Cidades-esponja e os novos desafios do planejamento urbano
No Brasil, onde asfalto elege e reelege candidatos, o cenário é desalentador, pois a compreensão da importância de “tornar-se um solo esponjoso” terá que lidar com as visões “apaixonadas” de uma superconstrução já anacrônica
Eventos atmosféricos extremos com períodos prolongados de seca ou de chuva com inundações, como os ocorridos no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e também no Lago de Tefé – AM, só para citar alguns mais recentes, não afetam apenas a pecuária, a produção agrícola ou as encostas, mas têm forte impacto nas cidades. Por causa das alterações climáticas, as tempestades tornaram-se mais frequentes a ponto de causarem inundações violentas de grandes áreas urbanas em poucas horas, com sérias perdas e danos socioeconômicos, mortes e desaparecimentos. Cobertas principalmente por asfalto e concreto, as cidades não conseguem escoar rapidamente a água da chuva durante essas tempestades e, se o fazem, dispersam-na rapidamente sem conservá-la para uso nos períodos de seca.
Por isso, já há algum tempo, justamente pelo agravamento de tempestades e períodos de seca em diversas latitudes, inclusive a nossa, urbanistas, paisagistas e arquitetos vêm trabalhando em uma ideia diferente na gestão dos espaços urbanos para criar as chamadas “cidades-esponja”. A ideia existe há cerca de vinte anos e, sobretudo nos últimos anos, o tema tem sido recorrente entre profissionais e instituições. Os primeiros estudos sobre cidades-esponja datam do início dos anos 2000, quando alguns grupos de pesquisa chineses como Kongjian Yu começaram a se interessar pelo problema das cheias em áreas urbanas e pela ineficiência dos sistemas tradicionais de escoamento rápido de grandes quantidades de água. Seriam necessárias medidas extras como a criação de canais artificiais de drenagem e modernização dos sistemas de esgoto.
As primeiras propostas não foram recebidas com particular interesse pelo governo chinês, mas as coisas mudaram depois do verão de 2012, quando uma grande inundação em Pequim causou a morte de cerca de oitenta pessoas. Dado que algumas experiências de pequena escala já haviam sido realizadas com sucesso, as autoridades chinesas concordaram em desenvolver o conceito de cidade-esponja e transformá-lo numa abordagem a ser aplicada em todo o país. Num discurso proferido no final de 2013, portanto há mais de dez anos, o presidente chinês Xi Jinping disse: “Vamos construir cidades-esponja com capacidade natural de retenção, penetração e purificação de água”.
Nos meses seguintes foram definidas diretrizes para essas cidades, com indicações sobre a importância de projetar e desenvolver espaços urbanos adequados para absorver, purificar e reter água. A rápida urbanização chinesa fez surgir, em apenas algumas décadas, cidades cada vez maiores e mais complexas de gerir. As novas regras foram, desse modo, concebidas para esses grandes projetos de cidades. Os primeiros projetos-piloto foram lançados entre 2015 e 2016, e depois estendidas a inúmeras cidades, incluindo Pequim, Xangai e Shenzhen. Com base nessas e em outras experiências, alguns países ocidentais começaram a experimentar o conceito de cidades-esponja.
A base dessa concepção está na possibilidade de desacelerar o fluxo de água quando ocorre uma forte tempestade, construindo espaços e adotando soluções arquitetônicas que permitam que a água penetre facilmente no solo, acabe no aquífero ou seja coletada em reservatórios artificiais. É uma abordagem oposta à tradicional que deixa a água da chuva escoar rapidamente, recolhendo-a em bacias, possivelmente para utilização posterior.
Quase todas as técnicas utilizadas derivam da observação de como a natureza funciona, em que pontos as chuvas são absorvidas pelo solo, o qual também tem, muitas vezes, capacidade de filtrar essa água. A tônica é: em vez de se comportar como uma capa de chuva impermeável, a cidade deve ser capaz de absorver a água da chuva, reduzindo o risco de inundações.
