Mulheres em tempos de crise: uma tragédia dentro da tragédia do RS
A tragédia escancara a necessidade de um esforço coordenado para proteger as mais vulneráveis, oferecendo suporte infraestrutural, físico, psicológico e legal
A tragédia no Rio Grande do Sul, causada por chuvas intensas e enchentes devastadoras em decorrência da crise climática, expõe o melhor e o pior do ser humano. O melhor se manifesta na solidariedade do povo brasileiro, que tem se mobilizado com doações de instituições, celebridades, organizações e da população. Além disso, há um expressivo contingente de voluntários – pessoas, instituições e organizações de toda natureza – para salvar vidas humanas e animais, além de fornecer recursos essenciais para as vítimas. Os movimentos sociais, como sempre, têm sido essenciais neste momento de emergência.
O governo federal também tem demonstrado eficiência e agilidade ao oferecer soluções para minimizar os efeitos da tragédia e evitar que ela piore. O presidente Lula visitou áreas afetadas, acompanhou trabalhos e anunciou reforços de equipes e infraestrutura; além de um conjunto de medidas que deve injetar quase R$ 50,945 bilhões na economia do Rio Grande do Sul, buscando dar suporte ao estado que enfrenta a maior tragédia de sua história.
Enquanto essas ações solidárias e governamentais são cruciais para aliviar a crise, há um lado sombrio, “o pior”, que emerge na forma de desigualdade e violência de gênero. As mulheres e meninas já enfrentam vulnerabilidades sociais significativas em suas vidas, mas em tempos de crise, essas desigualdades são amplificadas. Simone de Beauvoir alertou: “Nunca se esqueça que basta uma crise (…) para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Essa realidade é especialmente visível diante dos relatos de abuso sexual em abrigos que acolhem vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.
Os abrigos, que deveriam ser espaços seguros para quem perdeu tudo, se tornam ambientes perigosos para mulheres e meninas, com denúncias de abuso e agressão. Quatro homens já foram presos por terem cometido abusos sexuais nos espaços de acolhimento. As vítimas, incluindo menores de idade, eram conhecidas dos agressores e tinham parentesco com eles, um ciclo de violência e vulnerabilidade que precisa ser interrompido, e não agravado.
A situação é ainda mais alarmante quando consideramos que as mulheres negras, indígenas, quilombolas, idosas, com deficiência e LBTI+ enfrentam um risco ainda maior. As desigualdades estruturais colocam esses grupos em uma posição de maior perigo, tornando a busca por soluções e proteção uma prioridade urgente. O Ministério das Mulheres já está mobilizado para apurar as denúncias que chegam e garantir a segurança das vítimas. É fundamental que os abrigos sejam espaços de proteção e cuidado, onde as mulheres possam se recuperar com dignidade. Medidas imediatas de prevenção e resposta rápida à violência de gênero estão sendo buscadas e são cruciais nesse momento.
Além da violência, outro fator alarmante da desigualdade de gênero fica evidente em momentos como o que o Rio Grande do Sul vive. A sobrecarga do cuidado também recai desproporcionalmente sobre as mulheres durante tragédias como esta. São elas que assumem um papel fundamental na organização da vida comunitária, dedicando-se ao cuidado das famílias e comunidades, o que aumenta sua carga de trabalho em situações de emergência.
Em meio a uma crise dessa magnitude, “é preciso estar atento e forte” para garantir os direitos das mulheres. A tragédia escancara a necessidade de um esforço coordenado para proteger as mais vulneráveis, oferecendo suporte infraestrutural, físico, psicológico e legal. É dever de toda a população brasileira, enquanto sociedade, assegurar que as mulheres gaúchas recebam todo o apoio necessário para superarem essa tragédia e reconstruirem suas vidas com segurança, dignidade e acolhimento.
Ana Pimentel é Deputada Federal pelo PT-MG, médica defensora do SUS, professora universitária e pesquisadora de saúde pública. Possui mestrado em Saúde Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2014) e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2018). Na Câmara dos Deputados, é vice-líder do PT e presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. É membro titular da Comissão de Saúde e de Legislação Participativa. Preside a Frente Parlamentar Mista do SUS e a Frente Parlamentar da Vacina e é coordenadora-geral da Frente Parlamentar de Enfrentamento às ISTs, HIV/AIDS e Hepatites Virais. Além disso, atua como vice-presidenta na Frente Parlamentar Mista da Educação e é uma das coordenadoras da Frente em Defesa das Universidades Públicas.