China’s Economy
Kroeber faz prova de um bom senso impressionante: “Em qualquer país os verdadeiros inimigos na luta por uma prosperidade de base ampla não são os competidores internacionais, mas elites domésticas que batalham constantemente para preservar os seus próprios privilégios às custas de todos os outros. Inovação, educação, abertura, e uma Estado redistributivo constituem armas confiáveis nesta batalha. ”
Kroeber não é mais uma pessoa que passou um tempo na China e escreveu um livro. Vivendo em Beijing e Nova Iorque, editor do China Economic Quarterly, reúne tanto conhecimento técnico como vivência e familiaridade cultural num livro de excepcional qualidade. Quase uma pessoa em cada cinco no planeta é chinesa. O pouco que sabemos sobre como funciona este país, em particular considerando os seus impressionantes avanços, é simplesmente uma vergonha.
O eixo de análise mais interessante que permeia o livro, é o equilíbrio que o país conseguiu construir entre as políticas públicas, o setor público empresarial, os interesses empresariais privados e os grupos internacionais – que em última instância assegurou o sucesso do conjunto. É uma arquitetura diferente de poder e de gestão, aparentemente muito mais equilibrada do que as nossas economias ditas “ocidentais”. A China trabalha com diversos regimes de propriedade, devidamente articulados. Em termos econômicos, é uma economia mista.
Não teria sentido aqui tentar resumir a riqueza de informações trazidas pelo autor. Mas sim vale a pena levantar alguns pontos chave, privilegiando a fase de transformações que se inicia em 1978 com as renovações de Deng Xiaoping. Herdando um mundo essencialmente rural, Deng promoveu uma dinamização econômica e social centrada em melhorar as condições econômicas da imensa base de agricultura familiar, com suporte à produção local, comercialização, financiamento, acesso à terra e expansão de direitos sociais. Foi assim uma construção do país pela base, sendo os excedentes produtivos essenciais para o segundo eixo de expansão que seriam as cidades, ao mesmo tempo que do lado da demanda se criava uma ampla base de consumo popular. Assim a expansão da produção assegurou o seu complemento de demanda. Dos cerca de 500 milhões de pessoas tiradas da pobreza no mundo nas últimas décadas, segundo o Banco Mundial, 350 milhões são chinesas.
Paralelamente, a China investiu fortemente em infraestruturas, em particular conectando as áreas rurais numa rede de energia e transporte que tende a aumentar a produtividade geral. Assim um país ainda relativamente pobre e com salários baixos teria “uma combinação provavelmente não igualada de custos baixos de mão de obra com boas infraestruturas, praticamente de país rico.”(45) Um segundo impulso de infraestruturas, em particular com trens de grande velocidade, viria já neste milênio, mas no conjunto o essencial é que esta parte do desenvolvimento foi rigorosamente planejada, de forma a assegurar a sinergia entre as redes e a tornar as empresas e regiões mais produtivas.(83) Hoje a China está expandindo as infraestruturas no sentido das conexões com o resto da Ásia e Europa, na linha do que tem chamado de “diplomacia de infraestruturas”, inclusive com a constituição do AIIB (Asian Infrastructure Investment Bank), ao qual já se associaram 60 países. (245)
As bases financeiras e os equilíbrios macroeconômicos desses esforços foram asseguradas por um sistema financeiro fortemente controlado e orientado pelo interesse público: “Os que orientavam a política econômica acreditavam que o controle direto do governo sobre o sistema bancário era crucial para que a política macroeconômica fosse efetiva.”(93) Aqui também nota-se uma busca de equilíbrios, com as grandes empresas estatais podendo administrar os recursos de maneira flexível por meio de instrumentos financeiros próprios (in-house finance company), mas com o governo evitando de “perder o controle sobre o sistema financeiro caso se permitisse que as companhias financeiras corporativas se transformem em bancos plenos (full-fledged banks)”.(98) No conjunto o acesso ao financiamento, em particular para os governos locais, foi baseado em taxas de juros muito baixas (ultralow interest rates). (84)
