Vamos celebrar a desigualdade social
Ver o presidente Lula vestido com o uniforme da JBS em uma cidade que viu 82% de aumento nas solicitações do Bolsa Família é um espetáculo trágico
Um péssimo momento para o governo celebrar a habilitação de 38 frigoríficos para importação chinesa. Se na última década o monopólio industrial da carne brasileira triplicou sua receita e se consolidou como líder do mercado global, a fome no país aumentou significativamente. A quantidade de cadastros do programa Bolsa Família é um bom indicador para quantificar lares com renda insuficiente para a alimentação básica.
Entre 2013 e 2023, o Brasil viu a pobreza crescer e voltou para o mapa da fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Houve um aumento de 50% no número nacional de famílias cadastradas para assistência social. A situação em cidades que historicamente contam com grandes indústrias frigoríficas é ainda mais alarmante. Uma delas é Campo Grande (MS), onde o presidente Lula esteve para celebrar a ampliação do mercado internacional da carne brasileira. Por lá, o aumento de cadastros do Bolsa Família foi de 82%.
Outras cidades tradicionais da carne também tiveram aumento expressivo na quantidade de pessoas com renda mensal de até R$ 218 (valor máximo per capta para que uma família possa se beneficiar da assistência social). Goiânia (GO), por exemplo, cresceu 162% no número de cadastros; Andradina e Lins (SP), 87% e 51%, respectivamente; Barra do Garças (MT), 74%; Marabá (PA), 49%. No geral, de uma amostra de doze cidades analisadas no relatório “Alimentando a desigualdade”, onze apresentaram piora nos indicadores sociais.
Atualmente o BNDES tem 20% das ações da maior empresa de alimentos do mundo em termos de receita, a JBS. O Estado nacional é o segundo maior acionista da corporação. Existe um paradoxo claro, para não dizer uma ironia, entre o fenômeno da carne brasileira em nível global e a fome crescente no país. É uma conta incoerente considerando os fluxos de alimentos e dinheiro para fora do Brasil, como se o país ainda fosse colônia de um império privado que beneficia uma elite restrita. Se os brasileiros passam fome, os administradores da gigante de alimentos tiveram 2000% de aumento nas remunerações na última década. Além disso, 70% dos lucros da companhia vão para reservas de aquisições futuras e, dos dividendos distribuídos, 11% vão para acionistas estrangeiros.
A conclusão que esses números revelam é que o sistema alimentar industrial de larga escala tem falhado na sociedade. A celebração sobre frigoríficos exportando para a China é a festa de um país que vai continuar pobre e faminto. Ver o presidente Lula vestido com o uniforme da JBS em uma cidade que viu 82% de aumento nas solicitações do Bolsa Família é um espetáculo trágico. O que deve ser prioridade do governo são mudanças em direção a políticas que de fato promovam o desenvolvimento para todos os brasileiros. A celebração real virá no dia em que o país zerar a fome e superar de vez sua desigualdade social.
Raisa Pina é doutoranda em antropologia pela Universidade de Brasília, com período sanduíche na Universidade de Oxford.