Cinema de periferia na última década: oito filmes interessantes
O audiovisual é uma ferramenta crucial de transformação das vivências dos territórios, promovendo a criação de redes de interlocução política e cultural. Esse fenômeno articula uma postura política combativa e uma expressão estética vibrante, mesmo quando inserida marginalmente em um mercado cultural ainda restrito
Analisar os processos culturais contemporâneos envolve reconhecer a efervescência cultural sem precedentes que, nas últimas duas décadas, redefiniu o papel da produção artística e cultural no Brasil, especialmente nas periferias. Nesse contexto, o audiovisual se destaca como uma ferramenta crucial de transformação das vivências dos territórios, promovendo a criação de redes de interlocução política e cultural. Esse fenômeno articula uma postura política combativa e uma expressão estética vibrante, mesmo quando inserida marginalmente em um mercado cultural ainda restrito. Assim, as tensões constantes nas dinâmicas sociais e culturais do início deste século são expostas.
Diferentemente do contexto predominante ao longo do século XX, com os meios de produção das representações nas mãos de realizadores ligados às centralidades políticas, econômicas e culturais, a partir de 2000 já podemos falar com mais contundência da produção audiovisual realizada pelo próprio sujeito popular, tensionando a “política da representação”, conceito que une a questão da representação estética com a representação política e que joga luz na dinâmica social, política e estética dos produtos culturais e nas relações entre quem e como se busca representar o povo.
As novas representações audiovisuais periféricas da última década surgem em arranjos produtivos distintos, pequenos, mas mais profissionalizados que aqueles verificados no início dos anos 2000, quando proliferam iniciativas de vídeo sobretudo ligadas a ONGs e coletivos, apoiados por políticas de fomento à diversidade cultural e à juventude. Com produções com certa estrutura de financiamento e circulação, especialmente dedicadas ao circuito de mostras e festivais, e, que somente em raras exceções alcançaram um pequeno número de salas comerciais de cinema, na década de 2010 surgem novos produtores que passam a ganhar a atenção da crítica de cinema.
No conjunto dos filmes, é possível identificar uma produção com um certo conhecimento sobre os territórios e um foco nas individualidades, na subjetividade, nas identidades e diversidades de novos corpos como protagonistas, na ficção e no documentário. Trata-se de engajar os anseios de indivíduos e grupos em uma ação, interpretação artística e política, o que implica em entender-se em parte como agentes culturais de transformação, ao menos no campo da representatividade cinematográfica.
São filmes que contam com elementos que aproximam o público às localidades, por meio de discussões estéticas, alusões às dinâmicas territoriais e culturais nesse emaranhado de visões periféricas. São filmes que trazem as marcas do período e revelam bem o cinema periférico nos últimos anos. Cada obra propõe gestos e sentimentos distintos sobre a vida social, perpassando o desprezo, incerteza, solidão, apatia e ousadia como elementos constitutivos das narrativas, buscando refletir o seu tempo histórico através do cinema e de um olhar diverso sobre as periferias.
Nesse período, ainda é possível notar a relevância das políticas públicas de regionalização e de ações afirmativas dentro e fora da cena do audiovisual. O protagonismo das pessoas negras, trans e indígenas é um fator marcante do conjunto das obras em anos recentes. As mazelas que acometem a população das periferias aparecem como parte da vida das pessoas e das histórias retratadas, mas não são necessariamente o tema em primeiro plano. A maioria das produções volta-se para histórias de vida contadas principalmente por meio de filmes de ficção, ficção cientifica, mas também de documentários, com a presença de longas-metragens, além dos curtas, sendo que parte passa a alcançar prêmios em festivais e mostras de cinema nacionais e internacionais. Nesse contexto, as mostras e festivais se tornaram janelas importantes, dando visibilidade, alcançando públicos específicos e estimulando a reverberação social dessa produção periférica de relativa baixa circulação, em janelas como a Mostra de Tiradentes, Festival Visões Periféricas e Mostra do Filme Livre, entre outros.
Desse contexto mais recente, é possível destacar um conjunto de obras de diversos estados brasileiros que evocam os territórios periféricos num esforço de compartilhar memórias, vivências e percepções locais, criando arranjos híbridos entre o chamado real e o ficcional, a partir das quais podemos discutir a possibilidade de “estéticas do cinema periférico”. Embora o cinema de periferia seja frequentemente analisado pelos seus arranjos produtivos, ainda se fala pouco sobre os seus processos criativos e arranjos de linguagem.
Ela Volta na Quinta (FIC, MG, 2014), do cineasta André Novais Oliveira, é um longa de uma das produtoras mais interessantes na realização de filmes independentes do Brasil nos últimos anos: a Filmes de Plástico, de Contagem, Minas Gerais, fundada em 2009. O filme acompanha a crise de casamento dos pais do cineasta como mote para fabular o cotidiano embrutecido. O filme usa o recurso da autoficcionalização dos personagens, reinventando o cotidiano como expressão de certa realidade, da sabedoria do povo pobre que aparece de forma potente na tela. O filme passou em mais de 30 festivais no Brasil e no exterior, ganhando mais de 15 prêmios, entre eles: Melhor Filme Nacional pelo júri oficial no X Panorama Coisa de Cinema e Melhor Filme Mostra Olhares Brasil no 4° Olhar de Cinema de Curitiba.
