Um Estado de bem-estar social para a quarta revolução industrial
Há diversos canais por meio dos quais os Estados de bem-estar social podem contribuir para o avanço da quarta revolução industrial
Os “Estados de bem-estar social” são aqueles que assumem um papel mais contundente no atendimento das necessidades fundamentais das pessoas relativamente ao mercado e à família e demais formas tradicionais de provisão, como amigos, vizinhos, associações profissionais, instituições filantrópicas etc.
Os Estados podem fazer isso por meio, entre outros, da criação de mais benefícios e serviços sociais, da flexibilização das regras de acesso aos benefícios e serviços sociais, do aumento do valor dos benefícios sociais, do incremento da qualidade dos serviços sociais e do fortalecimento das garantias trabalhistas.
É bastante conhecida a tese de que os Estados de bem-estar social são um desperdício de recursos, que incentivam a indolência e a imprevidência e comprometem o progresso material. Nada poderia estar mais distante da verdade. Ao assumir um papel mais contundente no atendimento das necessidades fundamentais das pessoas, o Estado contribui para que elas sejam capazes de fazer e de ser aquilo que são capazes e desejam. E essa libertação das potencialidades humanas é o combustível desse progresso material.
Nesse contexto, não é surpreendente que os Estados de bem-estar social possam contribuir para o avanço da quarta revolução industrial – também conhecida como Indústria 4.0.
A quarta revolução industrial é um processo de rápida e profunda transformação no modo como as coisas são feitas no capitalismo contemporâneo.
Esse processo se baseia na articulação de tecnologias complexas de diferentes áreas, como é o caso da internet das coisas, sistemas ciberfísicos, inteligência artificial, aprendizagem automática, realidade aumentada, macrodados, realidade virtual, impressão 3D, colheita de energia, computação em nuvem, cadeia de blocos, computação de fronteira, biotecnologia, nanotecnologia, rede 5G, química avançada, simulação digital, edição genética, computação quântica, robótica, biocombustíveis etc.
Essas tecnologias complexas viabilizam a criação de novos produtos e processos na agricultura, pecuária, pesca, silvicultura, mineração, manufatura, construção civil e serviços.
![Helsinque, a capital da Finlândia, um dos Estados de bem-estar social mais desenvolvidos do mundo (Tapio Haaja/Unsplash)](https://diplomatique.org.br/wp-content/uploads/2023/09/tapio-haaja-I9SWvZ9sO2U-unsplash-1024x768.jpg)
E esses novos produtos e processos implicam oportunidades, como expandir o crédito, estimular o consumo, incentivar o investimento, fomentar as exportações, diminuir as importações, impulsionar o emprego, potencializar a produtividade, aumentar a renda, reduzir os custos unitários, aumentar a qualidade, favorecer a customização, facilitar a vida diária, reduzir a vulnerabilidade externa, proteger o meio-ambiente etc.
Dominar essas tecnologias complexas e criar esses novos produtos e processos não são tarefas fáceis. Isso porque elas são permeadas por incerteza e envolvem uma boa dose de especulação. Além disso, pressupõem recursos humanos qualificados, recursos financeiros abundantes e recursos materiais específicos.
Assim sendo, há diversos canais por meio dos quais os Estados de bem-estar social podem contribuir para o avanço da quarta revolução industrial.
Primeiro, os Estados de bem-estar social podem contribuir para que mais pessoas tenham as qualificações necessárias para dominar tecnologias complexas e criar novos produtos e processos.
Eles podem fazer isso por meio dos serviços de educação. Esses serviços trabalham conhecimentos nas áreas de matemática, linguagem, ciências naturais, estudos sociais, educação artística e educação física, e desenvolvem capacidades nas áreas cognitiva, social, emocional, motora e sensorial. É verdade que nem todos conhecimentos e capacidades são codificáveis e podem ser transmitidos pelos serviços de educação, na relação entre professores e alunos em creches, pré-escolas, escolas, faculdades e universidades. Muitos são tácitos e são adquiridos na prática, por meio da experiência de situações concretas. Porém, é evidente que esses serviços podem fornecer as ferramentas elementares para compreender a realidade e agir sobre ela.
Segundo, os Estados de bem-estar social podem demandar tecnologias complexas e novos produtos e processos.
