Caminhar olhando para trás
No amplo espectro de tranformações políticas na região sul-americana, o processo boliviano tem as características mais avançadas de uma mudança estrutural. A partir da luta antiestatal os movimentos sociais e indígenas passaram a pensar formas de governo e de autodeterminação social, chegando a um novo projeto de país
Estes tempos de crise e incerteza em todos os âmbitos da vida em sociedade terminaram derrubando os estados de euforia pós-modernista e os comportamentos cínicos que caracterizaram aquele tom triunfalista neoliberal que, globalmente, foi homogêneo nas últimas décadas.
A América do Sul protagonizou as maiores lutas sociais, como o levante zapatista, os sem-terra, o “caracaço” venezuelano, a guerra da água de Cochabamba, o movimento indígena do Equador, os piqueteiros na Argentina e a guerra do gás em El Alto, por exemplo. E, consequentemente, as mudanças de direção nos governos da região ou, como podemos denominar, a emergência sul-americana com Chávez, Lula, Evo e, por que não, os presidentes eleitos recentemente.
Neste amplo espectro de mudanças políticas na região sul-americana, o processo boliviano tem a singularidade e as características que foram descritas como as mais avançadas em relação a iniciativas políticas, e profundas quando falamos em mudanças estruturais. E, mesmo assim, talvez seja uma das histórias nacionais mais fragmentadas e interrompidas. Não devemos esquecer que a Bolivia foi, entre as décadas de 80 e 90 – depois do fracasso do reinício da abertura política com uma ampla frente democrática (UDP) e a quebra da economia com uma hiperinflação de 13.000% – o espaço predileto das iniciativas dos ajustes estruturais neoliberais. Essa capacidade hegemônica neoliberal não teria ocorrido se ela não se mostrasse como a superação dos regimes ditatoriais, como se esse fosse o preço da democracia, o custo da estabilidade institucional e o controle da inflação monetária.
Mas, como escreve Luis Tapia, “em boa parte, a ideia de nação boliviana no país foi articulada por setores subalternos do modo de produção capitalista – a classe trabalhadora e núcleos intermediários”. Continua: “A nação boliviana é algo que se desenvolveu a partir de importantes núcleos subalternos no âmbito das relações modernas e capitalistas no país, que em princípio pensaram que era possível articular uma base mais real e substancial de soberania local em torno de processos de nacionalização sob modalidades ainda capitalistas”.1
O processo boliviano, desde o surgimento e o protagonismo dos movimentos sociais e indígenas, a partir de 2000, quebrou definitivamente o ciclo das lutas de resistência e iniciativas antiestatais abrindo um novo ciclo de disputa pela transformação do Estado, modificando a construção de suas demandas e a capacidade de seus repertórios de ação. De uma luta antiestatal, começou-se a pensar nas formas de governo e autodeterminação social através de um processo constituinte da sociedade e um novo projeto de país, isto é, a partir da explosão da subversão indígena.2
O paradoxo do processo boliviano é que as iniciativas de democratização da sociedade e a transformação do Estado surgem e se alimentam de matrizes políticas muito além do Estado-nação e que correspondem a formas de organização comunitárias e projetos civilizatórios alheios à mercantilização do vivente e da vida. Por isso, pode-se afirmar que é um caminhar olhando para trás, pensado a partir da memória larga das culturas e a trajetória percorrida de uma história de desastres e destruições, e que novamente está em crise, em uma crise global e, talvez, civilizatória. Portanto, esta é uma oportunidade de repensar e reconstruir a vida em sociedade.
A força dos movimentos
Não é possível perceber o potencial da força dos movimentos sociais e indígenas se não partimos da mudança de perspectiva da relação de crença e dominação, de comando e obediência, de autoridade e legitimidade. Ou, para colocar em outros termos, do poder plebeu para subverter a cadeia de comando, a afirmação indígena para deslocar a condição colonial, a produção do núcleo comum para emancipar as condições cidadãs e propor as bases pós-estatais do suma qamaña, que expressa o bem viver indígena.
Inquestionavelmente, a contundência da entrada na cena política sul-americana do protagonismo do movimento indígena modificou os marcos e esquemas do político, até mesmo do que se entende por política. Se não se percebe que está em jogo um profundo deslocamento das formas de conhecimento, dos modos de aprender, transmitir e interatuar, dificilmente se poderá entender a busca de vocabulários e a urgência de horizontes para avançar em uma construção harmônica, solidária, recíproca e digna da vida.
