O legislativo na era da ebulição global
Temos alguns perfis de parlamentares no que diz respeito ao entendimento sobre as mudanças climáticas: os ogros, os agros e os ethos
Há pouco mais de uma década, eu ouvia pessoas dizendo sobre um tal aquecimento global e me sentia perdida sobre quais os efeitos daquilo na minha vida cotidiana, no meu ir e vir para dar aulas e na minha saúde. Eu tinha a impressão de que estava distante demais de mim. Nos últimos anos vimos biomas como Pantanal ora ardendo em chamas, ora secando. O bioma Amazônico, sempre lembrado pela abundância de águas, registrou tristes cenas de seca histórica.
No entanto, o que o clima tem a ver com as águas e o saneamento básico neste país, onde pelo menos 35 milhões de pessoas não têm acesso à água e pelo menos 14,7 milhões de estudantes enfrentam problemas de infraestrutura nas escolas, como a ausência de banheiro, água potável e rede de esgoto? Essa conjuntura desafia a atividade parlamentar para a apresentação de respostas à altura da complexidade e das expectativas da sociedade com a atividade legislativa.
De vinte anos pra cá, os tempos e os termos mudaram a partir das evidências científicas que nos alertam para a dimensão, sem precedentes, do momento crítico que vivemos com relação ao clima e às águas. O tal aquecimento global passou a ser chamado de mudanças climáticas diante do aumento da temperatura da Terra provocado pelo atual modelo de desenvolvimento. Assim, as mudanças viraram emergências. E, mais recentemente, como disse em discurso o secretário geral da ONU, António Guterrez, adentramos na era da “ebulição global”.
Diferente de alguns anos atrás, quando imaginávamos que as mudanças climáticas afetam somente ursos polares e os faziam passar fome, derretia geleiras e icebergs e fazia calotas de gelo desprender, hoje elas representam ameaças – e danos – graves para o povo brasileiro, para o mundo inteiro. Os eventos meteorológicos estão se intensificando, ano após ano, conforme apontado por estudos técnicos e científicos de instituições de pesquisa, universidades e do IPCC – o painel da ONU que reúne cientistas dedicados ao estudo do clima que nos permite dizer e repetir que somos a última geração que pode endereçar, e frear, a crise climática, apesar de já estarmos em uma situação para lá de crítica.[1]
Ou agimos para garantir um presente e um futuro digno e saudável para nós e para as futuras gerações ou sucumbiremos
Nove a cada dez brasileiros acham que sofrerão impactos das mudanças climáticas em sua vida pessoal. Esses dados são de pesquisa do DataFolha, divulgada em março de 2023 – antes das fortes chuvas no Rio Grande do Sul naquele ano e neste 2024 e da seca histórica em Manaus e região, no final de 2023. Todo esse cenário de emergência não está passando despercebido à população brasileira, o que nos leva à necessidade de agir. E já.
Certamente, a primeira coisa que devemos fazer é ter como princípio que nenhuma morte em decorrência das mudanças climáticas no Brasil é aceitável. É inadmissível e irresponsável que deixemos a população mais vulnerabilizada jogada à própria sorte. Temos condições de agir para evitar maiores tragédias e desastres.
As mudanças climáticas afetam a todas as pessoas, mas de maneiras distintas, com diferenças gritantes entre os territórios, etnia e raça, idade e gênero. Diversos estudos mostram, por exemplo, que comunidades mais pobres e periféricas sofrem mais impactos e têm menos condições de reagir, ou resistir, aos efeitos das mudanças climáticas. Vimos isso no Brasil durante a pandemia. As mudanças do clima seguem – e seguirão – o mesmo padrão: quanto mais pobre a família, maiores os danos e ameaças que ela sofrerá.
Em Belo Horizonte, minha cidade, a Análise de Vulnerabilidade às Mudanças Climáticas traz um olhar ainda mais detalhado sobre as consequências das mudanças climáticas para o município e onde elas acontecerão. Sabemos exatamente quais são as microrregiões, ou bairros, onde acontecerão os efeitos das mudanças do clima, a intensidade desses efeitos e também a projeção de como essas microrregiões estarão em 2030.
E nós sabemos quem mora nesses territórios, o tipo de moradia, a localização delas, a qualidade das ruas, se há árvores ou não, as linhas de ônibus que por ali passam, se há oferta de unidades básicas de saúde, se há rios que podem transbordar, entre outras informações importantes para cruzarmos entre si e identificarmos o que efetivamente precisa ser feito para que as pessoas daquele local tenham dignidade em suas vidas nos próximos anos, além de bem-estar e conforto térmico, por exemplo.
