Cidadãos ou consumidores? Superficialidades no mundo pós-moderno
Em um mundo onde as relações se estabelecem e se encorpam através das redes sociais e de interações virtuais, fica claro que nossa sociedade mais afasta que abraça as pessoas. Um mundo no qual, vejam só, muitos de nós se espelham em figuras que comercializam no Instagram — ou em outras redes — corpos, sonhos, viagens, produtos etc. É nessa lógica que me pergunto: é este o lugar que queremos?
Rio de Janeiro, Brasil. 2021. “Pandemia” e “Covid-19” fazem parte das palavras mais lidas e ouvidas atualmente. A maioria das pessoas está tentando sobreviver e resistir a um dos momentos mais doloridos e trágicos da história da humanidade. Para muitos, cuja sobrevivência já representa por si só um desafio enorme, o desemprego e a falta de oportunidades e perspectivas batem à porta, embrulham o estômago, corroem a saúde mental e nocauteiam a dignidade. Mais de 14 milhões de pessoas no Brasil estão desempregadas e, ao todo, há cerca de 76 milhões de pessoas consideradas fora da força de trabalho segundo dados divulgados através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) do IBGE. A partir desse cenário, me peguei pensando no que fazemos da vida enquanto estamos vivos e saudáveis; o sentido e o significado da nossa caminhada são um tema que muitas vezes passa despercebido, nem sempre damos o merecido valor a um assunto que deveria nortear nossas ações.
Nessas divagações, fico me perguntando se somos felizes com os empregos que temos, se apreciamos a graduação a que nos dedicamos e se nossas escolhas têm como fim a tal da felicidade de que tanto ouvimos falar. E o que seria essa felicidade? É aquela que estampam personagens repletas de seguidores e seguidoras nas redes sociais? É a do comercial no qual todos sorriem e têm os produtos da moda? Talvez seja a do filme ou do último capítulo da novela das nove, não? Então cabe uma pergunta: o que é felicidade para você?
Em um mundo onde as relações se estabelecem e se encorpam através das redes sociais e de interações virtuais, fica claro que nossa sociedade mais afasta que abraça as pessoas. Um mundo no qual, vejam só, muitos de nós se espelham em figuras que comercializam no Instagram — ou em outras redes — corpos, sonhos, viagens, produtos etc. É nessa lógica que me pergunto: é este o lugar que queremos? Um lugar onde a dinâmica dos relacionamentos é pautada pelo consumo, pela superficialidade, pelo marketing, pelo interesse e pela conveniência. Um lugar que vê as pessoas como, acima de tudo, consumidores? Um lugar em que, até nas situações mais prosaicas, observamos essa pérfida lógica de cidadão-cliente.
No Brasil, a pandemia contribuiu para o óbito de mais de 500 mil histórias, amores, trajetórias e sentimentos. Mais de 500 mil pessoas perderam suas vidas em decorrência dos efeitos da Covid-19. Entretanto, mesmo antes da pandemia, hospitais, principalmente os públicos, mas também muitos privados, possuem leitos que não suportam a quantidade de pacientes; há demora para atendimento, longa espera dos pacientes pela marcação de exames, filas enormes nas emergências, dificuldade para agendamento de consultas e planos de saúde privados usando e abusando de seu poder e influência para submeter seus clientes a mensalidades, tarifas, taxas ou anuidades ultrajantes. A precarização do Sistema Único de Saúde (SUS) caminha de vento e polpa, produzindo efeitos cada vez mais devastadores e desalentadores para saúde pública brasileira, a qual parece não acenar com nenhuma melhoria nos anos vindouros.
Na escola, o sucesso nas avaliações é o bem de consumo pelo qual pagam os responsáveis dos alunos, muitas vezes ignorando aspectos bem mais significativos para seus filhos, como o desenvolvimento de atributos como a solidariedade, a empatia, o respeito e a criatividade — palavras que fazem bastante falta a nosso planeta, palavras que estão em extinção… As instituições de ensino, principalmente as unidades escolares, deveriam ter como preocupação essencial a formação humana, mas, no fim das contas, a lógica do consumo simbolizada pela tríade emprego-dinheiro-“sucesso” prevalece acima de qualquer outra coisa.
Nas cidades, as pessoas parecem crer que tudo se trata de uma relação de negócios; percebe-se, pelo que se acompanha na mídia, que muita gente vê a cidade onde habita como uma empresa. Pelo resultado das últimas eleições, nota-se o crescimento desse tipo de visão, na qual a cidade deve, obrigatoriamente, ser administrada como uma empresa privada. A gentrificação — cenário no qual se revitaliza determinada região visando valorizá-la e torná-la, inevitavelmente, inviável para os menos privilegiados — é defendida com unhas e dentes, invisibilizando, excluindo e reforçando um discurso meritocrático que pouco se sustenta em um país como o Brasil, no qual grande parcela dos milionários é fruto de um esforço incomensurável chamado herança. A dinâmica que prega a cidade como empresa desconhece que a pessoa ao nosso lado, nossa mãe, vizinho ou colega de trabalho é mais do que uma potencial consumidora ou potencial consumidor. Nós somos mais do que aquilo que curtimos nas redes sociais, mais do que as mercadorias que o Facebook nos recomenda, mais do que um número de matrícula pelo qual a faculdade nos reconhece, mais do que códigos ou senhas, mais do que documentos que esvaziam quem somos como totalidade, mais do que as postagens e fotos publicizadas nas redes sociais, mais do que aquele tênis ou sandália que adquirimos em uma promoção na Internet.
É o sentimento ao ver o sorriso de uma criança que cruza nosso caminho a caminho do trabalho às sete da manhã, o visual da Ponte Rio-Niterói ao entardecer contemplado de um veículo em movimento, o beijo demorado na namorada, o abraço apertado na mãe, o gol da vitória aos 45 minutos do segundo tempo, o papo com os amigos ou qualquer outra situação que mexa conosco que ajuda a definir quem, de fato, nós somos. Somos seres dotados de emoções e, acima de tudo, somos cidadãos. Que jamais nos esqueçamos disso.
João Camilo Sevilla é professor, servidor público, mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduando em Estudos Sociais e Políticos pelo IESP-UERJ.