As boas infraestruturas, um amplo mercado interno e mão de obra barata foram irresistíveis para as corporações internacionais, que foram autorizadas a se instalar, mas com termos de referência definidos em grande parte pelos próprios chineses, por meio de zonas econômicas especiais. De forma parecida com a experiência da Coreia do Sul, aqui a capacidade financeira, organizacional e tecnológica das corporações internacionais foi utilizada para formar gradualmente capacidades próprias, e em particular para servir de base exportadora, o que geraria superávits comerciais e capacidade de importação complementares à matriz produtiva interna. Usando os aportes externos para dinamizar capacidades próprias gerou equilíbrios, e não de dependência. Em 2014 o investimento externo direto se limitava a 3% do investimento. (55)
O processo de urbanização ainda desempenha um papel central. O movimento que levou centenas de milhões de pessoas para as cidades, exigindo a expansão da produção de cimento, aço e outros materiais básicos (essencialmente na mão de grandes empresas estatais), e também maior capacidade de construção de infraestruturas, levando gradualmente à intensificação da produção de equipamento doméstico básico, explica em grande parte o dnamismo e a transição para o consumo popular urbano de massa atual. Na visão do autor, a redução do ritmo de crescimento de mais de 10% durante várias décadas para os atuais 6-7% caracteriza esta última transição, com a gradual redução do ritmo de crescimento bruto de edifícios e infraestruturas correspondentes.
As políticas tecnológicas acompanham esse modelo de desenvolvimento de base ampla, diferente do nosso modelo baseado em núcleos de prosperidade e periferias pobres. Ao lançar os seus próprios produtos tecnológicos, a China trabalha com o princípio de “80% da qualidade e 60% do prêço”: ou seja, em vez de se concentrar em produtos de ponta a prêços altos para minorias, assegurar produtos decentes que todos possam comprar. A pesquisa de ponta não perde, mas adquire uma base econômica mais sólida, reforçada pelo sistema de acesso aberto ao conhecimento científico (CORE – China Open Resources for Education).
Interessa-nos naturalmente em particular a gestão, todos tentamos desenhar mentalmente o tipo de arquitetura organizacional que a China criou, e o tipo de tigre que resulta. “A China é formalmente centralizada, mas na prática altamente decentralizada…Na dimensão quantitativa, pela proporção de rendimentos e gastos fiscais manejados pelos governos locais, a China é por uma ampla margem o país mais descentralizado na terra, com a participação dos governos locais nos rendimentos e nos gastos mais do dobro das que são típicas nos países desenvolvidos da OECD, que por sua vez tendem a ser mais descentralizados do que nações em desenvolvimento.”(111) Este ponto é absolutamente central, pois alia uma forte capacidade de orientação política central, com uma radical flexibilidade local na aplicação destas orientações, somando-se coerência sistêmica com agilidade administrativa. É uma lição essencial inclusive para o Brasil, que tem um governo muito centralizado e finanças locais precárias.
Aliás, Kroeber faz prova de um bom senso impressionante: “Em qualquer país os verdadeiros inimigos na luta por uma prosperidade de base ampla não são os competidores internacionais, mas elites domésticas que batalham constantemente para preservar os seus próprios privilégios às custas de todos os outros. Inovação, educação, abertura, e uma Estado redistributivo constituem armas confiáveis nesta batalha. ” (256)
Visão política geral? “Politicamente, a China é um sistema autoritário resiliente cuja legitimidade é baseada em governança eficiente (effective) mais do que em eleições democráticas. Este sistema se fortaleceu substancialmente desde a crise política de 1989, conseguiu três transições pacíficas de liderança, respondeu de maneira competente às circunstâncias cambiantes, e aparentemente goza de um elevado nível de apoio cidadão ou pelo menos aceitação. ” (253). Dado não secundário: a bibliografia é excelente, e muito bem organizada para orientar leituras complementares. O fato de ser publicado pela Oxford University Press também é uma recomendação.
*Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP.