Chuva de poeira prateada
Falha em operação da Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) desencadeia uma série de eventos de poluição atmosférica na região de Santa Cruz e da baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro. Segundo a população, fenômeno produz algo como uma chuva de poeira prateada, que cai sobre as casas e gruda na pele.Bruno Milanez|Marcelo Firpo de Souza Porto|Dario Bossi|Danilo Chammas
Nós não nos preocupamos com a possibilidade de a planta ser fechada. […] Temos conversas boas e próximas com o governador, o prefeito e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc [sic]”.1 Essa foi a mensagem do presidente da ThyssenKrupp, em janeiro de 2011, durante a assembleia de acionistas da empresa alemã. Sua mensagem confirma que a Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) obteria a licença definitiva de operação, apesar dos diversos problemas ambientais que vem causando na região de Santa Cruz e baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro.
A confiança demonstrada pela companhia é resultado da experiência de quem, nos últimos anos, conseguiu contornar investigações, autuações e ações civis públicas. Aqui, descrevemos alguns dos impactos ambientais causados pela TKCSA e avaliamos a posição do governo estadual em relação ao seu licenciamento.
A TKCSA é uma joint venture da Vale e da ThyssenKrupp; ela não é apenas a maior siderúrgica da América Latina, mas também o maior investimento privado implantado no Brasil nos últimos anos. Empreendimentos dessa natureza realmente têm conversas próximas com atores importantes. Tanto o ex-presidente Lula quanto o governador Sérgio Cabral visitaram as obras da siderúrgica e prestigiaram sua inauguração. Como boas conversas rendem bons negócios, a TKCSA obteve isenções fiscais, assim como um financiamento de R$ 1,48 bilhão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Ao mesmo tempo, a empresa firmou um “Acordo para Cooperação Técnica” com o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) – órgão responsável por fiscalizar o seu desempenho ambiental – com o objetivo de reformar a sede do instituto.2
A TKCSA está localizada na baía de Sepetiba, região que historicamente tinha como vocações a agricultura, a pesca e o turismo e, até recentemente, abrigava manguezais, comunidades remanescentes de quilombos e indígenas e cerca de 8 mil pescadores artesanais. Entretanto, essa realidade foi totalmente desconsiderada nos planos de “desenvolvimento local” e, a partir da década de 1970, foi estimulada a implantação de indústrias pesadas, como a Ingá Mercantil, a Companhia Siderúrgica de Itaguaí e, agora, a TKCSA. Como resultado desse modelo de desenvolvimento, a região apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano comparável àquele encontrado na Cidade de Deus, na Rocinha e no Complexo do Alemão.
PESCADORES ARTESANAIS
Os pescadores artesanais foram os primeiros a sofrer com a instalação da usina, uma vez que se criou uma área de exclusão para a pesca, proibindo a movimentação das embarcações num raio de 500 metros do porto da TKCSA. Com suas embarcações de pequeno porte, muitos pescadores encontraram enormes dificuldades em transferir suas atividades para outras áreas, tendo de abandonar sua atividade.3 A pesca foi também prejudicada pela destruição do mangue da baía promovida pela instalação da usina. Em 2007, a TKCSA teve parte de suas obras embargada pelo Ibama, pois havia suprimido o dobro da área de mangue licenciada para a construção de uma ponte.4
Os pescadores tentaram apontar os problemas ambientais e sociais causados pela siderúrgica. Eles também denunciaram para a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro o envolvimento da segurança patrimonial da TKCSA com as milícias da zona oeste do Rio de Janeiro,5 denúncias que ainda estão sendo investigadas. Desde a audiência, porém, um dos líderes dos pescadores teve de ser incluído no Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos por causa das ameaças de morte recebidas.
Os operários contratados para a construção da TKCSA também foram negativamente afetados pela instalação da empresa. Em abril de 2008, as obras da TKCSA foram interditadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) devido a irregularidades, incluindo ausência de sistemas coletivos de segurança.6 Em agosto, o MPT retornou, pois haviam sido identificados 120 chineses trabalhando nas obras sem contrato de trabalho. O resultado foi uma ação civil pública que ainda tramita na Justiça.7 Por fim, foram encontrados operários subcontratados em condições degradantes de trabalho; alguns deles dormindo em alojamentos sem cama nem acesso a água limpa e que recebiam apenas uma refeição por dia.8
A população da região foi o terceiro grupo atingido pela implantação da TKCSA. Durante a instalação da empresa, quando foram atraídos mais de 10 mil trabalhadores, a companhia não ofereceu a infraestrutura necessária para receber tantos operários. Os resultados foram a intensificação da ocupação irregular, o aumento do tamanho das favelas e a elevação do preço dos aluguéis.