Isso pode ser feito por meio dos serviços de saúde. A prestação de serviços de prevenção da doença e recuperação da saúde por médicos, dentistas, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e psicólogos em clínicas, postos, hospitais e laboratórios envolve a compra permanente de equipamentos, materiais e insumos de ponta. Esse complexo industrial da saúde é um espaço particularmente profícuo para o surgimento, desenvolvimento e aplicação de novas ideias e a certeza da demanda do Estado certamente é um grande incentivo para o avanço desses processos.
Terceiro, os Estados de bem-estar social podem fornecer a segurança que as pessoas precisam para se arriscar no domínio de tecnologias complexas e na criação de novos produtos e processos.
Eles podem fazer isso por meio dos benefícios da assistência social. A garantia de uma renda de última instância fornece às pessoas a certeza de que não permanecerão desamparadas e que terão ajuda para recomeçar se algo não sair como esperado, dando a elas a confiança necessária para se aventurar em atividades cujos resultados são incertos, como se dedicar ao estudo, mudar de emprego e começar um novo negócio.
Quarto, os Estados de bem-estar social podem contribuir para que as pessoas tenham um estado físico e mental favorável ao domínio de novas tecnologias e à criação de novos produtos e processos.
Isso pode ser feito por meio das garantias trabalhistas. A garantia de estabilidade, remuneração justa, jornada diária limitada, descanso semanal e férias anuais contribuem para que as pessoas possam se dedicar a atividades individuais e coletivas prazerosas, despretensiosas, despreocupadas, divertidas e relaxantes. Essas atividades melhoram a saúde, favorecem o aprendizado, estimulam a criatividade e aumentam o desempenho no trabalho.
Quinto, os Estados de bem-estar social podem contribuir para gerar as condições econômicas favoráveis ao domínio de tecnologias complexas e à criação de novos produtos e processos.
Ele pode fazer isso por meio dos serviços de habitação. A reforma de residências antigas e a construção de residências novas contribui para a sustentação da demanda e, consequentemente, dos lucros dos empresários. A sustentação dos lucros dos empresários assegura a eles um incentivo para investir em novas ideias.
Sexto, os Estados de bem-estar social podem contribuir para que as pessoas possam se dedicar ao domínio de tecnologias complexas e à criação de novos produtos e processos.
Ele pode fazer isso por meio dos serviços de cuidado de longa-duração. A garantia de que os idosos – e outras pessoas com necessidades especiais – que não são capazes de realizar atividades diárias por si só terão assistência de profissionais nesse processo na própria residência ou em estabelecimentos específicos para isso permite que os cuidadores informais possam trabalhar. Isso é particularmente relevante para as mulheres, que tradicionalmente são consideradas as responsáveis pelo cuidado dessas pessoas.
Sétimo, os Estados de bem-estar social podem fornecer recursos necessários para que as pessoas possam dominar tecnologias complexas e criar novos produtos e processos.
Isso pode ser feito por meio dos serviços de apoio à colocação, recolocação e permanência no mercado de trabalho. A garantia de aconselhamento e orientação técnica acompanhada de subsídios tributários, financeiros e creditícios pode ajudar as pessoas que possuem boas ideias e desejam estudar, mudar de emprego ou começar um novo negócio, mas que não têm condições de fazer isso sozinhos.
E, oitavo, os Estados de bem-estar social podem contribuir para gerar as condições sociais e políticas favoráveis ao domínio de tecnologias complexas e à criação de novos produtos e processos.
Ele pode fazer isso por meio dos benefícios da previdência social. Pensões por idade, invalidez, desemprego, maternidade, paternidade, parentalidade, enfermidades ou acidentes asseguram uma renda para as pessoas diante da impossibilidade total ou parcial e temporária ou permanente de continuar trabalhando. Essa renda contribui para fomentar a coesão social e aumentar estabilidade política, criando um cenário favorável para o surgimento, desenvolvimento e aplicação de novas ideias.
É verdade que o desenvolvimento dos Estados de bem-estar social implica um aumento dos gastos públicos. Contudo, o efeito positivo desses gastos sobre a economia contribui para a elevação das receitas públicas, com efeitos favoráveis sobre o déficit público e a dívida pública.
A experiência dos países nórdicos é emblemática.
