“Cidadão de bem”: ética e estética
A astúcia desse ataque está na forma estética em que a extrema-direita amalgamou os múltiplos afetos e sensações que marcam os nossos dias – medo, raiva, angústia, frustração, ressentimento, ansiedade, insegurança etc. –, oferecendo um reconfortante retorno imaginário à comunidade aos seus novos e velhos adeptos, além, é claro, de produzir formidáveis bodes expiatórios para os problemas complexos do mundo e a decadência das condições de vida, a quem as pessoas poderiam dedicar o seu ódio a vontade
Nem sempre os poderes estabelecidos dizem “não!”: na verdade, aos componentes de um certo estrato social, a classe média urbana, as forças difusas que conformam a vida e a morte na sociedade globalizada concedem vários “sim, claro”, cuidando sempre em apagar os rastros que denunciariam nas “escolhas” desses outrora chamados pequenos burgueses diversas camadas de condicionamento puro e simples.
Diluídos pelo corpo social, e cristalizados em instituições como a família, a Igreja, o Exército, a escola, o mercado financeiro, a mídia, a publicidade, as leis jurídicas e o Estado, os tais “poderes positivos” esmiuçados por Michel Foucault não mudam de mãos tão rapidamente quanto uma faixa presidencial, mas é verdade que já assumiram diferentes rostos. O Poder com “p” maiúsculo já foi acima de tudo teocrático, monárquico, aristocrático, já se inspirou em ideais militaristas, francamente racistas e bélicos; até que, em determinada altura da história, foi dispensando alguns desses intermediários e contratando outros, tornando-se mais parecido com a forma como o conhecemos hoje, ou seja, a do mercado capitalista global. Mas também “o mercado” operou junto de diferentes emissários: passou do soberano absoluto aos quadros políticos, e então “técnicos” do Estado, até o momento em que julgou conveniente se apossar dos mecanismos do Estado para promover sua obrigatoriamente contínua expansão. Atualmente, o chamado neoliberalismo, face mais recente através da qual o poder foucaultiano se espraia, parece se aproximar de paroxismos perigosos, o que pode vir a induzir reações desagradáveis para os que mais exercem do que sofrem com os efeitos desse poder. Nesse cenário de fim de festa, a função do “poder positivo”, mais do que promover a repressão bruta e direta, é dissuadir, confundir, seduzir e se possível cooptar a potencial massa crítica a esse crescentemente intolerável estado das coisas. E isso ele faz suavemente, oferecendo em troca os prazeres dos sentidos, o conforto material e inclusive o do espírito, já que se encarrega de fabricar também os discursos e as mitologias que justificam o caos e as hierarquias insólitas da vida em sociedade – não por coincidência confundindo-se, assim, com a religião.
É necessário ter em mente essa função positiva do poder, que mobiliza uma intrincada cadeia econômica, tecnológica e simbólica, para compreender as sucessivas tragédias sociais e políticas que se abateram sobre o Brasil nos últimos anos. E sobretudo para entender o papel, nesse confuso processo, dos antipetistas comuns – os “cidadãos de bem” que, talvez crendo militar de fato contra a corrupção e em defesa da família, da pátria e da liberdade, engrossaram os protestos de rua pelo impeachment de Dilma, votando anos depois pela eleição de Bolsonaro.
De Machado de Assis a Carolina Maria de Jesus, Florestan Fernandes e Marilene Chauí, as particularidades mórbidas da formação das classes no Brasil, com especial atenção aos estratos médios, já foi descrita, radiografada e criticada em seus mínimos detalhes. Sem jamais ser elite e temendo acima de tudo tornar-se “povo”, pois intui bem o que isso significaria material e simbolicamente, muitos dos membros da classe média buscam identificar-se estética e ideologicamente com a elite, muito embora a sua franja majoritária guarde mais proximidade concreta com as classes empobrecidas. Por isso aquilo que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças” importa tanto: um relógio prateado, mechas loiras alisadas, uma expressão inglesa no meio de uma frase, uns óculos importados ou uma camisa oficial da seleção de futebol podem ser o bastante, em certas ocasiões, para distinguir os portadores de privilégios dos desprivilegiados. Em uma sociedade altamente hierarquizada e violenta como a nossa, trata-se também de uma forma de autoafirmação, enfim.
