Che Guevara contra o modelo soviético
A imagem romântica de Che é só uma de suas faces. Teórico do socialismo, o companheiro de Fidel Castro criticou precocemente o modelo soviético, cujos impasses internos e desamparos externos ressaltou. Ele sonhava com um socialismo mais solidário e igualitário
(Moscou 1961 – O Premier soviético Nikita Khushchev ao lado de Che Guevara)
Ernesto Che Guevara foi abandonando, dia após dia, suas ilusões iniciais sobre a ex-URSS e o marxismo de tipo soviético. Em carta escrita em 1965 ao amigo Armando Hart, então ministro cubano da Cultura, ele critica severamente o “continuísmo ideológico” que se manifestava em Cuba, pela edição de manuais soviéticos para o ensino do marxismo – um ponto de vista que converge com o defendido à época por Fernando Martínez Heredia, Aurelio Alonso e seus amigos do Departamento de Filosofia da Universidade de Havana, editores da revista Pensamiento Critico. Esses manuais – que ele chama de “paralelepípedos soviéticos” – “têm o inconveniente de não deixarem pensar: o Partido já fez isso por você, e você tem de engolir”.1De modo cada vez mais explícito, percebe-se nele a procura de outro modelo, de um método diferente de construção do socialismo, mais radical, mais igualitário, mais solidário.
A obra de Che não é um sistema fechado, uma doutrina ou discurso acabado com respostas para tudo: sobre várias questões – a democracia socialista, a luta contra a burocracia –, sua reflexão ficou incompleta e inacabada, porque foi interrompida pela morte, em 1967. Mas, a esse respeito, Martínez Heredia tem razão quando ressalta: “A incompletude do pensamento de Che […] chega a ter aspectos positivos. O grande pensador está ali, apontando problemas e caminhos […], exigindo de seus camaradas que reflitam, que estudem, que combinem prática e teoria. Quando se assume, efetivamente, seu pensamento, torna-se impossível transformá-lo em dogma, em um […] bastião especulativo […] de frases [feitas] e receitas [prontas]”.2
Num primeiro momento (1960-1962), ele colocou muitas esperanças nos “países irmãos” do “socialismo real”. Depois de ir algumas vezes à ex-URSS e outros países do Leste Europeu, e vivenciar os primeiros anos de transição para o socialismo em Cuba, ele se mostrou cada vez mais crítico. Suas divergências foram expressas publicamente em mais de uma ocasião, em especial no famoso “discurso de Argel”, em 1965. Mas já desde 1963-1964, por ocasião do grande debate econômico em Cuba, ele manifestava uma tentativa de abordagem original do socialismo.
Esse debate opôs então os partidários de uma espécie de “socialismo de mercado”, com empresas autônomas e rentáveis – como na ex-URSS –, e Che, que defendia um projeto de política econômica centralizado, baseado em critérios sociais, políticos e éticos: mais que gratificações por desempenho e preços determinados pelo mercado, ele propunha que certos bens e serviços passassem a ser gratuitos. Mas nas intervenções de Che uma questão continuava obscura: quem tomaria as decisões econômicas fundamentais? Em outras palavras, como ficava o problema da democracia nesse projeto de política econômica?
Independência e limites do pensamento de Che
Sobre esse assunto, como sobre vários outros, documentos inéditos de sua autoria, publicados recentemente em Cuba abrem novas perspectivas. Trata-se das “Notas críticas” ao Manual de economia política da Academia de Ciências da URSS (edição em espanhol, de 1963) – um dos “paralelepípedos” dos quais ele fala na carta a Hart –, escritas durante sua estada na Tanzânia e, em especial, em Praga, em 1965-1966: nem livro nem ensaio, mas uma coleção de trechos da obra soviética, seguidos de comentários muitas vezes ácidos e irônicos.3
Há muito, muito tempo, se esperava a publicação desse documento. Durante décadas ele permaneceu “fora de circulação”: foi permitido, no máximo, que alguns pesquisadores cubanos o consultassem e citassem algumas passagens.4Graças a Maria del Carmen Ariet Garcia, do Centro de Estudos Che Guevara de Havana, que o reviu e formatou, o texto está agora disponível aos leitores interessados. Essa edição ampliada contém ainda outros materiais inéditos: uma carta a Fidel, de abril de 1965, que serve de prólogo ao livro; notas sobre escritos de Marx e Lenin; uma seleção de conversas de Che com seus colaboradores do Ministério da Indústria (1963-1965) – parcialmente publicada na França e na Itália, nos anos 70 –; cartas a diversas personalidades (Paul Sweezy, Charles Bettelheim); trechos de uma entrevista ao jornal egípcio Al Taliah (abril de 1965).
A obra atesta, ao mesmo tempo, a independência do modo de pensar de Che Guevara, seu distanciamento crítico do “socialismo real” e sua procura de um caminho radical. E mostra ainda os limites de sua reflexão.
Comecemos por estes: naquele momento, Che – não sabemos se sua análise a esse respeito avançou em 1966-1967 – não entendia a questão do stalinismo. Ele atribuía os impasses da ex-URSS, nos anos 60, à Nova Política Econômica (NEP) lançada por Lenin em 1921! Para ele, se Lenin tivesse vivido por mais tempo – “Ele cometeu o erro de morrer”, observou com humor –, teria corrigido os efeitos mais retrógrados. No entanto, Che continuava convencido que a introdução de elementos capitalistas pela NEP tinha levado a desvios profundos, indo no sentido da restauração do capitalismo que se pôde observar na URSS de 1963.
