As catástrofes climáticas e a invenção de um novo mundo
O impacto climático na saúde das populações não ocorre de maneira igualitária, e regiões pobres têm sido mais afetadas. Aqueles que menos contribuem para a crise climática são os que sofrem as maiores consequências
Ursula K. Le Guin foi uma brilhante escritora estadunidense reconhecida por suas obras literárias de ficção científica, cujos temas envolvem dilemas morais e problemas que atingem as sociedades contemporâneas. No premiado livro Floresta é o nome do mundo, a autora cria uma trama que se desenrola em Athshe, um planeta formado por densa floresta tropical e habitado por humanoides que possuem relação profunda com o meio ambiente. Tudo vai bem até a chegada dos terranos, que escravizam os nativos e destroem o bioma para extrair madeira e enviá-la para uma Terra devastada. Diante da brutalidade da colonização, só resta aos athshesianos uma opção: fazer a revolução. Embora escrita em 1972, a obra segue atual e revela o extermínio de populações nativas, devastações e impactos ambientais, que se desdobram em uma crise climática sem precedentes.
No mundo real, a catástrofe climática é uma fatalidade anunciada. Relatórios internacionais destacam, há décadas, que a concentração de gás carbônico – o mais importante gás do efeito estufa na atmosfera – aumentou consideravelmente desde a Revolução Industrial. As razões são a queima de combustíveis fósseis e as mudanças no uso do solo, com o avanço da agricultura e do desmatamento. Entre 1970 e 2004, houve aumento de 80% das emissões de gases de efeito estufa, especialmente do gás carbônico. Ainda, as previsões são alarmantes, e apontam para o aumento da temperatura média global entre 1,8º C e 4º C até 2100, o derretimento de geleiras e calotas polares, elevação do nível dos oceanos, tempestades tropicais e furacões.[1]
Atualmente, secas, enchentes, ondas de calor e de frio, furacões e tempestades têm afetado diferentes partes do planeta, produzindo perdas econômicas e mortes em grandes proporções.[2] Calor excessivo na Europa, furacões Katrina, Wilma e Rita no Atlântico Norte, inverno extremo na Europa e na Ásia, secas e queimadas na Amazônia e chuvas intensas no sul do Brasil são exemplos de catástrofes anteriormente previstas por cientistas e ambientalistas. Há, ainda, alterações na biodiversidade, aumento no nível do mar e impactos na agricultura, na geração de energia hidrelétrica e na saúde.[3]
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, as mudanças climáticas causam cerca de 150 mil mortes por ano. Entre 2030 e 2050, a previsão é que seja de 250 mil mortes anuais, em razão da desnutrição, malária, diarreia e estresse térmico. Ainda, as mudanças climáticas estão influenciando cada vez mais a mobilidade humana, à medida que mais lugares se tornam inabitáveis. Estima-se que, até 2050, 2,5 bilhões de pessoas migrem para periferias superlotadas dos centros urbanos, com 90% desse aumento ocorrendo na Ásia e na África.
O impacto climático na saúde das populações não ocorre de maneira igualitária, e regiões pobres têm sido mais afetadas. Médicos Sem Fronteiras (MSF) atua em localidades vulneráveis ao clima e, em muitos países, as equipes médico-humanitárias já estão respondendo a situações relacionadas às mudanças no meio ambiente, especialmente no enfrentamento à expansão de doenças infecciosas, como malária, dengue e cólera, resultado de mudanças nos padrões de chuva e de temperatura; o aumento das doenças zoonóticas, em razão de eventos climáticos extremos mais frequentes, como ciclones e furacões; e a desnutrição proveniente da quebra de safras causada por secas e enchentes.
Chade, no continente africano, é o quarto país mais vulnerável às mudanças climáticas, e as dificuldades de acesso à água e alimentos estão sendo ampliadas com a degradação ambiental. Com estações chuvosas reduzidas, há menos comida, tornando a desnutrição um problema crônico. Crianças menores de 5 anos e mulheres grávidas e lactantes são particularmente afetadas.
Madagascar, no sudeste da África, esteve prestes a enfrentar a primeira crise alimentar comprovadamente causada pelas mudanças climáticas, de acordo com a ONU. Três anos consecutivos de seca afetaram as colheitas e o acesso aos alimentos em regiões ao sul do país, o que também exacerbou a “estação de escassez” (período entre plantio e colheita) anual, resultando em uma crise alimentar e nutricional. Em resposta, MSF lançou um programa médico-nutricional a fim de examinar e tratar comunidades com desnutrição aguda.