Sem ser revolucionário, o PT buscou maneiras de alterar essa hierarquia classista. Incentivos para o ingresso de negros e pobres nas universidades, os paulatinos aumentos do salário-mínimo, programas de distribuição de renda e outras políticas públicas contribuíram para uma tímida, mas também inédita, ocupação de espaços antes exclusivíssimos por membros das classes exploradas. Em reação a isso, desde o início do governo Lula, movimentos elitistas como o “Cansei!”, composto por artistas decadentes da TV Globo e pela alta classe média da zona sul carioca, opuseram o seu ressentimento.
Nos anos que antecederam a derrocada do PT, nos vimos envolvidos numa revolução digital sem precedentes, que alterou de maneira radical a forma como nos comunicamos e nos informamos sobre diversos temas, entre eles a política; nesse ínterim, um grupo de graduados funcionários públicos da máquina judicial reuniu as condições ímpares para levar adiante sua cruzada moralista pessoal; e, talvez o mais importante, houve uma aguda crise econômica internacional e um sem número de eventos que abalaram os governantes da vez. A classe média se encontrava então numa enrascada: como periodicamente ocorre no Brasil, boa parte de seus integrantes estavam na iminência de decair na escala social. Uns teriam de retirar os filhos das escolas particulares; outros, para os quais um plano de saúde se tornava impagável, precisariam recorrer ao SUS; e um grande número de desempregados que incluía gente com formação universitária foi forçado “empreender”, trabalhando como motorista de aplicativos. Entre os atingidos pela crise, havia inclusive aqueles que, nos anos petistas, ascenderam ao que ficou conhecido como “nova classe média”.
Porém os desdobramentos da crise não seriam apenas materiais. Como consequência da extensão da lógica da concorrência e do mercado a diferentes esferas da vida, esmiuçada por Dardot e Laval em “A nova razão do mundo” (2016), a religião e o convívio propriamente comunitário há muito vinham perdendo centralidade na vida em sociedade. Com elas, pereciam a solidariedade entre os concidadãos, assim como um conjunto de explicações unificantes da realidade; os pontos de apoio em que a maioria das pessoas vez ou outra se escora – uma concepção restritiva de família e o moralismo que lhe vem a reboque, uma trajetória profissional minimamente previsível; o ideal de comunidade contido na abstração do território, da pátria e em seus mitos fundantes, entre outros –, sofrendo a influência de forças que a muitos parecem insondáveis, tornavam-se cada dia mais instáveis. Possíveis referências auxiliares a que a classe média fragilizada poderia recorrer em momentos de dificuldades – os aparatos do estado de bem-estar social entre eles – ou não estavam mais lá ou encontravam-se igualmente debilitadas.
É nesse contexto que a extrema-direita com astúcia assumiu a dianteira na disputa pela hegemonia política, não só no Brasil, mas em diferentes recantos do mundo. Dimensionando melhor do que os progressistas a profundidade das angústias e dos medos que rondam a sociedade atual, a extrema-direita passou a atacar a hipocrisia reinante nos meios da política institucional, restando à esquerda e à direita tradicional a tarefa inglória de defender instituições que, para certo senso comum, estão há muito apodrecidas – ora os partidos políticos, ora as empresas estatais, a Justiça, o parlamento, a mídia, organizações internacionais como o FMI, a ONU e a OMS, a ciência e por fim a própria democracia disfuncional em que vivemos.
A astúcia desse ataque está na forma estética em que a extrema-direita amalgamou os múltiplos afetos e sensações que marcam os nossos dias – medo, raiva, angústia, frustração, ressentimento, ansiedade, insegurança etc. –, oferecendo um reconfortante retorno imaginário à comunidade aos seus novos e velhos adeptos, além, é claro, de produzir formidáveis bodes expiatórios para os problemas complexos do mundo e a decadência das condições de vida, a quem as pessoas poderiam dedicar o seu ódio a vontade.
A gestão brasileira dessa estética se deu ao longo dos anos do PT no Executivo federal, sobretudo por intermédio das redes virtuais, da mídia tradicional e do meio editorial, acelerando-se a partir de 2013, quando as capitais brasileiras foram palco das maiores manifestações de rua desde o “Fora, Collor”. É então que essa estética, cujas inspirações remetem a secular construção dos ideais da “brasilidade tradicional”, arrisca-se também nas praças e avenidas, alcançando tremendo sucesso, e daí migrando para a própria política institucional que de forma tão virulenta ela atacava.