Assim, após cinco anos de denúncias, autuações e inquéritos, a TKCSA obteve, em junho de 2010, a sua licença de pré-operação. Essa licença permitiu à companhia ligar o seu primeiro alto-forno, e a licença definitiva ficou condicionada à comprovação de que a empresa teria condições de operar sem impactar negativamente o meio ambiente.
Com o início das operações da TKCSA, a população local passou a ser impactada de forma muito mais intensa por causa da poluição atmosférica gerada pela empresa. A produção do aço produz diferentes poluentes, tais como material particulado, metais, compostos orgânicos (benzeno, tolueno e xileno), dioxinas e furanos. Muitos desses componentes estão associados a diferentes problemas de saúde, incluindo problemas respiratórios e aumento da incidência de câncer.
Apesar desses riscos, tais questões não foram devidamente abordadas no relatório de impacto ambiental (Rima) da TKCSA, que não alertava adequadamente sobre os efeitos das substâncias na saúde. Os problemas do relatório foram identificados previamente;9 porém tentativas de aprofundar o debate durante o licenciamento foram ignoradas.
Após o início das operações, a incapacidade da TKCSA em garantir as condições operacionais adequadas desencadeou uma série de eventos de poluição atmosférica, descritos pela população como uma chuva de poeira prateada que caía sobre as casas e grudava na pele. Segundo os moradores, essa poeira desencadeou problemas respiratórios e dermatológicos.
Como decorrência desse evento, foi constituído um grupo de pesquisadores, representantes de movimentos sociais e de organizações não governamentais, além de uma deputada do Parlamento Europeu que, em setembro de 2010, visitou as comunidades atingidas com o objetivo de prestar solidariedade e dar visibilidade aos problemas que vinham ocorrendo. Em conversas com a população foram colhidas denúncias relativas ao pó prateado, às rachaduras nas casas durante a construção da fábrica, à perda de sono pelo ruído dos trens, à redução de peixes na baía e à precariedade do sistema de saúde local. O grupo ainda buscou uma reunião com representantes da companhia, que se recusou a recebê-lo, abrindo exceção apenas para a deputada europeia.
Ao mesmo tempo, o Ministério Público Estadual instaurou um procedimento para apurar a responsabilidade e o Inea multou a TKCSA em R$ 1,8 milhão (valor que foi reduzido para R$ 1,3 milhão) não apenas pela poluição, mas também por ter omitido dos órgãos ambientais os problemas que vinha apresentando. A TKCSA se justificou apresentando uma falha na máquina de lingotamento, que teria obrigado a empresa a despejar ferro-gusa em um pátio sem o devido equipamento de controle ambiental.10 Além da multa, o Inea estabeleceu a necessidade da instalação de duas estações adicionais de monitoramento de qualidade do ar; todavia os resultados do monitoramento não foram tornados públicos. Outra consequência da contaminação foi a denúncia da empresa, de seu diretor de projetos e de seu gerente ambiental numa ação penal pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) por crimes ambientais, incluindo causar poluição que possa resultar em prejuízos à saúde e apresentar estudo ambiental enganoso.11
Em dezembro, o Inea anunciou que somente concederia a licença para o início da operação do segundo alto-forno depois que a empresa vedasse o pátio de emergência onde havia sido jogado o ferro-gusa. O MPRJ, então, assinou um acordo com o Inea e a TKCSA, em que as partes aceitavam que uma auditoria independente era condição para a empresa poder ligar o seu segundo alto-forno. A expectativa do Inea era de que estudos apropriados para a auditoria iriam requerer cerca de dois meses.12 Todavia, em menos de sete dias, a TKCSA encomendou os estudos técnicos, gerou os dados necessários para avaliação e produziu um relatório favorável ao início da operação do segundo alto-forno. Esse documento relâmpago foi suficiente para a autorização quando a secretária estadual do ambiente afirmou estar “convicta de que os procedimentos adotados pela Companhia para ligar o seu alto-forno 2 [seriam] totalmente diferentes em relação ao alto-forno 1” e ainda todo o procedimento ocorreria “sob o acompanhamento rigoroso dos órgãos ambientais”.13
O acompanhamento rigoroso do Inea, porém, não foi suficiente para corrigir a incapacidade técnica da TKCSA. Passados apenas seis dias, uma nova chuva de pó prateado voltou a cobrir as casas próximas à empresa, gerando os mesmos problemas. Esse episódio obrigou o Inea a demonstrar uma posição mais rígida com a TKCSA. A companhia foi multada em R$ 2,8 milhões e ainda teve de pagar R$ 14 milhões em compensações ambientais e assumir os gastos com a limpeza das casas atingidas.14
A TKCSA continuou negando que a poluição gerada pudesse causar impactos negativos sobre a saúde das pessoas. Segundo a empresa, levantamentos feitos pela Secretaria de Estado de Saúde não indicavam aumento nos atendimentos nos postos de saúde próximos à empresa.15 Por outro lado, não foi divulgado que moradores doentes tiveram de buscar atendimento em outras localidades devido à falta de médicos nos postos de saúde locais e à interdição parcial do único hospital da região.
