China e Rússia, cúmplices, mas não aliadas
Destinado a normalizar as relações entre Estados Unidos e Rússia, o encontro de Trump com Putin no dia 16 de julho aumentou a confusão. Empurra-se assim Moscou um pouco mais aos braços de Pequim, apesar do desequilíbrio entre as duas potências. Rússia e China reforçam suas conexões, mas defendem seus próprios interesses, que nem sempre coincidem
Enquanto no Ocidente comentaristas destacam de bom grado e com acerto os desequilíbrios de poder entre a Rússia e a China, que, segundo eles, podem pôr em perigo sua cooperação apenas a longo prazo, os líderes dos dois países estão constantemente se comunicando sobre a solidez de sua parceria e demonstrando grande confiança mútua.
Desde a crise internacional causada pela anexação da Crimeia e do conflito no Donbass, em 2014, a relação bilateral passou, de acordo com um cientista político russo, para a fase do “acordo”. Isso significa “empatia e compreensão mútuas no mais alto nível político; maior acesso das empresas chinesas aos recursos energéticos da Rússia; melhor acesso do Exército Popular de Libertação às tecnologias militares russas; e mais oportunidades de usar o território da Rússia para projetos de infraestrutura que ligam a China à Europa”.1
De fato, obstáculos importantes foram contornados. Em 2014, os russos, antes relutantes, concordaram em vender sistemas antiaéreos S-400 e caças Su-35 para o Exército chinês. A hostilidade comum aos dois países quanto à instalação de sistemas antimísseis norte-americanos na Ásia levou ambas as partes a se engajar nessa área de cooperação, certamente modesta, mas com forte significado simbólico. Em maio de 2014 foi assinado o megacontrato referente ao gasoduto Força da Sibéria; além disso, os recursos chineses aliviaram as dificuldades de financiamento do projeto da usina de gás natural liquefeito Yamal, provocadas pelas sanções ocidentais: a China National Petroleum Corporation (CNPC) agora controla 20% do projeto, do qual o Fundo da Rota da Seda (Silk Road Fund) também participa com 9,9%.
Tensão permanente até os anos 1990
Em entrevista à rádio pública chinesa Media Corporation, em 6 de junho de 2018, o recém-reeleito presidente Vladimir Putin ofereceu uma visão relaxada e otimista do relacionamento de seu país com a China. Ele a comparou a um prédio que “a cada ano adquire novas dimensões, andares, que sobe cada vez mais alto e se torna cada vez mais forte”, antes de qualificar seu homólogo Xi Jinping como “amigo bom e confiável”. Ele evocou ali o potencial para interações frutíferas em matéria de robótica, informática e inteligência artificial, ao mesmo tempo que se felicitava pela dinâmica da Organização de Cooperação de Xangai (OCS). Essa “cocriação” sucedeu em 2001 ao Grupo de Xangai, nascido logo após o colapso da URSS. Ela inclui, além dos dois países, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tadjiquistão e o Uzbequistão. Encarnação da preocupação de Moscou e Pequim em estabilizar essa parte da Ásia Central, ela se tornou, de acordo com Putin, uma “organização global” após a entrada, em 2017, da Índia e do Paquistão.2
A população russa, por sua vez, também se mostra receptiva em relação à China. De acordo com uma pesquisa de opinião conduzida pelo Centro Levada em dezembro de 2017, ela só é qualificada como “inimiga” (vrag) da Rússia por 2% dos entrevistados – muito atrás dos Estados Unidos (67%), da Ucrânia (29%) e da União Europeia (14%). Em outra pesquisa, publicada em fevereiro de 2018, 70% das pessoas consultadas tiveram uma abordagem positiva em relação à China, citada negativamente em apenas 13% das respostas.
Na era pós-Guerra Fria, as autoridades russas e chinesas estão igualmente preocupadas em se concentrar no desenvolvimento interno, o que requer um ambiente internacional favorável. Elas querem ir além de seu passado conflituoso e finalmente estabelecer relacionamentos duradouros de boa vizinhança. De fato, dos “tratados desiguais” do século XIX às tensões ideológicas entre as duas potências comunistas a partir do final da década de 1950 (ler o boxe virando a página), passando por uma disputa recorrente sobre a fronteira comum, que havia culminado em 1969 com incidentes armados no Rio Ussuri (Ilha de Damanski para os russos, Zhenbao para os chineses), as relações nem sempre foram simples. No início dos anos 1990, observa um pesquisador chinês, essa tensão permanente era percebida de ambos os lados como “pesando fortemente no desenvolvimento político, econômico e social”3 de cada um; portanto, era necessário libertar-se dela.
A visão semelhante dos dois países sobre a necessidade de estabelecer boas relações lhes permitiu chegar a um acordo sobre a delimitação da fronteira comum, com cerca de 4 mil quilômetros de extensão. Aliás, demorou um pouco, já que a empreitada só se concretizou em 2004. Os russos e os chineses superaram assim o principal obstáculo que os separava. Paralelamente, estabilizaram suas relações militares e de segurança. Em 2009, adotaram um programa decenal de cooperação entre as regiões fronteiriças que compreende 168 projetos; também criaram grupos de trabalho governamentais bilaterais para lidar com aspectos potencialmente geradores de tensões: fluxos migratórios ilegais, tráfico ilícito de mercadorias, problemas ambientais…
O desejo de ancorar o relacionamento bilateral de forma sustentável em um clima construtivo e pacífico é alimentado pelo compromisso mútuo de não interferir nos assuntos um do outro. Os dois Estados, de fato, têm a mesma desconfiança em relação a terceiros que consideram que pretendem desestabilizá-los. Moscou e Pequim têm como prioridade a preservação do regime. No entanto, em ambos os lados considera-se que, na era pós-Guerra Fria, os países ocidentais, em particular os Estados Unidos, se preocuparam em apoiar ou mesmo orquestrar ações subversivas para servir a seus interesses geopolíticos e/ou econômicos. As “revoluções coloridas” na antiga URSS foram interpretadas desta forma: enquanto Moscou se preocupou sobretudo com as “revoluções” da Geórgia (2003) e da Ucrânia (2004), Pequim se inquietou profundamente com a Revolução das Tulipas no Quirguistão (2005), temendo que ela pudesse desestabilizar sua vizinhança e incentivar o sentimento independentista no Xinjiang.4 Ambos também viram a mão do Ocidente na Primavera Árabe. Eles se entendem ainda melhor sobre a questão da estabilidade em suas fronteiras, onde se sentem “sujeitos a restrições intoleráveis […] pela presença militar da América e por seu apoio político aos aliados ou a parceiros deles”.5
Isso certamente explica por que não há, ou por que ainda não há, fortes tensões entre eles nessa vizinhança compartilhada que é a Ásia Central. Pequim, ao mesmo tempo que ali desenvolve rapidamente sua presença econômica desde o início dos anos 2000, tem o cuidado de não disputar com Moscou a liderança política e de segurança nessa região. Há uma base cooperativa histórica para isso: desde 1996, os dois países estabeleceram ali uma plataforma multilateral – o Grupo de Xangai – para demarcar a antiga fronteira sino-soviética e lidar com as instabilidades regionais. A Rússia tem uma longa fronteira com a Ásia Central (via Cazaquistão); a China também, com a região do Xinjiang, no noroeste. Agora conhecido como OCS, o Grupo de Xangai está se concentrando no risco de “terrorismo, extremismo e separatismo”. Russos e chineses certamente não tiveram dificuldade em entrar em acordo sobre essa questão. De fato, desde a segunda guerra na Chechênia (1999-2009), os primeiros ligaram o risco separatista no Cáucaso ao islamismo radical, e os segundos, ao Xinjiang muçulmano. Nacionais dessas duas áreas se juntaram, aliás, às fileiras da Organização do Estado Islâmico (OEI).