A extrema-direita sequer careceu de apresentar um programa claro e baseado em constatações, evidências, discussões, estudos etc. A maioria das “soluções” que ela propõe, como a redução da maioridade penal, o veto às discussões sobre o machismo e o racismo nas salas de aula ou a destruição das leis ambientais em suposto benefício da economia, nascem do fígado e não do raciocínio, o que é cristalino para qualquer observador razoável. Também essa recorrência de “soluções” simplistas, autoritárias e aparentes insere-se numa tática, ou, como definiu Sodré, numa “estratégia sensível”: partindo de uma leitura ironicamente lúcida da dinâmica superestrutural contemporânea, a extrema-direita soube opor à “uma comunidade argumentativa e consensual, produtora de normas e sentido num contexto intersubjetivo de livre discussão”, parafraseando novamente Sodré, “uma comunidade afetiva, de base estética, onde a paixão dos sujeitos mobiliza a discursividade das interações”.
Não à toa, tudo nos protestos bolsonaristas alude aos momentos “cívicos” de celebração da brasilidade a que desde cedo nos acostumamos – ora ao carnaval, à procissão religiosa e à parada militar, como notou o antropólogo Roberto Da Matta, e também à comemoração de mais uma vitória na Copa do Mundo. Ao contrário das tentativas anteriores e fracassadas de emplacar o direitismo nas ruas – lembremo-nos das patéticas passeatas do “Cansei!” durante o governo Lula – as manifestações antipetistas significavam algo de reconhecível e simpático para uma parcela expressiva da população, pois suas “estratégias sensíveis” se abasteceram de traços celebrados pela maioria do povo.
Operando na mesma chave escatológica das igrejas neopentecostais, que por sinal atuaram como uma de suas linhas auxiliares, a extrema-direita buscou conformar-se como uma comunidade de afetos, criando, na melhor tradição do poder positivo foucaultiano, um prazer genuíno e raro nos tempos de hoje: o sentimento de pertencimento a um todo maior, possuidor de uma história saudosa e que caminha rumo a um horizonte contido nessa própria história, o “Brasil acima de todos”. Dessa síntese com caráter de manifesto, perfeitamente afinada aos sintomas da crise da razão da qual os filósofos vem há mais de um século vêm nos prevenindo, emana a força persuasiva da extrema-direita contemporânea.
O antipetismo devolveu à classe média decadente um sentido para a sua existência – eis uma das razões porque ele é tão sedutor para esse estrato social. Ora, como demonstraram Gilberto Freyre e Jessé Souza, a classe média brasileira é consequência (e não causa, como poderia ser dito no caso estadunidense) de todo um modo de produção capitalista cuja gênese remete ao século final da colonização portuguesa de base escravocrata. Esse sistema de produção, um dos mais cruéis que a história humana já produziu, ofereceu certas migalhas à nascente classe média, em troca de sua incondicional cumplicidade.
“Esse acordo do desenvolvimento, do mercado, do produtivismo em detrimento da invenção humanista está no núcleo da história nacional, e esta é a verdade tropical”, sintetizou o crítico de arte Claudio Szynkier num ensaio publicado na Folha de S.Paulo[1]. Tais “invenções humanistas”, tratadas como “desleixo fantasioso” pelos beneficiados pelo funcionamento do sistema, foram num primeiro momento a própria ideia da abolição da escravidão, e depois as artes “subversivas”, não alinhadas ao moralismo mercantil das elites, e então as concepções emancipatórias da educação, as lutas pelo reconhecimento dos direitos humanos e, ganhando centralidade nas últimas décadas – embora esse enfrentamento esteja na essência da exploração colonialista –, as demandas feministas, indígenas e ambientalistas.
Todos esses elementos reincidiram nas paradas bolsonaristas, porém atualizados pelo que Szynkier chama de “mentalidade business”. Conjugando “uma sede de eficiência atordoante” a uma “atrofia nervosa” coletiva, fruto de vivências “orientadas desde a infância pela ordem da produtividade”, tal mentalidade, “fecundada nas nervuras da sensibilidade dominante nos últimos anos”, logrou atrair para si a classe média atordoada pela crise, a mesma que aprendeu cedo que o importante na vida é “ser um vencedor”.
