeu o ofício do diretor de fotografia, trabalho pelo qual ficaria mais conhecido no cinema brasileiro. Recém-chegado da Alemanha, em 1969, ficou por trás das câmeras de O Profeta da Fome, dirigido por Maurice Capovilla e estrelado por José Mojica Marins – o Zé do Caixão.
Seu longa de estreia, Iracema: uma transa amazônica (1974), codirigido com Orlando Senna, foi censurado no Brasil até 1981. Após Iracema, dirigiu inúmeros filmes, dentre os quais destacam-se Gitirana (1975, codireção de Orlando Senna), Jari (1979, codireção de Wolf Gauer) e Amazônia, a nova Minamata? (2022). A formação de Bodanzky enquanto fotógrafo ajuda a entender seu trabalho como diretor: “quando eu me senti maduro o suficiente para fazer meu primeiro trabalho como direção, eu já tinha uma experiência de câmera. A minha direção, até hoje, é sempre através da câmera”, afirma. De fato, o estilo único de fotografia é perceptível em seus filmes, que se aproveitam do movimento da câmera – sempre nas mãos do diretor, em vez do tripé – para organizar a cena.
Seu estilo de filmar também reflete a realidade social em que se inseriam suas produções: “ao trabalhar em momentos de risco, você incorpora isso”, define o diretor. A câmera na mão, o som direto, as atuações improvisadas e a Kombi ao lado, pronta para abrigar a pequena equipe e dar partida, viraram a marca de um cinema que foge da opressão para construir a contra-imagem do Brasil sob a ditadura. “Uma imagem que a ditadura não queria que existisse e que a gente não via em outras formas. Todo mundo estava amordaçado nesse período”, comenta o curador Thyago Nogueira. Enquanto canais de televisão, jornais e revistas sofriam com a censura, o cinema conseguia driblar os militares. Contudo, Bodanzky adverte: “você não pode dar bobeira. Tem que ser simples e rápido. Se você começa a enrolar muito, aí não dá certo”.
Apesar de ser fruto de um sistema repressivo, a produção cinematográfica fugaz que construiu Jorge Bodanzky também lhe garantiu independência total enquanto diretor: “eu prezo muito é a independência dos meus filmes. Eu consegui isso em função de ser uma produção extremamente simples, não dependente de recursos, de estruturas complicadas, iluminação, equipe grande. Eu sempre trabalhei com equipamento muito simples. Na época, 16mm e super-8. Hoje, eu estou com o celular”.
Na hora de exibir os filmes, por outro lado, não era tão fácil assim fugir dos censores. Em razão da censura, seus filmes produzidos durante a ditadura não tiveram estreia nos cinemas ou na televisão – a isso se dá pelo fato de que sua obra ainda é pouco conhecida e apreciada pelos brasileiros. Por outro lado, eles ganharam público no movimento cineclubista que trabalhava intensamente para mostrar um pouco do que acontecia por debaixo dos panos da propaganda militar. O diretor conta: “Esses cineclubes eram das comunidades eclesiais de base, dos sindicatos, dos movimentos estudantis. Todas essas entidades, organizações de sociedade civil, eram uma espécie de circuito semiclandestino, que não era sujeito a ser censurado. Então, os filmes circularam nessas áreas, que me interessavam bastante, porque era justamente o pessoal que estava fazendo oposição ao registro [oficial].”
Espalhados pelo Brasil, esses cineclubes organizaram-se nas periferias, no campo e nas cidades, fazendo cumprir o papel ativista que o cinema de Bodanzky tinha desde o início. Sair das capitais também foi importante para o projeto de cinema que o diretor visava construir: “é muito valioso também pelo fato de ser um registro que olha para o interior do país, fora das grandes capitais. Não é a ditadura como a gente já conhece, em São Paulo e no Rio de Janeiro”, define o curador.
Enquanto a máquina de propaganda da ditadura distribuía imagens oficiais e histórias prontas sobre as grandes obras de infraestrutura do período, Bodanzky se dedicou a observar de perto e documentar os conflitos e disputas que vinham junto das obras faraônicas dos militares. “Ele produziu uma imagem de um Brasil que não tinha imagem”, afirmou Thyago. Na obra do cineasta, o paradoxo brasileiro é explicitado. Em suas fotos, grandes maravilhas da engenharia existem ao lado de descampados destruídos e terras arrasadas. O enquadramento de Bodanzky mostra aquilo que os fotógrafos do governo não queriam mostrar.
Os trabalhos do diretor expostos no IMS têm, nas palavras dele, uma “triste atualidade”. “A maneira com que o Brasil olha para a vida não mudou desde o projeto dos militares nos anos 60”, afirma Bodanzky. Enquanto o país continua se encantando com a história mal-contada do milagre econômico, suas consequências diretas, visíveis nos trabalhos expostos no IMS, continuam se repetindo. A falta de consideração pelas comunidades tradicionais e povos da floresta continua, sendo eles os mais afetados pelas grandes obras da ditadura e do período democrático.
“Se você continua trabalhando em cima dos mesmos modelos, os problemas permanecem”, afirma Bodanzky. Por mais que a redemocratização tenha corrigido os rumos do Brasil em diversas frentes, o relacionamento do Estado com a natureza e a “associação perniciosa entre iniciativa pública e privada”, como afirma Thyago Nogueira, continuam similares demais ao que acontecia durante a ditadura. Essa redemocratização foi para quem, já que os povos indígenas, por exemplo, continuaram sem ser ouvidos e respeitados, como na liberação da licença de operação para a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.
A Amazônia foi um cenário frequente para os filmes e reportagens de Jorge Bodanzky e presente nas fantasias dos militares, que se referiam à floresta como “grande continente verde vazio”, segundo Thyago. Para o cineasta, os problemas envolvendo a região são internacionais e “pan-amazônicos”. Como resolver o garimpo no Brasil se os países vizinhos podem continuar garimpando e poluindo as águas que compartilhamos? “Se você não vê isso de uma forma holística, dificilmente vai gerar uma mudança”, afirma o cineasta.
As fotos de 60 anos atrás podem exibir pessoas usando roupas e cortes de cabelo diferentes, mas mostram um Brasil que ainda continua, em muitos aspectos, o mesmo. Essas obras, como afirma Thyago Nogueira, são uma importante “chave de compreensão do país que a gente vive hoje. Se a gente não conseguir estudar isso, não temos uma possibilidade de avançar num futuro melhor. A gente vai repetir esse mesmo labirinto infeliz, mesmo que esteja, teoricamente, num projeto democrático”. Só um ano atrás, no 8 de janeiro de 2023, o Brasil quase viu uma repetição do próprio golpe de 1964. O projeto democrático também está em perigo.
Dividida em quatro eixos temáticos – resistência, exploração do trabalho, religião e progresso – a exposição “Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985” abre sábado, 23 de março, e ocupa o 6º andar do IMS Paulista, apresentando fotos, filmes e vídeos de super-8 do diretor, que tem sua obra analógica armazenada no acervo do Instituto Moreira Salles.
A exposição que relembra os 60 anos do golpe de 1964 vai continuar até 28 de julho e pode ser visitada gratuitamente na Avenida Paulista, 2424.
Carolina Azevedo e Eduardo Lima fazem parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.