Embora se abstendo de aprovar as ações de Moscou na Ucrânia, oficiais chineses enfatizaram que “os diplomatas e líderes chineses têm […] consciência do que levou à crise [ucraniana], incluindo a série de ‘revoluções coloridas’ apoiadas pelo Ocidente nos Estados pós-soviéticos e a pressão exercida sobre a Rússia pela expansão da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] para o leste”.6 Por seu turno, a Rússia, embora continue a exibir sua neutralidade na questão do Mar da China Meridional, apoia o questionamento por Pequim do papel desestabilizador dos Estados Unidos nessa área. Deixando um pouco de lado sua reserva tradicional, ela concordou, em 2016, em participar de exercícios navais conjuntos no Mar da China Meridional (logicamente fora das áreas disputadas).7 No ano seguinte, as duas marinhas estavam operando juntas no Mar Báltico, um foco de tensão entre a Rússia e a Otan nos últimos anos.
Ambos os países são, desse modo, cúmplices em um bom número de questões bilaterais e internacionais. No entanto, em seu balanço do ano diplomático de 2017, o influente Conselho Russo de Relações Exteriores (RSMD) mencionou, entre os desafios de 2018, a crescente assimetria das relações políticas e econômicas com Pequim. Ele acreditava que um dos principais objetivos da ação diplomática de Moscou deveria ser evitar que o atraso se agravasse.8
Cooperação no Extremo Oriente russo
Em muitos aspectos, o equilíbrio de poder inverteu-se de fato contra a Rússia no último quarto de século, particularmente em termos econômicos. Como as relações são boas, esse crescente desequilíbrio não é sistematicamente analisado pela Rússia em termos de ameaça à sua segurança e soberania. No entanto, ele contraria suas ambições de potência internacional. O PIB da China, segunda maior economia do planeta, com 17,7% do PIB mundial (em paridade de poder aquisitivo), segundo o FMI, é dez vezes maior que o da Rússia, que ocupa o 12º lugar, com 3,19% do PIB mundial. E se, para a Rússia, a China é desde 2010 o maior parceiro comercial (15% de seu comércio exterior), para a China, a Rússia se situa apenas no nono lugar entre seus parceiros. Em 2014, quando o comércio sino-russo chegava a US$ 95 bilhões (contra US$ 16 bilhões em 2003), o da China com a União Europeia somava US$ 615 bilhões e, com os Estados Unidos, US$ 555 bilhões.
A própria estrutura do comércio bilateral é problemática: a Rússia exporta principalmente matérias-primas e importa máquinas/ferramentas e equipamentos industriais. Essa é uma das razões pelas quais Moscou, apesar de difíceis arbitragens (respeito à propriedade intelectual e à concorrência nos mercados globais de armas), decidiu, após 2014, subir a um novo patamar, passando para as vendas de armas (S-400, Su-35). Além disso, a China investe muito mais na Rússia do que o contrário.9
Desequilíbrios também existem na área de fronteira. A situação do Extremo Oriente russo (desindustrialização, despovoamento…) é apreendida pelas autoridades em termos de segurança nacional: a possibilidade de perda de soberania sobre essa parte do território é considerada plausível em caso de fracasso dos programas de desenvolvimento. Ainda que isso não seja dito, a percepção desse risco está relacionada, em parte, às assimetrias demográficas (1,1 habitante por quilômetro quadrado, em comparação com cem ou mais para as províncias do norte da China),10 bem como à atividade econômica chinesa que ali vem se desenvolvendo desde a década de 1990, reativando as antigas tensões ligadas à condição sensível desses territórios na história comum. No final do século XIX, a fraqueza do controle estatal russo sobre o Oblast de Amur e o Krai do Litoral havia permitido a formação de enclaves que estavam sob a influência das corporações comerciais chinesas, cujas atividades o Kremlin procurava reduzir.11