Ou seja, temos informações sobre o presente e uma projeção do que acontecerá no futuro próximo. Me parece fundamental que todos os municípios mineiros e brasileiros, ou conjuntos de municípios, tenham esse tipo de instrumento, para que os prefeitos, vereadores e a sociedade possam tomar decisões acertadas nas ações ligadas ao enfrentamento das mudanças do clima, a partir das particularidades de cada localidade. E para que os municípios tenham tais ferramentas, eles precisam de apoio técnico e financeiro dos governos estaduais e federal.
Outro passo importante é identificarmos, quantificarmos e qualificarmos de onde vêm as emissões dos gases de efeito estufa, por município, em especial os médios e grandes, a partir da elaboração dos inventários de gases de efeito estufa, que nada mais é que um levantamento com informações sobre quais setores são responsáveis pelas emissões (indústrias, veículos, resíduos, energia etc.). Com esses dois elementos, os inventários e os mapas de vulnerabilidade, podemos agir nas grandes frentes de combate às mudanças climáticas: a mitigação e a adaptação – a partir do que chamamos de Planos de Ação Climática (PLACs).
A mitigação diz respeito à redução das emissões dos gases de efeito estufa. Mais gente usando transportes coletivos em vez de veículos privados; a opção pela compostagem e reciclagem de resíduos como política pública e com participação dos catadores de materiais recicláveis nas políticas de gestão de resíduos; o uso de energias renováveis como a eólica e solar em equipamentos públicos e também privados, entre outras tantas outras possibilidades.
Nessas grandes frentes das mudanças climáticas, tem-se a adaptação, que é assim: já sabemos quais são as consequências das mudanças do clima, como as ondas de calor, as secas e as chuvas, que passamos em várias regiões do país, então precisamos nos adaptar a elas, visto que elas serão mais frequentes e poderão se tornar parte do nosso calendário anual. Uma medida de adaptação envolveria a disponibilidade de bebedouros públicos e o plantio de árvores em espaços públicos, para hidratar as pessoas e aumentar o conforto térmico, respectivamente. Mais estruturalmente, uma medida é investir no planejamento e na construção de prédios – ou conjuntos habitacionais – para a população de baixa renda considerando o novo contexto que vivemos, focando em apartamentos com janelas que potencializam a circulação dos ventos e o conforto térmico dos moradores. Garantir o acesso à água potável em todas as escolas do país[2] – uma vez que as temperaturas estão mais altas e garantir acesso à água reduz as possibilidades de desidratação – é urgente.
Em janeiro de 2022, tivemos chuvas fortes em Minas Gerais, fazendo o rio Paraopeba transbordar e invadir a casa das pessoas, quintais, pastos, criações, e, inclusive, em uma aldeia indígena do povo Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe. O que tinha dentro do rio Paraopeba? Metais pesados, advindos da tragédia-crime da mineradora Vale ocorrida em Brumadinho, em 2019. A consequência desse crime trabalhista e ambiental – metal no rio – junto às consequências das chuvas – enchentes e inundações – gerou prejuízos territoriais, sociais, financeiros, culturais ainda não calculados a essas comunidades.
Outra consequência já sabida: a elevação da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos, como o aumento de chuvas, por exemplo, no Brasil e no mundo, revelam a alta propensão de novos alagamentos, inundações, transbordamentos de barragens, deslizamentos de encostas dos reservatórios e a instabilidade de taludes de pilhas de rejeito e estéril da mineração. Isso porque em muitos casos, os vertedouros dessas estruturas e barragens da mineração foram calculados tendo por base valores de precipitações e chuvas que não se aplicam atualmente em razão das mudanças climáticas e da ocorrência de eventos climáticos extremos.[3]
Se conseguirmos traduzir as inúmeras oportunidades e desafios de mitigação e adaptação em políticas públicas que alterem positivamente a realidade da vida das pessoas, tornaremos as cidades mais aptas ao enfrentamento das situações climatológicas extremas que já estão presentes em nossas vidas e que virão ainda mais intensas. Ou seja, tornaremos as cidades mais resilientes[4] a tais mudanças.
Há uma terceira grande frente, a de perdas e danos, que apenas em 2013 ganhou força, com o advento do Mecanismo Internacional de Varsóvia para Perdas e Danos. Estudo Técnico do Observatório dos Desastres Naturais, da Confederação Nacional de Municípios, mostrou que desastres naturais causaram, na última década, um prejuízo estimado de R$ 401,3 bilhões em todo o Brasil. As mudanças do clima são, também, uma questão econômica na qual o povo pagará a conta se não agirmos para evitar que tais problemas sejam maiores do que já são. Segundo a ONU, cada bilhão de dólares investido em adaptação contra inundações costeiras levaria a uma redução de US$ 14 bilhões em danos econômicos. Por outro lado, investir U$$16 bilhões por ano em agricultura poderia impedir que aproximadamente 78 milhões de pessoas passassem fome ou fome crônica em razão dos impactos climáticos.