Os sistemas para transformar a teoria em prática são numerosos e agora bem testados. Uma primeira abordagem consiste em remover todas as superfícies impermeáveis, ou que não absorvem a chuva, de lugares e espaços nas cidades onde não são estritamente necessárias. O uso de concreto e asfalto é o que torna as cidades mais impermeáveis e, portanto, deveriam ser usados com mais moderação, segundo os projetistas das cidades-esponja. Além disso, as áreas verdes de simples espaços de lazer deveriam ser repensadas para se tornarem a principal porta de acesso da água ao subsolo.
Os parques municipais já desempenham parcialmente essa função, absorvendo grandes quantidades de água melhor do que os sistemas clássicos de drenagem, mas sua presença nas cidades é limitada, bem como a área de jardins e canteiros. Porém, cada um deles pode se tornar um importante e independente recurso de absorção de chuva, desde que, no projeto (ou redesenho) dos ambientes urbanos sejam previstas inúmeras e frequentes áreas verdes, mesmo pequenas, mas com boa capacidade de absorção.
Os chamados “jardins de chuva” cumprem essa função. São construídos criando uma ligeira depressão no solo preparado para a drenagem, para que as águas superficiais possam infiltrar-se facilmente. A montagem do jardim é então feita com a escolha de plantas resistentes ao clima local, sobretudo em períodos prolongados de seca, para reter água em caso de enchentes. É claro que nem todos os solos têm drenagem suficiente para permitir a construção de jardins de chuva, mas em muitos casos a construção de pequenos drenos, em pontos onde o solo é mais adequado para absorver água, ajuda a reduzir o problema.
Em áreas de tráfego intenso, os jardins de chuva também podem ajudar a reduzir alguns dos poluentes suspensos no ar. As plantas ajudam a filtrar a água poluída, que passa pelas diversas camadas do solo e continua a se purificar antes de chegar ao aquífero. Dessa forma, a água não se dispersa rapidamente e ajuda a regenerar um importante ponto de abastecimento de água em períodos de seca.
Nos últimos dez anos, na Califórnia (Estados Unidos), onde as chuvas são cada vez mais raras especialmente no verão, o problema da seca torna-se cada vez mais difícil de gerir. Grandes tempestades, que por vezes causam inundações em algumas áreas da metrópole, foram vistas como um risco e não como uma oportunidade. Desde sempre, drenos foram utilizados para desviar a água das áreas habitadas, mas sem muita possibilidade de reaproveitamento. Agora, a perspectiva é outra e tudo começa a funcionar de forma diferente, com a construção de mais espaços verdes que alimentam cisternas subterrâneas, como um plano B para a cidade em tempos de seca. Também foram criados grandes espaços para permitir o escoamento do excesso de água da chuva, sua absorção pelo solo e reabastecimento do aquífero.
Para além das áreas verdes, oportunidades importantes surgem da investigação e desenvolvimento de novos materiais de construção. A cidade norte-americana de Pittsburgh, na Pensilvânia, por exemplo, começou a utilizar um piso composto por blocos de concreto intercalados com pequenas fissuras feitas com argamassa à base de cascalho, o que favorece a passagem de água. O sistema é mais prático e rápido de instalar que outros tipos de pavimento, pois permite o uso de peças pré-fabricadas maiores. Pode ser utilizado para construção de calçadas, rampas e estacionamento de veículos em locais onde não é possível agregar novas áreas verdes.
O conceito de cidades-esponja tornou-se mais difundido também graças ao maior interesse por parte das administrações locais. Em muitos países existem regulamentos para as áreas ao redor dos novos edifícios e para os já construídos, ou em projeto, são previstos incentivos para ações que garantam a gestão das águas pluviais pelo poder público. O dinheiro arrecadado dessa forma é, então, reinvestido em iniciativas para melhorar a infraestrutura e evitar inundações.