No início da década de 1990, comerciantes chineses investiram no mercado russo do Extremo Oriente, que se caracterizava então por severa escassez, e para lá exportaram uma grande quantidade de bens de consumo. Ao longo dos anos, essa presença diversificou-se: comércio sempre, mas também agricultura, construção etc.12
O programa de cooperação de 2009 dá testemunho disso: os dois governos vêm buscando há alguns anos orientar e regular melhor as relações econômicas entre as regiões do nordeste da China e do Extremo Oriente da Rússia. Pequim, preocupada com o desenvolvimento regional – o Extremo Oriente como um mercado “natural” no nordeste da China –, e Moscou, preocupada com o controle.13 O lado russo, aliás, nem sempre é muito cooperativo na execução desse programa. Esse é o efeito transversal da falta de recursos financeiros e da inércia burocrática, mas também de certa ambivalência das autoridades nos níveis local e federal em relação à presença econômica chinesa. A Rússia pretende manter o controle: criou em 2012 um Ministério do Desenvolvimento do Extremo Oriente, construiu o cosmódromo (local de lançamento) de Vostochny, modernizou a linha ferroviária Magistral Baikal-Amur (BAM), reequilibrou sua política externa em relação à Ásia…
É claro que Moscou se resignou à ideia de que o desenvolvimento do Extremo Oriente exigia investimentos estrangeiros. Mas preferiria que fossem de múltiplas fontes e, embora admitindo que, sem mão de obra estrangeira, o desenvolvimento regional não será fácil, ela, também nesse caso, privilegia fluxos de entrada diversificados. O sucesso ainda muito relativo das receitas que ela aplicou alimenta seu medo recorrente “de que, ao se abrir em demasiado para o vizinho chinês, o Extremo Oriente fique permanentemente congelado no papel de simples fornecedor de matérias-primas, em detrimento de qualquer esperança de diversificação”.14
A Rússia também está tentando conter a expansão econômica da China na Ásia Central. Por exemplo, no âmbito da OCS, ela recusou (com o Cazaquistão) a criação de uma zona de livre-comércio ou mesmo a de um banco de desenvolvimento.15 Isso figurava também entre os objetivos originais da criação da União Econômica Eurasiática (UEE), organização de integração econômica entre a Rússia e quatro ex-repúblicas soviéticas (Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão) lançada em janeiro de 2015. No entanto, a margem de manobra de Moscou permanece limitada, pois esses países não hesitam em assinar acordos bilaterais com Pequim (energia, investimento etc.) quando consideram que isso serve a seus interesses. A Rússia não avança muito sobre a influência financeira da China, cujo projeto de Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, BRI) deveria levar à concessão de mais empréstimos e créditos para os países da Ásia Central (ela própria precisa recorrer a empréstimos de bancos estatais chineses, em condições de negociação com frequência muito duras).
Além disso, após a anexação da Crimeia, os Estados-membros da UEE se mostram muito mais desconfiados em suas relações com a Rússia, cujo intervencionismo na Ucrânia causou medo. Moscou parece ter perdido sua cota de simpatia, o que a favorecia regionalmente contra uma China cujo poder preocupava. Da mesma forma que teve de constatar que os investimentos chineses não obedeceriam a considerações geopolíticas ligadas ao “grande acordo” sino-russo, e sim a objetivos de racionalidade econômica, a Rússia deve admitir que a dinâmica chinesa na Ásia Central não é afetada por sua relutância e suas preocupações (isso também é verdade para o Cáucaso e a Ucrânia, incluídos na BRI).16 Na melhor das hipóteses, ela conseguiu salvar as aparências – de maneira bastante superficial no momento – graças ao anúncio conjunto dos presidentes russo e chinês, em maio de 2015, segundo o qual a BRI e a UEE seriam conectadas. Ninguém sabe se a assinatura, três anos depois, de um acordo de cooperação econômica e comercial China-UEE (controles aduaneiros, propriedade intelectual, cooperação intersetorial e mercados públicos, comércio eletrônico, concorrência…) produzirá efeitos mais tangíveis.