Ao mesmo tempo em que construíram os Estados de bem-estar social mais desenvolvidos do mundo, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia avançaram no domínio de tecnologias complexas e na criação de novos produtos e processos a ponto de se consolidaram entre os principais expoentes da quarta revolução industrial no planeta. Esses países são a sede de grandes empresas em setores de ponta, como Nokia, Ericsson, Novo Nordisk, Marel e Visma. E também são um celeiro de start-ups de alta tecnologia, como Spotify, Skype, King, Klarna e Rovio. Não por outra razão a região tem sido considerada o “Vale do Silício europeu”.
Um conjunto de indicadores mostra a situação dos países nórdicos com mais clareza.
A existência de Estados de bem-estar social desenvolvidos na forma de mais benefícios e serviços sociais, as regras de acesso flexíveis aos benefícios e serviços sociais, o valor elevado dos benefícios sociais e a alta qualidade dos serviços sociais contribuem para que os países nórdicos tenham um gasto social público elevado. Segundo a OCDE, em 2019, o gasto social público per capita foi de US$ 16.885, na Noruega, US$ 16.634, na Dinamarca, US$ 14.804, na Finlândia, US$ 13.689, na Suécia, e US$ 10.880, na Islândia. No mesmo ano, esse gasto foi de, em média, US$ 11.022, nos países da União Europeia.
Os Estados de bem-estar social desenvolvidos contribuem para que os países nórdicos tenham um ambiente favorável a novas ideias, o que se reflete em um gasto com pesquisa e desenvolvimento elevado. De acordo com a OCDE, em 2019, o gasto per capita com pesquisa e desenvolvimento foi de US$ 1.912 na Suécia, US$ 1.755 na Dinamarca, US$ 1.496 na Noruega, US$ 1.451 na Finlândia, e US$ 1.383 na Islândia. Esse gasto foi de, em média, US$ 857, nos países do bloco europeu no mesmo ano.
Uma parte importante desse gasto com pesquisa e desenvolvimento é realizado por empresas. Segundo a OCDE, em 2019, a parte do gasto com pesquisa e desenvolvimento que foi realizada por empresas foi de 71,7%, na Suécia, 69,0%, na Islândia, 65,7%, na Finlândia, 62,8%, na Dinamarca, e 52,8%, na Noruega. No mesmo ano, essa parte foi de 60,4% nos países da União Europeia.
De fato, as empresas dos países nórdicos estão entre as que mais gastam com pesquisa e desenvolvimento do mundo. De acordo com o Painel sobre Investimento em Pesquisa e Desenvolvimento Industrial elaborado pela União Europeia, em 2019, das 2.500 empresas que mais gastam em pesquisa e desenvolvimento no mundo, 26 eram suecas, 25 eram dinamarquesas, 12 eram finlandesas, 9 eram norueguesas e 1 era islandesa.
Esses gastos com pesquisa e desenvolvimento das empresas têm como desdobramento as atividades de inovação. Segundo a Eurostat, entre 2018 e 2020, a parte das empresas instaladas que realizaram atividades de inovação foi de 69,6% na Noruega, 68,6% na Finlândia, 65,2% na Suécia, e 57,7% na Dinamarca. No mesmo período, essa parte foi de, em média, 52,7% nos países da União Europeia.
Essas atividades inovadoras podem ter como resultado novos produtos. De acordo a Eurostat, de 2018 a 2020, a parte das empresas inovadoras instaladas que introduziram, pelo menos, uma inovação de produto foi de 45,0% na Noruega, 39,2% na Finlândia, 38,9% na Suécia, e 32,2% na Dinamarca. Essa parte foi de, em média, 28,4% nos países do bloco europeu no mesmo período.
Essas atividades inovadoras também podem ter como resultado novos processos. Segundo a Eurostat, entre 2018 e 2020, a parte das empresas inovadoras instaladas que introduziram, pelo menos, uma inovação de processo foi de 55,1% na Finlândia, 52,0% na Suécia e na Noruega e 46,1% na Dinamarca. No mesmo período, essa parte foi de, em média, 43,5% nos países da União Europeia.
Esses novos produtos e processos normalmente são protegidos por patentes e se tornam um diferencial das empresas em relação às suas concorrentes. De acordo com a Eurostat, em 2019, o número de pedidos de patentes ao Escritório de Patentes Europeu por milhões de pessoas foi de 428 na Suécia, 415 na Dinamarca, 309 na Finlândia, 139 na Islândia, e 121 na Noruega. Esse número foi de, em média, 149 nos países do bloco europeu no mesmo ano.
