Chega ao Brasil livro de Caroline Darian, filha de Gisèle Pelicot
Complexa e sensível, narrativa ilumina as entranhas dos abusos diversos a que uma mulher pode ser submetida na obscuridade da vida privada
Lançado na França em 2023, Et j’ai cessé de t’appeler papa ganhou versão em inglês e espanhol em janeiro deste ano. Agora, sob o título E deixei de te chamar papá, a editora Guerra e Paz traz ao Brasil a versão em português do livro escrito por Caroline Darian, que já está em pré-venda pelo site.
Aos 68 anos, Gisèle Pelicot descobriu que seu marido – com quem foi casada por aproximadamente cinco décadas – a entorpecia e oferecia seu corpo desacordado no site para adultos coco.fr – que foi tirado do ar pela justiça francesa. O Ministério Público francês, inclusive, acusou formalmente o fundador do site, Isaac Steidl, por “administração de uma plataforma que facilita transação ilegal”.
Presumivelmente, o livro de Caroline é angustiante, apesar de sua discrição com relação à intimidade da mãe. A perspectiva adotada é a dela, Caroline, e não é fácil acompanhá-la nas revelações, por etapas, do que estava acontecendo no seio da família. Seu registro não é para satisfazer curiosos sobre os detalhes sórdidos de uma história inconcebível. Ao contrário, o esforço presta um serviço, não só a todas as mulheres, mas também à sociedade de qualquer país e em qualquer tempo.

Submissão química
No Brasil, o vocabulário para descrever crimes contra as mulheres foi sendo paulatinamente ampliado ao longo dos últimos anos. Em 2006, a Lei Maria da Penha tipificou a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, no âmbito da convivência doméstica. Em 2012, a Lei Carolina Dieckmann lançou luz à invasão de privacidade online, descrevendo o crime de quem acessa, produz, oferece, distribui ou comercializa material íntimo sem autorização.
Já o “feminicídio” foi reconhecido em 2015, pela Lei 13.104. Faz, portanto, apenas dez anos que o sistema judiciário brasileiro começou a tratar o assassinato de mulheres como um evento atrelado às questões culturais de gênero, como controle, honra, menosprezo e discriminação, decorrentes ou não de violência doméstica.
O vocabulário segue dinâmico e internacional: gaslighting, mansplaining, manterrupting, bropriating, manspreading, hepeating, ghosting. Mas “submissão química” não está no radar do debate público nem da cobertura da imprensa. Pudera: não temos dados sobre essa queixa específica, que está no prólogo do livro de Caroline Darian. A França não tem registros. O Brasil também não. Algum país do mundo tem?
O caso Mari Ferrer é um exemplo da falta que faz o léxico apropriado. O famoso “boa noite cinderela” na bebida é submissão química, seja para fins de abuso sexual ou material. Se a Constituição brasileira previsse claramente o crime, talvez fosse mais difícil sustentar uma condenação por “estupro culposo” – o ato sexual não consensual com uma pessoa entorpecida por ter sido drogada pelo seu estuprador, que não tinha a intenção de estuprar (???).
Lacuna na saúde
Outra reflexão importante que o livro traz é a falta de preparo dos profissionais da saúde para reconhecer casos de abuso. Ao longo de uma década, Gisèle procurou médicos diversas vezes para tratar sintomas neurológicos, psiquiátricos, ginecológicos… e ninguém levantou a possibilidade de violação. Os médicos chegaram a perguntar se ela estava tomando algum medicamento, o que era negado. Mas um exame toxicológico simples poderia ter apontado o uso indiscriminado de substâncias que poderiam estar sendo administradas sem consentimento ou até por equívoco. Foram dez anos de indícios severos, como episódios de sono profundo por dias seguidos, confusão mental, lapsos de memória, queda de cabelo, perda de peso, doenças sexualmente transmissíveis… e nenhum profissional investigou.
Também problemático, mas não surpreendente, é o total desamparo das vítimas diante de uma revelação traumática. Gisèle e Caroline viram fotos, vídeos e montagens de si mesmas desacordadas, nuas ou quase nuas. No caso de Gisèle, há também registros dos estupros. Foram identificados mais de oitenta homens ao longo de dez anos de abusos. Veja, uma acusação dessa não é algo que se enfrente todos os dias. No entanto, elas foram confrontadas com as imagens de maneira fria, sem nenhum preparo antes, nenhum cuidado durante e nenhum suporte psicológico depois, que poderia ser oferecido prontamente pela delegacia ou pelo sistema judicial.
A inobservância à saúde mental de ambas levou Caroline a alguns episódios de pânico e surtos. Uma vez diagnosticada com esgotamento emocional, foi internada numa clínica e tratada com brutalidade. O único expediente oferecido foi, novamente, a submissão química. Mesmo explicando aos profissionais de saúde que seu trauma decorria justamente disso, de ter sido submetida por seu próprio pai, de saber que sua mãe estava sendo drogada e explorada ao longo de uma década, a clínica que a recebeu não fez outra coisa além de ministrar medicamentos para rebaixar a consciência de Caroline, aprofundando o estresse que só teria amparo na busca individual e na rede de apoio que a sorte lhe desse.