A parceria estratégica sino-russa parece sólida por causa da sede de estabilidade dos dois países e de sua rejeição conjunta de qualquer intervenção do Ocidente, liderada pelos Estados Unidos, em sua vizinhança imediata. Essa base robusta, no entanto, não significa que as duas potências se sintam obrigadas a concordar em seus pontos de vista sobre as principais questões internacionais – mesmo que cada uma, se não apoia a iniciativa da outra, pelo menos evite atrapalhá-la. Além disso, a China, parte forte do binômio, traça seu próprio caminho. Ela pretende investir na Rússia somente se os projetos forem economicamente convincentes e se abstém de seguir seus passos em sua crítica virulenta ao Ocidente, com o qual compartilha interesses econômicos significativos.
Cabe a Moscou lidar com os fatores que aprofundam o diferencial de poder, o qual corrói sua imagem, esperando talvez comprometer sua segurança. Daí, por vezes, uma retomada da postura defensiva, que ajudou a derrubar a compra de 14% do capital da petroleira Rosneft pelo consórcio China Energy Fund Committee (CEFC). Até agora, Moscou se contentou em canalizar o “risco chinês” dedicando muito esforço para estabelecer uma relação de confiança adequada para reduzir as fontes de atrito. Sua vitalidade diplomática e militar no Oriente Médio tranquilizou o Kremlin por enquanto, reequilibrando visualmente o equilíbrio bilateral de poder. Se o orçamento de defesa chinês continua muito maior (US$ 150 bilhões em 2017, contra US$ 45,6 bilhões da Rússia, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos), Moscou ganha de longe em termos de armas nucleares.
*Isabelle Facon é pesquisadora da Fondation pour la Recherche Stratégique (FRS), França.
Na época da rivalidade revolucionária…
POR SERGE HALIMI*
Até os melhores especialistas podem se enganar. O livro do jornalista François Fejtö começa assim: “17 de outubro de 1961: aqui está uma data que será lembrada pelos autores dos manuais de história”. Ela foi lembrada, mas por um motivo diferente da que ele imaginou. Na atualidade, esse dia é associado sobretudo ao assassinato de dezenas de manifestantes argelinos pela polícia parisiense, enquanto, em seu trabalho sobre o “grande cisma comunista”, China-URSS: o fim de uma hegemonia, publicado em 1964, Fejtö estimava que ele marcaria “o fim da hegemonia soviética sobre o movimento comunista internacional”.17 Na tribuna do XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), na presença da imprensa ocidental, o secretário-geral Nikita Kruchev se sentiu, de fato, obrigado a atacar violentamente os comunistas albaneses, então pró-chineses.
Algumas décadas depois, duas coisas impressionam sobre essa grande discussão, que degenerou em confrontos armados entre os dois países em 1969. Em primeiro lugar, o esquecimento: quase ninguém mais fala sobre o conflito ideológico sino-soviético. Ele dividiu, no entanto, o movimento comunista e, por um quarto de século, transformou as relações internacionais. Em segundo, o segredo: a deterioração das relações entre os dois principais partidos comunistas do planeta – e entre os países por eles liderados – tomou forma a partir de 1956. Mas seu caráter público, o detalhe de todos os desentendimentos que o ampliaram, só iria se manifestar cinco anos depois. Até 17 de outubro de 1961, observa Fejtö, “as duas partes se esforçavam para manter sua disputa numa espécie de clandestinidade. As críticas, censuras e queixas eram expressas em uma linguagem cifrada, com o mínimo de transparência indispensável para que as pessoas envolvidas não entendessem mal o significado da advertência”.18
Os chineses criticaram, portanto, o “revisionismo” dos líderes iugoslavos com tanta veemência quanto Moscou e os partidos pró-soviéticos se reconciliaram com Tito. E os soviéticos atacaram os albaneses porque sabiam que eles estavam alinhados com Pequim. No entanto, a disciplina coletiva (e a ausência de contas no Twitter…) ainda permitia que mesmo um discurso do líder soviético detalhando, em fevereiro de 1956, perante uma assembleia de delegados comunistas petrificados, os crimes atribuídos a seu antecessor, Josef Stalin, permanecesse em segredo durante várias semanas. A autenticidade de sua acusação foi questionada por alguns dos que a ouviram ou leram – e que não poderiam tê-la esquecido.