Em grande parte com financiamento da União Europeia, algumas cidades europeias e chinesas iniciaram, em 2017, o projeto Grow Green para experimentar novas soluções com mais espaços verdes e, ao mesmo tempo, mais recursos para reduzir os riscos decorrentes das inundações.
Uma delas é Manchester, no Reino Unido, especificamente na área de West Gorton Park, demonstrando como a área verde pode ser utilizada para absorver rapidamente grandes quantidades de água, as quais são, então, lentamente liberadas em direção à aba. Foram feitas diversas intervenções para reduzir superfícies impermeáveis, criar ligeiras depressões para captação de água e numerosos jardins de chuva.
Em Wroclaw, na Polônia, pequenas depressões e jardins de chuva foram construídos nos pátios de vários edifícios de apartamentos, criando pequenas áreas verdes nas quais a água pode facilmente infiltrar-se.
Na cidade italiana de Modena, o projeto Grow Green envolveu a análise do sistema de canais de drenagem em torno da cidade, a partir do qual se iniciou o desenvolvimento de uma estratégia ligada à gestão do solo para reduzir o risco de inundações.
Em junho passado, em Budapeste, capital da Hungria, fortes chuvas provocaram inundações rápidas após um período de seca prolongada. Embora não seja a primeira vez que isso acontece na cidade, a frequência desses eventos extremos tem aumentado nos últimos anos e, por isso, a administração local trabalha há algum tempo em um novo projeto, ligado ao conceito de cidade-esponja. Duas grandes cisternas para coleta de água estão em construção em dois bairros da cidade, com previsão de utilização dessa água no combate à seca. Outro projeto refere-se à construção de um novo parque de estacionamento com pavimento drenante, para absorção das águas pluviais. A iniciativa, denominada “LIFE – Urban Rain”, nasceu após uma colaboração com Viena, capital da Áustria, onde está em fase final um grande projeto habitacional no distrito de Seestadt Aspern, na zona oriental da cidade. O projeto conta com um grande parque, um lago e inúmeras áreas verdes ao longo das ruas e entre os novos quarteirões. Também nesse caso, o duplo objetivo permanece: oferecer áreas de lazer para os moradores e um sistema de gestão de águas pluviais para reduzir o risco de inundações.
Em 2016, Berlim, na Alemanha, já tinha iniciado um plano esponja depois de ter registrado um aumento de inundações e de fenômenos meteorológicos extremos. Tal como acontece em outras cidades, o projeto inclui ações de pequena escala para incentivar os condomínios a tornarem seus quintais mais verdes, reduzindo a pavimentação impermeável e iniciativas de grande escala para substituir o asfalto e o concreto sempre que possível.
A China continua a ser um dos pontos de referência nas técnicas e práticas a serem utilizadas nas cidades-esponja. A União Europeia e o governo chinês colaboram, por exemplo, no âmbito da “Plataforma da Água”, organização dedicada à investigação e desenvolvimento de novas soluções para uma gestão mais eficiente da água e para combater seu desperdício. A colaboração também diz respeito à identificação dos sistemas mais econômicos para transformar as cidades atuais em cidades-esponja. Em geral, os investimentos são limitados quando comparados com os dos sistemas tradicionais que envolvem a construção de grandes infraestruturas e ainda conduzem, mais rapidamente, a resultados tangíveis.
Na era digital, quando as catástrofes são mais frequentes por causa das mudanças climáticas, houve uma inversão total no paradigma defendida pela historiadora francesa Françoise Choay com a classificação da disciplina de planejamento urbano dos anos 1960. Para a estudiosa, a cidade era o horizonte da sociedade urbana e industrial e a investigação sobre os modelos, por meio de uma sistematização da disciplina, foi útil para lidar com a conurbação de metrópoles que a sociedade produziu.
