Cinco aspectos da arte de citar
Citar é estar de tal forma na literatura que só a própria criatividade não é suficiente, deve-se buscar ferramentas criadas por diferentes autores, desconstruir pensamentos e identificar até migalhas espalhadas que ainda não haviam sido vistas.Renata Miloni
Um dos grandes prazeres ao escrever sobre literatura é o poder da citação: a possibilidade de analisar pensamentos de acordo com fragmentos em livros diversos, organizar e recriar os próprios livros que fazem possível essa forma de arte. Há os escritores que reconhecem na citação um caminho para compreender o que escrevem, que só se encontram inteiros ao citar, numa mistura de pureza e satisfação que só acontece em meio a palavras.
Isso pode se transformar no que chamo de obsessão saudável, como é o caso de Enrique Vila-Matas. E também de leitores, como eu, mas num grau ainda inicial que, sem dúvida, se agravará com a idade. Nem todos que escrevem (sejam escritores ou leitores que falam sobre literatura) conseguem atingir essa nobre forma de originalidade. É preciso, primeiramente, estar consciente da conseqüência de usar uma frase alheia, entender por que ela precisa estar num determinado ponto do texto.
II
“Os fragmentos fazem parte da estrutura de minha memória” [1]. O que motivou Vila-Matas a chegar a esta conclusão? Afinal, citações são fragmentos e deles parte o início de um texto. Meu interesse é sempre saber como o escritor chega a certos pensamentos, a trajetória de outros pedaços resultantes nessa união.
Pode fazer parte também dessa estrutura a compreensão de mundo. Vila-Matas entende, brilhantemente, o mundo através de citações: é o ápice da originalidade literária em viver para escrever ? a “mente enferma de literatura” [2], a enfermidade saudável e incurável.
III
Estará próximo o fim da literatura? Há quem já se dê por vencido? “A literatura nunca vai desaparecer?” [3], pergunta Vila-Matas. “A literatura vai para si mesma, para sua essência (…)”. Marcel Duchamp, nesta resposta, pode ter recordado singelamente as citações. Mas completa: “(…) que é o desaparecimento”.
A literatura precisa de salvação? O que exige um resgate? Os escritores que têm as citações como parte de pontos iniciais serão capazes de fazer com que algo dure tanto? “Nada pode durar tanto”, disse Juan Rulfo em Pedro Páramo.
IV
Citar não é repetir o que já foi dito, a citação faz parte até do processo de criação. De nenhuma forma citar é copiar. O escritor que cita se entrega à literatura por completo, confessa origens, assume idéias alheias. O leitor obcecado pela citação se encontra ali sempre que precisa e continua o caminho até o ponto-final.
Vila-Matas diz: “o fantasma é um dia começar a notar que me repito. Nessa altura, terei de abandonar a escrita” [4]. Quão fiel é um escritor à literatura para chegar a abandoná-la? E aqui devo lembrar a enorme diferença entre se repetir e repetir os outros. O primeiro é sinal de limites atingidos, o segundo é reconhecer os próprios limites e entender que a arte é também feita de fontes: basta não achar que se pode mais do que elas oferecem.
Citar é estar de tal forma na literatura que só a própria criatividade não é suficiente, deve-se buscar ferramentas criadas por diferentes autores, desconstruir pensamentos e identificar até migalhas espalhadas que ainda não haviam sido vistas. Citar é assumir originalmente o amor pela literatura. Citar, para alguém que vê essa continuidade essencial da escrita (como Vila-Matas), é natural. Citar não é ignorar que só se escreve depois dos outros, que não se deve fugir de tal destino para então, só assim, se encontrar original.
V
“(…) He perseguido siempre mi originalidad en la asimilación de otras máscaras, de otras voces.” [5].
O aspecto mais importante talvez seja a liberdade que um escritor pode ter sendo puro ao citar. Libertar-se de si mesmo para a literatura. Vestir-se de palavras às quais não deu origem. E a liberdade de o leitor citar como exemplo de suas opções, fazer de tal arte suas explicações. E até mesmo provocar um fim momentâneo em textos. “O que faço são viagens mentais de grande liberdade.” [