Na Somália, as condições climáticas extremas levaram a uma das crises humanitárias mais prolongadas do mundo. Enchentes, secas e enxames de gafanhotos diminuíram os meios de subsistência da população e comprometeram a segurança alimentar, atingindo principalmente crianças. Em resposta, MSF lançou um programa de combate à fome no sul da Somália para prevenir e tratar a desnutrição aguda durante a estação de escassez. Nas regiões de Gedo e Baixo Juba, foram iniciadas respostas de emergência para tratar crianças com desnutrição grave e abordar a escassez crítica de água.
A população em Bentiu, ao norte do Sudão do Sul, enfrenta surtos de doenças infecciosas e transmitidas pela água, além do aumento da insegurança alimentar e desnutrição em razão de enchentes nas últimas décadas. Mais de 800 mil pessoas foram afetadas pelas inundações, e 32 mil pessoas fugiram das cheias nos vilarejos e condados de Guit e Nhyaldu e agora vivem em acampamentos improvisados na cidade de Bentiu. Nessa localidade, MSF administra um hospital com 116 leitos, com departamento de internação e pronto-socorro para crianças e adultos.
Na América Central, no final de 2020, os furacões Eta e Iota danificaram ou destruíram mais de 120 centros de saúde em Honduras. Dois milhões de pessoas ficaram com o acesso a cuidados limitado ou nulo. Enquanto hospitais lutavam para acomodar pacientes da Covid-19, um surto de dengue — o pior em cinquenta anos — provocado por mosquitos resistentes atingia a população. Durante a epidemia de dengue, MSF tratou mais de 5 mil pacientes, principalmente crianças que viviam em áreas urbanas empobrecidas.
O impacto da crise climática na saúde de pessoas que vivem em países pobres evidencia as desigualdades que assolam o mundo, visto que aqueles que menos contribuem para a crise climática são os que sofrem as maiores consequências. Portanto, é necessário apelar às autoridades competentes para que garantam apoio às pessoas em necessidade.
O presidente internacional de MSF, Christos Christou, discursou na 28ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas, a COP 28, em Dubai, nos Emirados Árabes. “Aqueles que imaginam como é a mudança climática deveriam vir à Moçambique. Nós estamos suportando o peso das ações dos países mais poluentes do mundo. Agora temos malária durante o ano todo e estamos presos ciclone após ciclone.” Segundo Christou, essas são palavras de Adamo, seu colega, e o que ele descreve é uma realidade comum em outros lugares.
Do Níger a Moçambique, de Honduras a Bangladesh, MSF trata pacientes com doenças infecciosas, desnutrição e problemas de saúde relacionados a eventos climáticos extremos. Pouco está sendo feito para proteger pessoas vulneráveis contra os impactos negativos da mudança climática, e muitas comunidades enfrentam múltiplas crises que estão aumentando em escala e em intensidade.
Christou afirmou que no último Global Stocktake (balanço global de ações climáticas), ficou claro que as ações realizadas até o momento não estão conseguindo atender às necessidades atuais, muito menos ao crescente desafio que está por vir. Lideranças políticas globais não cumpriram os compromissos e nem as promessas de apoiar os países mais afetados. Essas comunidades precisam de um compromisso real para adotar ações urgentes, essenciais e necessárias para reduzir drasticamente as emissões de gases, precisam de apoio financeiro e técnico concreto para se adaptar e lidar com as consequências.
Para frear as catástrofes que nos assolam, a ficção científica de Ursula Guin é clara: é preciso fazer uma revolução. E a revolução passa, obrigatoriamente, pela invenção de um novo mundo, pautado pela ética de proteção ao meio ambiente e ao planeta Terra. Do contrário, o saldo será um desastre ainda maior.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
*Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.
[1] Blank, D. M. P. O contexto das mudanças climáticas e as suas vítimas. Marcator 14 (2), 2015.
[2] IPCC 2001: Climate Change 2001: Impacts, Adaptation and Vulnerability – Contribution of Working Group 2 to the IPCC Third Assessment Report. Cambridge Univ. Press. 2001.
[3] MARENGO, José A. Mudanças climáticas globais e seus efeitos sobre a biodiversidade: caracterização do clima atual e definição das alterações climáticas para o território brasileiro ao longo do século XXI. 2.ed. Brasília: MMA, 2007.