Pense, por exemplo, nas chuvas e enchentes no Rio Grande do Sul. Muitas pessoas morreram, infelizmente. Ruas, avenidas, pontes, passarelas, entre outros patrimônios públicos foram destruídos. No caso das perdas materiais, quem pagará por isso? O contribuinte, na maior parte dos casos. Você. Nós, por meio dos impostos e taxas que já pagamos. E, se essas perdas e danos se tornarem mais frequentes, os custos para mantermos as cidades habitáveis, para que possamos ir e vir, serão cada vez mais altos, onerando, certamente, o cidadão.
A ética, o agro e os ogros
Desde que assumi o mandato como deputada federal, tenho procurado agir em todas as frentes para garantir o efetivo endereçamento das mudanças climáticas. E, de lá para cá, percebo que temos alguns perfis de parlamentares, em nível federal, no que diz respeito ao entendimento sobre as mudanças climáticas: os ogros, os agros e os ethos.
Os primeiros são aqueles que negam as mudanças do clima. Para estes, elas são fruto de uma enorme conspiração global que impediria países do Sul global, como o Brasil, de se desenvolverem. Esses sujeitos negam que 90% de nós, brasileiras e brasileiros, já estamos sentindo os efeitos da crise climática. Negam a seca do Amazonas, as enchentes no Rio Grande do Sul, negam. Apenas negam. São os que chamo de Ogros. Em 1967, o poeta e escritor Charles Perrault inseriu a palavra em um dos seus contos, traduzindo o ogro como aquele homem selvagem que se alimentava das crianças. À luz do que a mitologia nos traz, os ogros, pela ignorância, destroem o futuro de milhões de crianças em todo o mundo. São seres brutos, pouco inteligentes e cruéis. Na prática, a atuação legislativa deles contribui para a ampliação do que se denomina de “ansiedade climática” ou “eco-ansiedade”, descrita pela conceituada revista American Psychological Association (APA), ou, de forma mais completa, a “ansiedade ou preocupação com as alterações climáticas e os seus efeitos”. Nos Estados Unidos, 68% dos adultos dizem sentir ansiedade climática.
Por outro lado, temos o perfil agro. Eles até reconhecem que as mudanças climáticas existem, mas se sentem tão apartados da discussão – e das suas consequências – que espalham pelo Congresso Nacional que poderiam se isolar em suas enormes propriedades sem sentir os efeitos do clima mais quente, da seca, das chuvas. Doce – ou amarga – ilusão, haja vista as secas em grandes propriedades do agro. Há também uma outra corrente do agro que nega as mudanças do clima com convicção e, para piorar, financia[5] pessoas que circulam pelo país dizendo que as mudanças do clima não existem.
Em 5 de setembro de 2023, dentro do Congresso Nacional, um sujeito, que prefiro não citar o nome, fez a seguinte afirmação: “a mídia neste ano, agora, 2023, andou pegando pesado, um alarmismo incrível, dizendo que íamos ter um super El Niño, neste ano. E na realidade só temos águas quentes e não temos o Super El Niño, de tal forma que o pessoal do Norte e Nordeste pode ficar tranquilo que não vai ter seca e, em contrapartida, o pessoal do Sul, Rio Grande do Sul, não vai ter um excesso de água, que é característica do El Niño”.
Em matéria disponível no site do Senado Federal sobre esta fala, um parlamentar afirmou: “Se isso aqui fosse um palco, eu diria que o senhor deu um show. Mas isso aqui é uma CPI do Senado Federal, então o senhor acaba de dar uma aula. Uma aula a todos nós e aos brasileiros que assistem, principalmente se contrapondo a esta hipocrisia global que existe em relação ao clima”.
A realidade não foi aquela que o sujeito informou ao Brasil todo e que foi vibrada por senadores. Em menos de vinte dias, o Rio Grande do Sul vivenciou enchentes – negadas pelo professor – que mataram mais de 49 pessoas, destruindo famílias, cidades, casas, sonhos. Pouco mais de um mês depois das falácias ditas pelo suposto cientista, o Brasil e o mundo ficaram estarrecidos com as secas históricas – negadas pelo professor – que afetaram mais de 630 mil pessoas em todo o Amazonas, em especial as populações ribeirinhas, matando botos e peixes, secando rios, deixando as crianças sem aula e com sede, pessoas sem transporte, entre outras diversas consequências que pude sentir com minha própria pele em visita que fiz à região em novembro de 2023.