Daí porque a psicanalista Maria Rita Kehl considera que a atualidade do tema do ressentimento “é clínica e também política”. “Constelação afetiva” que funciona como uma espécie de “mecanismo de defesa do eu a serviço do narcisismo”, é muitas vezes guiada pela dinâmica do ressentimento que as pessoas suportam a carga de exigências inalcançáveis do mundo contemporâneo.
Porém se acontece de um ressentido reconhecer-se como tal, ele pode vir a descobrir em seus sintomas a doença, interrompendo assim o ciclo vicioso; sabendo disso, toda uma gramática foi desenvolvida pela extrema-direita para impedir essa exegese; seus estrategistas entenderam que é na exploração do ressentimento que mora a chave para o seu sucesso. Entre outras coisas, compõem essa gramática, escreve Szynkier, “o dialeto do whatsapp” que “inundou as vísceras imaginativas da população com montagens amadoras do ‘mito’ Bolsonaro”, bem como o “humor de escritório politicamente incorreto incubado na tradição brejeira nacional, aquela baseada no composto família, igreja, masculinidade torpe & pinga”.
A construção do “cidadão de bem”, arquétipo do brasileiro trabalhador “que paga seus impostos” e se ufana de uma pátria igualmente idealizada, não foi fruto da geografia ou do clima tropical, como antes quiseram os positivistas. Um conjunto de falas chocantes supostamente ingênuas, seguidas quase sempre de covardes recuos estratégicos, foi pintando traço a traço o “cidadão de bem”; falas estas que pinçaram num passado idílico memórias relacionadas ao que seria, ao que houvera sido e ao que haverá de ser o Brasil. E esses discursos surgiram e surgem sempre emoldurados em cores, vestimentas, gestos, ênfases, expressões faciais, símbolos e marcas que corroboram palavras encadeadas em frases tais como: “o meu partido é o Brasil”, “em nome da minha família, eu voto sim”, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, “direitos humanos para humanos direitos”, “bandido bom é bandido morto” e por ai vai.
A ideia de brasilidade que o “cidadão de bem” encarna não carece de prova ou de paralelos no mundo material. Tanto faz, aos que com ela se identificam, se a formação histórica brasileira corrobora ou não o clichê de que seríamos uma nação ordeira e pacífica, cujas classes tenderiam naturalmente à harmonia, e onde o convívio entre pessoas negras, brancas e indígenas seria conduzido pela “cordialidade”. Ou melhor: referências às possíveis contradições factuais aos discursos que conformam o “cidadão de bem” importam somente na medida em que expõem em flagrante seus porta-vozes, que, ao questionarem qualquer aspecto da dita brasilidade tradicional, portam-se como rivais do “cidadão de bem” e, consequentemente, como inimigos do Brasil.
Essa é uma das razões pela qual a extrema-direita brasileira se sente encorajada a detratar defensoras do feminismo, dos direitos LGBTs, da igualdade étnica, da educação emancipadora, dos direitos humanos e do meio ambiente. Com maior ou menor sinceridade, é a própria essência da pátria que seus partidários, em sua caótica cruzada anti-humanista, alegam defender.
Bálsamo que alivia as dores de parte da classe média, o antipetismo e seu filho natural, o bolsonarismo – “uma estória que eles contam a eles próprios, sobre eles mesmos”, diria o antropólogo Clifford Geertz –, promovem enfim uma perigosa alteração no eixo do debate público, com a qual as forças que lhe fazem frente ainda não souberam bem como lidar. Parafraseando Sodré uma última vez, a “relação entre auto-satisfação e satisfação alheia”, inserida desde sempre no ato de comunicar algo a alguém, porém intensificada hoje até o absurdo, é o que têm levado “a velha sociedade disciplinar (dissecada por Foucault)” a dar lugar “à sociedade de controle, onde a trama do poder ocupa o psiquismo e o corpo dos indivíduos, por meio do desejo”.
Daí a urgência em se compreender a extrema-direita também desde uma chave estética – pois é esta a chave que tem sido acionada por seus ideólogos na composição de novos prazeres, saberes e discursos a serem ofertados aos “cidadãos de bem” órfãos de um norte existencial.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-e-consequencia-de-atrofia-no-imaginario-brasileiro-diz-critico.shtml