À natureza responde-se com a natureza: eis o grande desafio do planejamento urbano não só do futuro, mas também do presente. Os últimos acontecimentos ocorridos no Brasil de Norte a Sul corroboram a necessidade de levarmos em consideração o que foi ressaltado pelas estratégias territoriais celebradas pelo neourbanismo na Expo Xangai, e pelo neorruralismo na Expo 2015 em Milão, que colocam o campo e as paisagens na base da nova dimensão constituída por cidades-regiões ou cidades-territórios. Esse novo contexto destaca a análise e descrição daqueles territórios onde o planejamento urbano moderno falhou, favorecendo o mito da arqueologia moderna.
Mantendo conscientemente os significados econômicos e sociais da sustentabilidade, o planejamento atual precisa centrar a atenção nos aspectos ambientais, mas num sentido amplo de ambiente, que inclui não só a dimensão ecológico-energética, mas também a estético-funcional. Esta última, quer seja considerada parte integrante da sustentabilidade ambiental ou o “quarto pilar” do desenvolvimento sustentável, está atualmente interligada com um interesse renovado pela forma urbana, também demonstrado pelas publicações científicas mais recentes.
A dimensão ambiental lembra-nos que a cidade pertence ao território pela interdependência ambiental que caracteriza as suas relações e que ambos estão na base da qualidade ambiental da vida urbana. O território deixou de ser um conjunto de condições externas à cidade, porque o contexto tornou-se um horizonte interno da cidade. Pode-se dizer, portanto, que a cidade coincide com seu território, com seu universo contextual. Território esse entendido como lugar de reconhecimento das diferenças espaciais do urbano, lugar de recuperação do ethos, de tudo o que não esteve no centro, que não estava na polis. O território é a matriz profunda dos elementos primários da vida.
Nesse campo, a época atual caracteriza-se por um fértil entrelaçamento de profissionalismo, abordagens e campos de atenção projetual. Por um lado, a utilização de estratégias de desenho bioclimático está se difundindo também com fins de qualificação morfológica e, por outro lado, o desenho da forma urbana também tem como objetivo tornar o assentamento mais eficiente do ponto de vista energético e ambiental. Especialmente nessa escala, disciplinas outrora muito distantes convergem e integram-se no desenho, superando a natureza setorial e a rigidez que caracterizaram muitas décadas de cultura do projeto e que, há muito, levam entre outras coisas ao confinamento das questões energéticas à construção. Água, ar, ruído, solo, natureza, transportes e acessibilidade, energia, resíduos, consumo do solo, mas também proteção e recuperação, qualidade do espaço público, densidade, mistura de usos (mixitè) e integração. Os pilares estão agora claros e presentes em diferentes graus em todas as boas práticas descritas.
No Brasil, onde asfalto elege e reelege candidatos, o cenário é desalentador, pois a compreensão da importância de “tornar-se um solo esponjoso” terá que lidar com as visões “apaixonadas” de uma superconstrução já anacrônica. Não o fazemos porque não existe uma cultura de soluções baseadas e inspiradas na natureza. É uma filosofia e uma mudança de paradigma, pois a cidade-esponja não se limita à retirada ou troca de pavimentação impermeável e à criação de áreas verdes capazes de absorver água. Túneis subterrâneos e bacias de recolha podem ajudar não só a reagir a fenômenos climáticos extremos, mas também à seca: chuvas repentinas após longos períodos de seca podem ser uma catástrofe ou uma dádiva divina. Quando chove, há cidades que não conseguem desperdiçar nem uma gota de água: por isso devem ser transformadas em grandes reservatórios que absorvem água e depois a exploram em períodos de emergência hídrica. Para quais funções? Para limpar a rua, para a agricultura urbana, para os serviços de limpeza. É um uso mais inteligente e consciente dos recursos. Resta perguntar: quando?
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013). Coordenador do Curso de especialização lato sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território – PlanUPP.