NOVO PROGRAMA GRANDE CARAJÁS?
Utilizando laudos técnicos, alguns produzidos por especialistas contratados pela própria TKCSA, a empresa buscou minorar os impactos que suas emissões teriam sobre a saúde. Todavia, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), após visitarem o local e atenderem a moradores, alertaram para os riscos da inalação contínua do material, bem como para a possibilidade de ele conter metais, como zinco e cromo.16 Em novembro, a Fiocruz solicitou ao Inea acesso às informações relativas à contaminação causada pela TKCSA; porém, apenas em fevereiro, os dados de qualidade do ar coletados foram disponibilizados sem, contudo, os respectivos relatórios de análise. Posteriormente, a Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro (SEA) iniciou procedimentos para instaurar um grupo de trabalho com a Fiocruz e outras instituições públicas. Mas até o momento da redação deste artigo, o escopo e a liberdade de atuação desse grupo ainda não haviam sido claramente definidos.
O Inea ainda exigiu uma nova auditoria externa como condicionante para a emissão da licença de operação definitiva. A auditoria (em teoria) independente foi encomendada à Usiminas, empresa cujo capital votante pertence parcialmente ao Fundo de Pensão dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ), que tem nas ações da Vale (uma das donas da TKCSA) um de seus principais ativos. Essa relação, bem como o fato de o vice-presidente do Conselho Deliberativo da TKCSA ter sido diretor da Usiminas até 2009,17 parece comprometer a independência da auditoria.
Considerando os acontecimentos registrados até o momento e a facilidade com que a empresa tem conseguido suas licenças ambientais, parece provável que o Inea e a SEA desconsiderarão a incapacidade técnica da TKCSA e concederão a licença de operação definitiva da usina. Nesse cenário, mesmo que a licença esteja condicionada a compromissos futuros, as comunidades se verão obrigadas a conviver com um vizinho que colocará em risco a sua saúde e qualidade de vida.
Dessa forma, a baía de Sepetiba parece condenada a repetir a história de outras comunidades que foram obrigadas a aceitar empreendimentos poluidores. Um caso emblemático de tal situação é a comunidade de Piquiá de Baixo, no interior do Maranhão, onde foram implantadas empresas produtoras de ferro-gusa vinculadas ao Programa Grande Carajás. Como consequência, os moradores passaram os últimos 20 anos lutando contra contaminação, adoecimento e, principalmente, um sistema de monitoramento ambiental pouco transparente. Atualmente, a última batalha que vem sendo travada pelas 350 famílias que ainda resistem em Piquiá de Baixo é pelo direito de serem removidas dignamente de suas terras tradicionais para longe da poluição dessas empresas.
Somente nos próximos anos saberemos se esse também será o destino das comunidades de Santa Cruz e Sepetiba. O presente dessas pessoas vem sendo decidido por atores que não sofrem as consequências das decisões que são tomadas. O que ocorrerá no futuro dependerá da organização dessas comunidades, de sua capacidade de resistência e dos vínculos de solidariedade e aprendizado que elas vêm construindo com outros atingidos por projetos siderúrgicos passados, como Piquiá, ou futuros, como a CSU, em Anchieta (ES), e a Alpa, em Marabá (PA). Essa organização e aproximação, a nosso ver, abrem possibilidade para que grupos que sofrem os prejuízos e danos do “desenvolvimento” sejam ouvidos e modifiquem a correlação de forças que influencia as decisões públicas sobre tais empreendimentos.
Bruno Milanez e Marcelo Firpo de Souza Porto são pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).
Dario Bossi e Danilo Chammas são membros da Campanha Justiça nos Trilhos.