Cicatrizes profundas da partilha colonial
Dividido pela França e pelo Reino Unido – as potências vitoriosas da Primeira Guerra Mundial –, o mundo árabe paga até hoje pela partilha colonial. E a lembrança desse período, especialmente a promessa de criação de um “lar nacional judeu”, ainda ronda os espíritos
(Mapa do Império Britânico, o maior da história que cobriu 36,6 milhões de quilômetros quadrados, com uma população em torno de 531,3 milhões de pessoas, o equivalente a 26% da população do planeta, na época)
Que os Estados oriundos da descolonização herdaram fronteiras estabelecidas na base de interesses e rivalidades de antigas potências coloniais é uma realidade indiscutível, e é possível imaginar facilmente os problemas enfrentados pelos novos dirigentes para garantir a estabilidade e o interesse nacional. Esse problema tornou-se mais complexo nos países árabes pela evocação, tanto histórica como sentimental, dos interesses na “nação árabe”.
A tomada da Argélia em julho de 1830 marcou, ao mesmo tempo, a instituição do segundo império francês e o desmantelamento das províncias árabes do Império Otomano. Como em todas as conquistas coloniais, havia múltiplos fatores em jogo – econômicos, políticos, estratégicos, culturais –, mas as doses variavam de acordo com o tempo e as circunstâncias. O contexto era de conflito e disputa com o rei da Argélia, país de importância estratégica no Mediterrâneo Ocidental (sobretudo diante da expansão da Grã-Bretanha); também estavam em jogo interesses econômicos e comerciais, além das dificuldades internas do regime. A tomada do país árabe desencadeou um longo processo de conquista que se estenderia, no caso dos territórios saarianos, até a Primeira Guerra Mundial.
A instalação dos britânicos em Áden (1839) e a dos franceses em Obock-Djibuti (1862) ganhariam uma importância capital após a abertura do Canal de Suez (1869). Essas estratégias de ocupação ilustram o argumento crucial da segurança nas comunicações inter-regionais: a famosa “rota das Índias” para os britânicos, mas ao mesmo tempo a rota da Indochina e do Extremo Oriente. De resto, os italianos se instalaram na Eritreia (1881) e, como os britânicos em 1884, ficaram com uma porção da Somália (1869-1882).
No caso tunisiano, um fator foi sistematicamente usado como pretexto para a dominação (entenda-se conquista): o endividamento. A partir de 1850, iniciou-se a exportação de capitais de Londres e Paris em direção a Túnis, Cairo e Constantinopla. As reservas de capital dos países industriais eram dirigidas, sob a diligência de banqueiros ocidentais, aos caixas de príncipes necessitados, porém preocupados em assegurar o funcionamento de suas máquinas estatais e iniciar a instalação de equipamentos industriais modernos em seu país. O volume e as condições dos empréstimos obviamente conduziriam à bancarrota, que, por sua vez, justificaria a criação, na Tunísia, de um organismo controlado pelos credores para gerenciar diretamente uma parte dos recursos do país destinados ao reembolso da dívida. Com a segurança de um órgão gestor in loco, seria possível retomar os empréstimos e, portanto, novamente o processo de endividamento. Se as dificuldades de pagamento permanecessem, o país poderia ser ocupado. É o que aconteceria, de fato, com a Tunísia, o Egito e o Marrocos.
Assim, em março de 1870 foi instalada na Tunísia uma comissão financeira formada por Grã-Bretanha, Itália e França (cujo papel foi preponderante). Em seguida, iniciou-se uma grande competição entre seus membros, mas a França gozava de vantagens: o papel ativo de banqueiros, especuladores e industriais; a proximidade da Argélia; o apoio de Bismarck (que buscava desviar as atenções de Paris para a região da Alsácia-Lorena). O Tratado de Bardo, assinado em maio de 1881, selava o protetorado francês sobre a Tunísia.
A bancarrota egípcia de 1875 desencadeou um cenário comparável ao tunisiano, porém mais complexo. A França e a Inglaterra atuavam juntas como potências soberanas no Canal de Suez, gerenciavam a dívida egípcia (caixa e comissão da dívida) e estavam à frente de duas pastas ministeriais. A revolta nacional de Ahmed Pasha foi o pretexto para a intervenção militar. Perante a proposta britânica de ação comum, a França, que tinha interesses financeiros e culturais consideráveis, decidiu abster-se: precisava “digerir” a Tunísia, estar livre de pressões de interesses financeiros e econômicos, manter as relações diplomáticas com Bismarck – que dessa vez franziu a testa. A Grã-Bretanha ocuparia o Egito (julho de 1882) sozinha e ampliaria sua conquista com a criação do Sudão Anglo-Egípcio.
Desde o início do século XIX, a Grã-Bretanha vigiava as costas orientais da Península Arábica com a preocupação de assegurar a proteção imediata da Índia, uma das razões pelas quais havia assinado tratados de protetorado com os sheiks da Costa dos Piratas, Bahrein, Mascate e, em 1899, com o emir do Kuwait – onde os protestos de Constantinopla não impediram os britânicos de instalar uma base naval em 1908.
Após a Guerra Ítalo-Turca (1911-1912), o agressor italiano avançou sobre a Tripolitânia e a Cirenaica. Constantinopla não havia escapado da criação, em 1881, de uma administração da dívida pública otomana, presidida alternadamente por um britânico e um francês. O fato de o Império Otomano conservar o essencial de suas possessões asiáticas (antes de 1914) se devia à cumplicidade das potências imperialistas, que se contentaram, à espera da grande partilha, em dividir outras zonas de influência por acordos assinados em 1913-1914.1 A Alemanha abocanhou o território ao longo de sua estrada de ferro até Basra, a parceria anglo-alemã ficou com a parcela de Basra ao Golfo, e a França, com Síria e o Monte Líbano. Em 1911, a criação da sociedade anglo-alemã Turkish Petroleum Co. marcou o início dos interesses no petróleo da região, antes concentrados na Pérsia.
Restaria, no extremo ocidente do mundo árabe, o Marrocos, peça do xadrez altamente cobiçada. A França desempenhou um papel primordial nos empréstimos marroquinos e na criação de sociedades industriais. Depois, Paris jogou com astúcia e provocou o desinteresse da Itália (trocou a Tripolitânia pela parcela marroquina italiana), da Grã-Bretanha (no encontro cordial de abril de 1904, este país concedeu à França o domínio do Marrocos em troca do Egito) e da Espanha (promessa do Norte do Marrocos, outubro de 1904). A gestão internacional do país havia se tornado impossível depois do acordo de Algesiras (1906) e finalmente a França também fez que a Alemanha se desinteressasse, em acordo tenso que rendeu aos germânicos parte do Congo. Em março de 1912, com o argumento da segurança dos confins argelinos, banqueiros, industriais, diplomatas e militares permitiram a instalação do protetorado francês no Marrocos – um dos exemplos mais bem acabados de colonização imperialista. A “pacificação” duraria até meados dos anos 1930 – mesma época da conquista da Mauritânia, nos confins do Río de Oro, não ocupada efetivamente pela Espanha.
Com o Império Otomano ao lado das potências centrais e o prolongamento da Primeira Guerra Mundial, os combatentes buscaram outros aliados e definiram com mais precisão seu alvo de guerra: a partilha do território inimigo uma vez obtida a vitória. É nesse contexto que apareceram quatro séries de documentos essenciais para o que seria o futuro das regiões árabes da antiga Turquia.
Em dezembro de 1915, os britânicos assinaram um tratado com Ibn Saud: em troca de Londres reconhecer sua soberania sobre o Nedj, Al-Hassa, Qatif e Djubail, Ibn Saud aceitou a proteção de Londres e prometeu manter-se neutro e vigilante na guerra contra os turcos. A partir de julho de 1915, foi estabelecida uma correspondência entre o xarife de Meca, Hussein, e o alto comissário inglês no Cairo, Mac Mahon: se os árabes entrassem em guerra contra os turcos, Londres prometia o estabelecimento de um reino árabe reagrupando o essencial das regiões árabes do antigo império; embora permanecessem as incertezas sobre o destino da Cilícia e das regiões fronteiriças da Síria, o xarife Hussein levantou em 1916 o estandarte da revolta árabe e seu filho, Faiçal, comandou o Exército árabe.
Os longos e desgastantes debates resultaram nos acordos de Sykes-Picot (maio de 1916), que definiam em linhas gerais a partilha da região entre os franceses e os britânicos: a França ficaria com a costa síria e o Monte Líbano (zona azul), além do interior da Síria e a região de Mossul (zona A) como protetorados; a Grã-Bretanha disporia da Mesopotâmia (zona vermelha) e, como protetorado, a zona que se estendia do Egito ao Golfo Pérsico (zona B); e as zonas A e B representariam o eventual reino árabe. Ao redor de Jerusalém e de lugares santos, seria previsto um estatuto internacional (zona marrom), a ser negociado. Enfim, em 17 de novembro de 1917, a declaração de Balfur prometia a criação de um “lar nacional judeu” na Palestina.