Pode ser qualquer um
Ao relembrar o relacionamento com o pai, Caroline encontra momentos de ternura, afeição e valioso suporte ao longo de sua infância e adolescência. Ainda assim, não se furta de classificá-lo como “monstro”. Contraditoriamente, trata-se de um marido constante, pai acolhedor, avô carinhoso e divertido. Entre os oitenta homens identificados por estuprar Gisèle, 51 foram condenados e receberam penas de prisão que variam de três a vinte anos. Eram militares, bombeiros, um DJ, um jornalista… alguns pais de família. Homens com idades entre 27 e 74 anos.
“Nem todo homem… mas sempre um homem.” E pode ser aquele cara engraçado da turma, o mais quietinho, trabalhador, pagador de impostos. O pai dedicado, o marido cuidadoso, o vizinho educado. O crime contra as mulheres não tem perfil, pode começar cedo na vida e permanecer insuspeito por muito, muito tempo. Os fatos reforçam o alerta das autoridades: a família não é o lugar mais seguro para meninas e mulheres. Ao contrário. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 320 crianças e adolescentes são exploradas sexualmente a cada 24 horas no Brasil. Dentre as vítimas, 75% são meninas e as agressões são cometidas por pessoas próximas ou de confiança.
Caroline até mesmo recupera algumas passagens de suas férias de verão na casa do avô paterno. Em ocasião da morte da avó, por exemplo, o avô operou a substituição imediata, casando-se com a filha adotiva do casal, evidenciando um relacionamento inapropriado, permeado por cenas de violências diversas e humilhações. Dominique Pelicot, portanto, cresceu em um ambiente autoritário e sufocante, com o exemplo de que submeter pela força seria signo de masculinidade, poder e liberdade. Ao formar sua própria família, não foi capaz de fazer a crítica. Em algum momento da fase adulta, deu vazão aos ideais transgressores e colocou as ações em marcha, encontrando facilidades nas novas tecnologias.
Sentimentos contraditórios
Também chama a atenção o fato de que cada pessoa reage de uma maneira. Gisèle, por exemplo, se nega a acreditar que a filha tenha sido vítima das abordagens do pai, a despeito das evidências. Segundo Caroline, a mãe nunca pareceu revoltada, nunca falou mal de Dominique para os filhos, buscou se refazer prontamente, enfrentou a publicidade de sua situação com dignidade e até mesmo demonstrou empatia pela circunstância de seu agressor no cárcere. Já Caroline se revoltou, passou por algumas síncopes, decidiu trocar o sobrenome de seu filho (então com 6 anos de idade) e se afastou completamente da figura paterna.
As reações divergentes revelam como a trama dos afetos pode ser complicada de entender e de abordar em casos de abuso, sobretudo se forem situações prolongadas. No entanto, é importante ter em mente que a compaixão não prova, de maneira nenhuma, que a violência não existiu ou que foi consentida. Em sua digressão, Caroline explora a condição impossível de filha da vítima e do agressor a um só tempo e termina por liquidar a contradição: fica ao lado da mãe, cessa seus julgamentos sobre ela e apaga seu pai dos registros de sua história tanto quanto possível.
Colaboração inusitada
Por fim, é fundamental destacar que sem a denúncia de mulheres desconhecidas, o avanço de Dominique teria, em breve, posto fim definitivo à vida de Gisèle. Assim, ele teria ainda mais tempo para seguir com seus excessos. Além de registros da própria filha, as investigações também revelaram fotos, vídeos e montagens de suas duas noras (as esposas dos dois filhos de Dominique e Gisèle, irmãos de Caroline). Ou seja: Dominique não poupou nem uma única mulher ao seu redor.
O inquérito foi deflagrado quando Dominique foi denunciado por três mulheres, que o perceberam filmando sob suas saias com o celular em um supermercado. A coragem e o compromisso social dessas mulheres, que se deram ao trabalho de procurar as autoridades policiais e prestar queixa, levou à apreensão do celular e, mais tarde, também do computador de Dominique, onde todo o material foi levantado. Antes tarde do que mais tarde. Gisèle e sua família estão livres agora.
O segundo livro de Caroline Darian, Pour que l’on se souvienne (“Para que nos lembremos”, em tradução livre), será publicado em março pela editora francesa JC Lattès. Seu vigor atualiza o debate social e oferece nova perspectiva às mulheres, aos serviços de saúde e à justiça. E nos prova, uma vez mais, que, diferente de crime, trauma não prescreve. Mesmo que seja revelada 14 anos depois da falência de um relacionamento, a narrativa de um trauma tem a importância que tiver para quem se ergue a dizer, em alta voz, que tem uma história para contar. Pois contem. Sigam contando. “A vergonha tem que mudar de lado.”
Camila Caringe é jornalista e se dedica a cobrir assuntos de sustentabilidade ambiental, social e de governança no Brasil e no mundo. Acompanhe o canal ESG Insights no Instagram, Tik Tok e também no YouTube.