A denúncia do stalinismo por Kruchev abriu o arquivo das queixas sino-soviéticas. Mao não aceitava que uma decisão dessa importância, cujas consequências para o conjunto do movimento comunista internacional todos poderiam imaginar, dissesse respeito apenas ao partido soviético. Além de a crítica ao “culto da personalidade” não lhe parecer urgente, especialmente na China, ele temia que a denúncia de Stalin enfraquecesse o conjunto dos líderes comunistas que o haviam apoiado – ou seja, quase todos que tinham sobrevivido a ele.
Mao, no entanto, absteve-se de alinhar sua estratégia com os conselhos, geralmente desastrosos, de seus camaradas soviéticos. Stalin, apesar de não querer ver sua autoridade contestada, divertiu-se com isso em 1948 quando confessou que os chineses não haviam obedecido quando “dissemos a eles brutalmente que, em nossa opinião, a insurreição da China não tinha nenhuma chance de sucesso e que eles deveriam, portanto, buscar um modus vivendi com Chiang Kai-shek, entrar em seu governo e dissolver seu Exército. Eles fizeram o oposto, e hoje todo mundo pode ver: eles estão vencendo Chiang Kai-shek”.19
Além da “questão de Stalin”, título de um dos artigos do Partido Comunista Chinês (PCC) detalhando, em 13 de setembro de 1963, suas diferenças com o PCUS, o principal desacordo entre as duas organizações tinha a ver com a coexistência pacífica. Foi também em 1956, durante o XX Congresso do PCUS, que o líder soviético, de acordo com os comunistas chineses, “formulou visões equivocadas sobre o imperialismo, a guerra e a paz”.20
Quais? Tendo superado sua obsessão pelo cerco, característica do período stalinista, Moscou imaginou que a atração, então real, do modelo soviético poderia sem enfrentamento com o imperialismo fazer cair novos Estados em seu bolso. A arma nuclear – que “não faz distinção de classe” – também tornava os soviéticos corresponsáveis com os Estados Unidos pela paz no mundo, o que a crise dos mísseis em Cuba pareceu lhes confirmar em 1962.
Mao rejeitou essa análise, qualificada de “revisionista”. Ele sentia que, como “as forças socialistas alcançaram uma esmagadora superioridade sobre as forças dos imperialistas”, elas deveriam se beneficiar disso. Por causa de seu medo dos “tigres de papel” norte-americanos, mas também de seu acordo suspeito com os líderes ocidentais, Kruchev ameaçou “paralisar” os movimentos revolucionários do Terceiro Mundo. Quanto ao terror de uma guerra nuclear, Mao o havia relativizado desde 1957: “Se metade da humanidade fosse eliminada, ainda restaria uma metade, mas o imperialismo seria completamente destruído e não haveria nada além do socialismo em todo o mundo. Meio século ou um século depois, a população aumentaria novamente, até mesmo mais que a metade”.
Ele realmente pensava assim ou queria que os “imperialistas” o imaginassem inflexível no caso de uma prova de força? Hoje isso pouco importa. Reconciliadas também sobre esse assunto, a Rússia e a China trabalharam enormemente para garantir que a perspectiva de “socialismo em todo o mundo” não avançasse muito nos últimos anos…
*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.