França e Grã-Bretanha em disputa
A vitória dos aliados significava, naturalmente, o desmantelamento do Império Otomano: com a Alemanha eliminada pela derrota, a Rússia pela revolução e pela derrota, a Itália considerada uma aliada insignificante e com a recusa dos Estados Unidos de se engajar na batalha territorial da região, o cenário se restringiu à disputa franco-britânica, na qual as relações de força e o cheiro do petróleo seriam determinantes.
Os acordos Sykes-Picot serviram de base para a partilha, com algumas modificações: Paris aceitaria, por exemplo, abandonar Mossul e deixá-la para os ingleses em troca da parte alemã na Turkish Petroleum Co.; a zona internacional seria abandonada. Para apaziguar o presidente norte-americano Thomas Woodrow Wilson, seria inventado o quadro jurídico do mandato, obra-prima e artimanha que mascarava os objetivos coloniais e imperialistas com um discurso civilizador. O compromisso franco-britânico de setembro de 1919 selou a morte da ideia de um Estado árabe unificado, e os acordos de San Remo (abril de 1920) consolidariam essa posição: à França, a Síria; e à Grã-Bretanha, a Palestina e a Mesopotâmia.
Em setembro de 1920, a França delimitou e criou o grande Líbano com base na reivindicação de seus clientes maronitas e em detrimento dos sírios, que protestaram; não bastasse, a Síria, cujo efêmero rei Faiçal estava reduzido ao exílio, foi dividida e ainda ganhou um estatuto especial para o sandjak (província) de Alexandreta, que seria restituído à Turquia em 1939.
No Iraque, a Grã-Bretanha, que teve de enfrentar uma poderosa revolta em 1920, decidiu estabelecer um interlocutor com o coroamento de Faiçal em agosto de 1921. Reivindicada pela Turquia kemalista, povoada majoritariamente de curdos, embebida de petróleo, a antiga cidade de Mossul foi finalmente atribuída ao Iraque pela Sociedade das Nações (SDN), em 1925.
Na Palestina, quando a declaração de Balfur foi integrada à carta do mandato – apesar dos fortes protestos árabes –, a Grã-Bretanha confrontou-se com graves contradições que a interpretação sutil da declaração não conseguiria mais atenuar. Por que a Grã-Bretanha havia inventado a Transjordânia? A resposta forneceu um dos elementos fundamentais da partilha durável da região. Em primeiro lugar, Londres precisava de um espaço onde sua autoridade fosse inconteste para poder assegurar a continuidade da estratégia imperial do Mediterrâneo ao Iraque (escoamento do petróleo de Mossul) e do Egito ao Golfo e à Índia. A Grã-Bretanha queria circunscrever a região onde seria aplicada a declaração de Balfur e limitar as ambições de Ibn Saud, cujas tropas haviam triunfado na ocupação da Arábia Interior e não parariam até a fronteira síria. Enfim, a criação do emirado da Transjordânia em março de 1921 e a concessão de uma subvenção anual2 permitiriam aplacar a fúria de um dos filhos de Hussein, o turbulento Abdallah (a quem seria atribuído o emirado), cujo exército seguia atacando as tropas francesas na Síria.
A Grã-Bretanha desempenhou um papel determinante na delimitação das fronteiras: o limite entre a Transjordânia e a Palestina foi fixado no Rio Jordão e no meio do Mar Morto; a fronteira do Sul seria estabelecida a partir de um acordo com Ibn Saud, que concederia Ácaba à Transjordânia (1925). A leste, as negociações foram realizadas em função da presença do petróleo: em 1922, foram definidas as fronteiras da Arábia de Ibn Saud com o Iraque (a favor deste) e com o Kuwait (em detrimento deste); ademais, para facilitar oficialmente os deslocamentos dos beduínos, o acordo criou, a oeste e ao sul do Kuwait, duas zonas neutras sobre as quais os países fronteiriços tinham direitos iguais. Em 1923, a fronteira entre o Kuwait e o Iraque, dois territórios dependentes da Grã-Bretanha, foi definida sem problemas: a delimitação adotada era visivelmente destinada a impedir que o Iraque acedesse a uma faixa marítima útil no Golfo, mar britânico.
Esse era o cenário no qual, do Atlântico ao Golfo, se realizaria a colonização. No fim dos anos 1920, apenas dois países árabes se tornaram independentes no sentido de não ter nenhuma tropa estrangeira em seus territórios: o Iêmen, praticamente depois de 1913, e a Arábia de Ibn Saud, que também destituiria Hussein e subiria ao poder em 1927. O início da descolonização árabe, ainda parcial, foi marcado pelo tratado anglo-iraquiano de 1930.
Esse breve voo panorâmico sugere que o argumento histórico a favor de uma revisão das fronteiras coloniais é frágil na medida em que é perfeitamente reversível. De fato, o argumento histórico quase sempre omite um ou muitos outros, bem reais nesse caso.