Essas inovações contribuem para o fortalecimento dos setores de alta tecnologia nos países nórdicos. Segundo a Eurostat, em 2013, a parte do produto que foi gerado pelos setores de alta tecnologia foi de 6,2% na Dinamarca, 5,8% na Suécia, 4,9% na Finlândia, e 3,1% na Noruega. No mesmo ano, essa parte foi de, em média, 4,7% nos países da União Europeia.
Da mesma forma, de acordo com a Eurostat, em 2013, a parte das pessoas empregadas que trabalham nos setores de alta tecnologia foi de 5,9% na Finlândia, 5,5% na Dinamarca, 4,9% na Suécia e Islândia, e 3,8% na Noruega. Essa parte foi de 3,8% nos países do bloco europeu no mesmo ano.
Esse produto e emprego é gerado pelas empresas que atuam nesses setores de alta tecnologia. Segundo a Eurostat, em 2013, a parte das empresas que pertenciam aos setores de alta tecnologia era de 7,4% na Suécia, 6,4% na Dinamarca, 3,8% na Finlândia, e 4,6% na Noruega. No mesmo ano, essa parte foi de 4,6% nos países da União Europeia.
E muitas dessas empresas são start-ups. De acordo com a Plataforma Start-Ups Europeias, em 2022, o número de start-ups para cada um milhão de pessoas foi de 1.116 na Islândia, 814 na Dinamarca, 771 Finlândia, 715 na Suécia, e 665 na Noruega. Esse número era de, em média, 278 nos países do bloco europeu no mesmo ano.
Mais importante ainda, de acordo com a Plataforma Start-Ups Europeias, em 2022, o número de “unicórnios”, ou seja, de start-ups que ultrapassaram o valor de US$ 1 bilhão, por 1 milhão de pessoas foi de 5,3 na Islândia, 3,5 na Suécia, 2,2 na Noruega, 1,4 na Dinamarca, e 1,3 na Finlândia. No mesmo ano, esse número foi de, em média, 0,6 nos países da União Europeia.
Grande parte dessas empresas estão localizadas em torno das capitais Copenhague, Helsinque, Reiquiavique, Oslo e Estocolmo, mas também de outras cidades importantes, como Aarhus, Espoo, Bergen, Gotemburgo, Lund e Malmo.
Não é surpreendente, portanto, que os países nórdicos apareçam frequentemente no topo dos principais rankings internacionais de inovação e de competitividade.
Por exemplo, no ranking de inovação elaborado pela União Europeia em 2023, a Dinamarca surge na 2ª colocação, a Suécia na 3ª colocação, a Finlândia na 4ª colocação, a Noruega na 8ª colocação e a Islândia na 15ª colocação em um total de 38 países da Europa.
No ranking de competitividade elaborado pelo International Institute for Management Development (IMD) em 2023, a Dinamarca ocupa a 1ª posição, a Suécia a 8ª posição, a Finlândia a 11ª posição, a Noruega a 14ª posição e a Islândia a 16ª posição entre 64 países de todo mundo.
No ranking de inovação elaborado pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual em 2023, a Suécia aparece na 3ª colocação, a Finlândia na 9ª colocação, a Dinamarca na 10ª colocação, a Islândia na 20ª colocação e a Noruega na 22ª colocação em um total de 132 países de todo mundo.
No ranking de inovação elaborado pela Bloomberg em 2021, a Suécia ocupa a 5ª posição, a Dinamarca a 6ª posição, a Finlândia a 8ª posição, a Noruega a 15ª posição e a Islândia em 23ª posição entre 50 países de todo mundo.
E no ranking de competitividade elaborado pelo Fórum Econômico Mundial em 2019, a Suécia surge na 8ª colocação, a Dinamarca na 10º colocação, a Finlândia na 11º colocação, a Noruega na 17º colocação e a Islândia na 26º colocação em um total de 141 países de todo mundo.
A experiência dos países nórdicos mostra que os Estados de bem-estar social têm muitos papeis no capitalismo contemporâneo, inclusive o de contribuir para o avanço da Quarta Revolução Industrial.
De fato, longe de ser um problema, um peso que prende os países no passado, os Estados de bem-estar social podem ser parte da solução, um motor que impulsiona os países para o futuro.
Paulo José Whitaker Wolf é pós-doutorando em Economia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).