Por fim, temos um último perfil, que considero a maioria do Congresso Nacional, felizmente, que são aqueles que aqui chamarei de ethos – ou ética, um grupo de parlamentares que se orienta a partir de um conjunto de valores que influenciam os seus comportamentos no Parlamento brasileiro, com vistas à garantia do bem-estar social, no campo teórico, dos nossos discursos, e também a partir de ações práticas, das leis que propusemos, da nossa atuação, que aqui chamo de moral. Entendo, então, que a dupla “ética e moral” contribui para guiar a atuação da maior parte dos parlamentares do Congresso Nacional, como princípios que moldam nossos costumes e hábitos sociais, individual e coletivamente, para que consigamos lidar da melhor maneira possível com as consequências das mudanças climáticas em nosso país.
Neste contexto, é preciso que nós, parlamentares, respondamos aos anseios da população brasileira, legislando (i) em consonância com as evidências e constatações científicas sobre esse assunto, sem ignorar a ciência; (ii) em respeito à necessidade urgente de reduzirmos emissões de gases de efeito estufa e nos adaptarmos às consequências das mudanças climáticas, ampliando legislações e os respectivos processos de fiscalização de atividades que emitem gases de efeito estufa, tal como a mineração, indústrias cimenteiras, carvoarias, entre outras; e (iii) respondendo à urgência de passarmos por um processo de transição energética para termos um novo modelo de desenvolvimento econômico, com vistas à descarbonização, efetivamente sustentável, que faça o Brasil tirar as pessoas da fome, ter empregos e, ainda, salvaguardando a sociobiodiversidade, a nossa vida e a das gerações futuras.
Duda Salabert é mãe, casada, vegana, ambientalista. Em 2018, foi a 1ª transexual a disputar o cargo de senadora. Em 2020, foi eleita a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte. Em 2022, torna-se a deputada federal mais votada da história de MG. Em sua essência, os mandatos de Duda têm a emergência climática como guarda-chuva dos demais temas, tal como acesso e direito à água, segurança hídrica, desenvolvimento urbano e rural, mobilidade urbana, resíduos sólidos, entre outros. Atualmente, Duda é membro das comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), Externa sobre Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação (CexMaBru), de Educação (CEducação), de Segurança Pública e Combate ao Crime (CSPCCO), e Mista Permanente sobre Mudanças Climáticas (CMMC), além de integrar várias Frentes, como a Frente Ambientalista, na qual coordena o GT Águas. Em setembro de 2023, Duda foi selecionada pela revista Times como uma das cem personalidades no mundo capaz de transformar a próxima geração de líderes.
[1] Pela primeira vez, a variação da temperatura média global ficou acima de 2 °C na comparação com os níveis registrados antes da Revolução Industrial (1850-1900), que é o marco temporal de quando as emissões de carbono advindas das atividades humanas começaram a subir substancialmente. A marca foi ultrapassada no dia 17 de novembro de 2023, quando a variação de temperatura ficou 2,07 °C acima da média pré-industrial. Os dados são do observatório europeu Copernicus.
[2] Ver PL 5696 de 2023.
[3] Vários são os estudos que mostram a conexão direta entre a (in)segurança das barragens e os efeitos das mudanças climáticas. Ver https://nhess.copernicus.org/articles/18/2471/2018/nhess-18-2471-2018.html e https://www.grida.no/resources/11425, por exemplo.
[4]O termo foi criado em 2010, quando a ONU lançou a campanha mundial “Construindo Cidades Resilientes”. Uma cidade resiliente é aquela que tem capacidade de resistir, absorver ou se recuperar dos efeitos de um desastre, seja ele qual for, os quais têm sido potencializados pelas mudanças climáticas. São os territórios que conseguem superar, de maneira organizada e planejada, esses desafios, evitando as perdas, sobretudo, humanas e animais, bem como evitando que os patrimônios em geral sejam destruídos.
[5] Ver https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59310009 e, mais recentemente, https://apublica.org/2023/06/agronegocio-e-extrema-direita-impulsionam-maquina-de-fake-news-sobre-aquecimento-global/.
Fiquei surpreso com o alto necessário envolvimento do assunto tão nosso, que é tratado por uma boa parte dos políticos como algo tão distante e levemente contornável caso venha a acontecer tais mudanças, mas elas já chegaram, já está em andamento e bem avançadas, e precisamos não só de alerta, mas muito mais de unir consciências politicas em buscar da tentativa( resolver embora tardiamente) mas trabalhar politicamente no objetivo de amenizar efeito dos impactos ambientais na vida em um aspeto geral)