A alavanca da mudança de perspectiva e do deslocamento do conhecimento se articulou na mobilização social, na ação coletiva do mal-estar, do protesto e da exigência de solução perante os poderes estabelecidos, conseguindo evidenciar as debilidades e ausências do sistema estatal, em um primeiro momento. E, posteriormente, a partir da capacidade de revelar a profunda crise de Estado que trazia a visão nacionalista modernizadora – na qual a hegemonia neoliberal somente colocava remendos temporários e, além disso, propiciava lucros enormes – foi criada a oportunidade para a construção coletiva de um novo projeto estatal.
A demanda que uniu as lutas sociais e indígenas na Bolívia é uma moeda de duas caras, não se entende uma sem a outra: a nacionalização dos hidrocarbonetos e a convocatória à Assembleia Constituinte. Ambas respondem a diferentes necessidades a ser resolvidas, mas têm a mesma finalidade de um novo projeto estatal. Por um lado, uma mudança do modelo econômico do Estado, que modifica a forma de inserção no sistema econômico internacional. Por outro lado, uma nova Constituição que recoloca os princípios e estruturas do Estado e, consequentemente, a relação entre Estado e sociedade. Ambas exigem tarefas e condições diferentes, mas devem ser realizadas de modo, se não simultâneo, ao menos sincrônico e em concordância para acompanhar e fortalecer as condições de possibilidade da produção do comum a partir de um horizonte de bem viver.
A projeção dos movimentos
Para atender as demandas dos movimentos sociais e indígenas foi se impondo a necessidade de uma mudança de correlação das forças políticas e dos poderes estabelecidos. O que vai ocorrendo com a crescente dinâmica de rupturas e emergência de novos atores, situações e linguagens novas na vida social que permitiram uma acelerada mudança das formas e condições políticas até culminar, nas eleições presidenciais de dezembro de 2005, com o contundente triunfo
de Evo Morales.
A eleição do primeiro presidente indígena da Bolívia é parte substancial da mudança de correlação de forças no país e, consequentemente, na geopolítica regional do continente.
A urgência de cumprir com o mandato das exigências dos movimentos sociais e indígenas – e encaminhar uma agenda do processo de transformações estruturais do país – será proporcional ao endurecimento da oposição e à resistência dos grupos e setores tradicionalmente dominantes. Os chamados à desobediência ao novo governo, as campanhas midiáticas de desinformação e incerteza, as contínuas ações de violência e agressão física, a nudez do comportamento e da linguagem racista, novamente levaram a um intenso momento de antagonismo social, ao imediatismo da luta de classes.
Mas, desta vez, os lugares se inverteram. Os poderes e aparatos estatais se enfrentam com uma oposição que luta para conservar os privilégios de casta e classe que antes se realizavam com a utilização do Estado. Ao encaminhar as condições de sua transformação, o Estado enfrenta as resistências, o temor e o perigo que essas medidas representam para as elites.
O autodenominado governo dos movimentos sociais e indígenas terá de transitar por um caminho espiral e labiríntico de escaramuças e campanhas contra a oposição para cumprir seu mandato. Por isso, uma avaliação de mais de três anos de gestão deve partir do conflitivo antagonismo social e da realização das tarefas principais: nacionalização e nova Constituição. Ambas realizadas, mas em espera de seu cumprimento e aplicação, o que implica colocar condições, cenários, e criar instituições inéditas para a cultura política e administrativa do país. Sem descuidar nem subestimar as possíveis estratégias da oposição para desbaratar ou, ao menos, entorpecer o processo de mudança.
Mas antes é conveniente tentar pensar o que pode ser um governo dos movimentos sociais e indígenas. Para alguns pode ser um contrassenso, porque os movimentos não são governo e tampouco o governo pode operar com eles. Para outros, é a evidência da usurpação e/ou instrumentalização da liderança dos movimentos. As duas posturas assumem plenamente uma visão meramente antiestatal, o ogro filantrópico ou o temido Leviatã, que nos previne e ensina sobre os sistemas de dominação, mas que pode ser cego às formas de transformação e emancipação que a própria condição da luta proporciona.
Sabemos que o poder e a resistência são estratégias e lógicas divergentes. Não se trata de inverter as posições nem de criar novas, mas de mudar o poder, praticar outro modo de pensar, ser e fazer, transformar as condições de produção da vida e do vivente.
O governo é, em nossos regimes presidencialistas, a cabeça mais visível e, talvez, também, o maior comando de decisão no âmbito do Estado. Por isso mesmo, a conquista eleitoral desses espaços foi decisiva para comprometer e aprofundar as estratégias de transformação estatal e estender os laços para uma unidade sul-americana.
O governo dos movimentos pode estar nomeando pessoas em condições de garantir sustentação e legitimidade ao que entende como autoridade e âmbito de decisão política. E assumindo como mandato do Estado tarefas que se construíram coletivamente através das lutas para viabilizar as condições de uma transição constitucional e um novo projeto societário. O papel e a responsabilidade do governo é fazer cumprir esse mandato e seu desempenho se medirá proporcionalmente à sua capacidade e eficácia em realizá-lo.