Mas algumas críticas de Che à NEP têm seu interesse. Por vezes, elas coincidem com as da oposição de esquerda soviética, em 1925-1927; por exemplo, quando ele constata que “os dirigentes se aliaram ao sistema, formando uma casta privilegiada”. Mas a hipótese histórica que tornava a NEP responsável pelas tendências pró-capitalistas na URSS de Leonid Brejnev é, evidentemente, pouco plausível. Não que Che ignorasse o papel nefasto de Stalin… Em uma das “notas críticas” consta a seguinte frase, precisa e surpreendente: “O terrível crime histórico de Stalin [foi] ter desprezado a educação comunista e instituído o culto ilimitado da autoridade”. E apesar de ainda não se tratar de uma análise do fenômeno stalinista, já era uma crítica categórica.
No “discurso de Argel”, Che Guevara exige dos países que se diziam socialistas que abrissem mão de “sua cumplicidade tácita com países ocidentais exploradores”, prática que se traduzia em relações comerciais desiguais, com povos em luta contra o imperialismo.5Essa questão volta à baila, repetidamente, nas “notas críticas” sobre o manual soviético. Enquanto os autores dessa obra oficial vangloriam a “ajuda mútua” entre países socialistas, o ex-ministro cubano da Indústria foi obrigado a constatar que isso não correspondia à realidade: “Se o proletariado internacional estivesse à frente do governo de cada país socialista […] isso seria um sucesso. Mas o internacionalismo foi substituído pelo chauvinismo (tanto em países de grande como de pequeno porte), ou pela submissão à URSS […]. Isso fere todos os sonhos honestos dos comunistas em todo o mundo”.
Algumas páginas adiante, em um comentário irônico sobre a celebração, pelo manual, da divisão do trabalho entre países socialistas, fundamentada em uma “fraterna colaboração”, ele observa: “O ninho de cobras que é o Came6desmente essa afirmação na prática. O texto se refere a um ideal que poderia se cumprir somente por meio da verdadeira prática do internacionalismo proletário, mas este está infelizmente ausente hoje em dia”. No mesmo sentido, outra passagem verifica com amargura que nas relações entre países socialistas se constatam “fenômenos de expansionismo, relações comerciais desiguais, concorrência, relativa exploração e, seguramente, submissão dos Estados fracos aos fortes”.
Por fim, quando o manual fala da “construção do comunismo” na ex-URSS, o crítico faz a seguinte pergunta retórica: “Será possível construir o comunismo em um único país?”. Outra observação vai na mesma direção: Lenin, constata Che, “afirmou claramente o caráter universal da revolução, o que foi negado logo em seguida” – uma referência clara ao “socialismo de um único país”,7
A maioria das críticas de Che ao manual soviético corresponde de perto a seus escritos econômicos dos anos 1963-1964: defesa da planificação central, contra a lei do valor [do dinheiro] e as fábricas autônomas funcionando segundo as regras de mercado; e defesa da educação comunista, contra os incentivos monetários individuais. Outro ponto que também o interessa é a participação dos dirigentes das empresas nos lucros da indústria, o que para ele é um princípio de corrupção.
Ele defende sobretudo a planificação como eixo central do processo de construção do socialismo, por considerar que ela “libera o ser humano de sua condição de coisa econômica”. Mas reconhece – em sua “carta a Fidel” – que em Cuba “os trabalhadores não participam da elaboração do plano”. Quem deve então ser responsável por esse planejamento? O debate de 1963-1964 não conseguiu encontrar uma resposta para essa pergunta. É a esse respeito que encontramos os comentários mais interessantes, nas “notas críticas” de 1965-1966: certas passagens estabelecem claramente o princípio de uma democracia socialista, na qual as grandes decisões econômicas são tomadas pelo próprio povo. As massas, escreve Che, devem participar da formulação do plano, cuja execução é uma questão puramente técnica. Na opinião dele, na ex-URSS a concepção do planejamento e a “decisão econômica das massas conscientes de seu papel” foram substituídas por um placebo, cuja prioridade eram os instrumentos econômicos que tudo determinavam. As massas, insiste ele, “devem ter a possibilidade de dirigir seu destino, decidir quanto vai para o investimento ou para o consumo”; a técnica econômica deve operar com esses números – decididos pelo povo – e “a consciência das massas deve garantir que a decisão seja cumprida”.
Esse tema é recorrente: os operários, escreve, o povo em geral, “tomarão as decisões relativas aos grandes problemas do país (taxa de crescimento, investimento-consumo)”, mesmo que o plano seja obra de especialistas. Essa separação demasiado mecânica entre as decisões econômicas e sua execução pode ser discutível; mas, por meio dessas formulações, Che se aproxima significativamente da ideia de planificação socialista democrática. Ele não vai até o fim de todas as conclusões políticas – democratização do poder, pluralismo político, liberdade de organização –, mas a importância dessa nova visão da democracia econômica não é contestável.8
Essas notas podem ser consideradas uma etapa importante no caminho de Che rumo a uma alternativa comunista democrática ao modelo soviético. Um caminho brutalmente interrompido, em outubro de 1967, pelos assassinos bolivianos a soldo da CIA (Central Intelligence Agency).