Alternativas dos movimentos
A lição dos povos e nações indígenas é não tentar realizar as tarefas nacionais a partir de uma perspectiva capitalista como revolução nacional, mas sustentar um projeto pluralista para construir um núcleo comum que possibilite uma alternativa ao sistema capitalista.
A resposta não está em sair do capitalismo, não há lugar fora do sistema dominante, mas em encontrar resquícios e potenciais para transformá-lo globalmente. A interpelação é ao sistema em sua totalidade e, portanto, a luta se dá em seu interior e explora seu potencial subversivo incubado.
A Constituição Política do Estado da Bolívia,3 promulgada algumas poucas semanas atrás e considerada como uma vitória dos movimentos, inicia o processo pós-constituinte e dá origem a um Estado plurinacional que, por si, exige perspectivas de longo alcance e prazo. Ela coloca de entrada, em seus artigos de disposição transitória, calendários e novas leis que abrem divergências e confrontos, não só com os setores opositores ao processo de mudança, mas também internamente, nas organizações sociais e indígenas que sustentam o atual governo.
Esse é um indício do caráter altamente conflitivo e de tensionamento que terá o processo em marcha; não é possível subestimá-lo e muito menos negá-lo, porque deve ser através de mecanismos de deliberação e consenso social que terão sustentação e legitimidade as decisões e ações governamentais. Ainda mais, nestes tempos de imaginação social, para criar as instituições e leis de acordo com a realidade.
Da mesma maneira, é preciso observar que o processo de elaboração da nova Constituição e os pactos políticos que tiveram de ser produzidos para viabilizar a consulta aos cidadãos e, em caso de aceitação, sua promulgação, foi um caminho difícil e labiríntico entre instâncias e poderes.
Não é casual que os alinhamentos mais sólidos para a transformação estatal tenham surgido a partir da articulação histórica do movimento indígena boliviano, o Pacto da Unidade4, que funcionou como o núcleo do debate na Assembleia Constituinte. Para viabilizar a consulta do novo texto, este precisou ser submetido a revisão, modificações e aprovação do Parlamento vigente. É claro que se defendeu o caráter dos princípios e a estrutura do Estado plurinacional, mas ocorreram mudanças e adições que deixaram vulnerável a capacidade transformadora do Estado.
Esses dramáticos caminhos nos mostram os potenciais e os limites do processo social boliviano e a importância da vigilância e participação das organizações em cada passo. Porque uma vez promulgada a nova Constituição – cenário e marco necessário para a transformação –, em sua aplicação se abre um amplo leque de interpretações e interesses, se desenha o novo terreno de confronto e disputa. Sem participação e deliberação social, dificilmente o processo poderá continuar e sustentar-se.
Os sinais dados pelo governo ao apresentar uma lei transitória de Regime Eleitoral sem um prévio consenso das organizações, justificando-se pela urgência e a legitimidade da lei, demonstra a fragilidade e precariedade de uma estratégia política pós-constituinte. Essa situação se repetiu na discutida e insuficiente conformação de um Conselho Nacional de Autonomias – que deveria ser Plurinacional – para tratar da Lei Marco de Autonomias.
A situação se complica ainda mais com a atual crise que sofre o partido do governo, MAS-IPSP, à raiz do escândalo de acusação de corrupção de um de seus principais fundadores e dirigentes, em seu desempenho como presidente da empresa estatal de hidrocarbunetos, a YPFB. O golpe que essa denúncia significou para o governo, para o partido, e para a empresa estatal estratégica do país, não pode passar despercebido, muito menos quando a oposição já explora o caso midiaticamente. Mas o silêncio, o desconcerto e o desalento que ocasiona deve abrir caminho a uma oportunidade – talvez única – de profunda reconsideração e recolocação das estratégias políticas, tanto do governo e do partido, quanto das organizações, nesta nova fase do processo com uma nova Constituição.
Caminhar olhando para trás é não dar as costas ao caminho e à memória acumulada, mesmo quando não nos identificamos e muito menos queiramos repeti-lo; é assumir com todas as suas consequências a força do movimento e a urgência de construir o comum.
O potencial pluralista e coletivo do projeto de Estado plurinacional é a bússola para reconstruir a vida em sociedade e para cuidar da harmonia com a vida.
*Oscar Vega Camacho é membro do Grupo Comuna. Foi colaborador da Representação Presidencial para a Assembleia Constituinte da Bolívia (REPAC). Publicou diversos ensaios políticos e tem uma coluna no jornal estatal Cambio.