O perfil desse tipo de produção, de certa forma, integra um pequeno conjunto de outras produtoras e realizadores de cinema com origem na periferia e com produções sobre a periferia, que se destacaram na década como a Filmes de Plástico que também produziu Marte um (2022), indicação brasileira para o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2023. Além da Katásia Filmes, também de Contagem, que se destacou pelos filmes A Vizinhança do Tigre (2014) e Arábia (2017).
Outro longa desse período é Era uma vez Brasília (SCI-FI, DF, 2017), filme produzido pela Cinco da Norte, produtora que tem como sócio fundador o realizador Adirley Queirós, que foi um dos primeiros realizadores periféricos a alcançar espaços de destaque em grandes festivais nacionais em meados dos anos 2000 com Rap: o canto da Ceilândia (2005), tendo ampliado sua visibilidade com A cidade é uma só (2013) e depois, em 2014, com o aclamado Branco sai, preto fica, com indicações e premiações nacionais e internacionais. Morador de Ceilândia, no Distrito Federal, o cineasta propõe em Era Uma Vez Brasília apresentar um filme distópico, com uma fotografia escura que nos aprisiona em um território devastado, onde as pessoas sobrevivem de restos de coisas e empregam seu tempo em lutas e conflitos. O corpo do cineasta, os corpos dos moradores da cidade e o território como uma mesma constituição da experiência fílmica. O filme foi um dos grandes vencedores no Festival de Brasília de 2017 nas categorias de Melhor Direção, Fotografia e Som e Melhor Filme na 9ª Semana de Realizadores, também em 2017. Em 2023, Adirley Queirós apresenta Mato Seco em Chamas, em codireção com Joana Pimenta.
Já o longa de ficção Até o Fim (FIC, BA, 2020) é dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicásio, dupla mineira radicada no Recôncavo Baiano para cursar Cinema na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), que teve sua primeira turma formada em 2012. O filme conta a história de quatro mulheres negras de uma mesma família que se reencontram depois de 15 anos afastadas em algum lugar de Cachoeira, devido à iminente morte do pai. A obra busca entrelaçar a força do feminino, as suas memórias, trabalhando o humor e as dores de um passado não tão distante assim. O filme ganhou o Troféu Barroco de Melhor Filme pelo Júri Popular na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, na Mostra Foco. O longa foi produzido pela Rosza Filmes, a dupla mineira produziu mais seis longas nos últimos anos, colocando a região no circuito produtor. O arranjo produtivo da Rosza Filmes, constituído fora do eixo Rio-São Paulo e fora dos grandes centros urbanos, integrado à comunidade, por si só já caracterizaria sua atipicidade no contexto da produção audiovisual nacional recente.
Destacamos também o filme Corpos Invisíveis (DOC, RJ, 2023), longa documentário carioca da roteirista e diretora Quézia Lopes, que aborda o apagamento social dos corpos femininos negros a partir da experiência pessoal e artística de onze mulheres, que debatem identidade, memória coletiva, ancestralidade, afetividades e maternidade. A partir de entrevistas e performances, afirmam-se como corpos políticos que visibilizam suas muitas formas de ser, existir e resistir, ao passo que respondem à pergunta: o que é ser mulher negra no Brasil? O filme fez sua estreia no prestigiado 25º Festival do Rio (2023).
Outro filme que vale o olhar é o curta de ficção Perifericu (FIC, SP, 2019), de Nay Mendl, Vita Pereira, Rosa Caldeira e Stheffany Fernanda, produzido na cidade de São Paulo pela Maloka Filmes. O coletivo é formado por jovens LGBTQIA+ com atuação no extremo sul da cidade, que se propõe a agir no território por meio do audiovisual feito de modo coletivo. O curta se debruça sobre as adversidades de ser jovem, negro e queer na periferia de São Paulo. Perifericu também colecionou prêmios, entre eles na Mostra de Tiradentes, Festival Internacional de Curtas de São Paulo e o Festival Mix Brasil, esse voltado para o segmento LGBTQIA+.
O curta Nunca pensei que seria assim (DOC, MG, 2022), filme mineiro da atriz, performance e diretora Meibe Rodrigues, aborda a relação de afeto entre ela e o seu pai, e a importância da subjetividade negra: os sonhos, os sentimentos, as vontades e os desejos. O filme acerta em buscar a beleza e contradição desse dia a dia, mostrando espontaneidade, dificuldades, trocas e as dimensões complexas da realidade que o espaço íntimo de cada personagem produz na sua relação com os outros, com o mundo. O curta passou por algumas mostras e festivais, ganhando os prêmios de Melhor Filme na Competitiva Minas no 25º Fest Curtas BH (2023) e Melhor Filme no 22º Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades (2023).
Já a obra de ficção infantil Os Guerreiros da Rua 2 – A missão (FIC, INFANTIL, PE, 2023), de Erickson Marinho, jovem cineasta de Pernambuco, propõe um olhar sensível sobre as crianças negras, mirando a autoestima e uma imagem de protagonismo nesta faixa etária. Rodado em Recife, o filme acompanha três amigos que inventam suas próprias aventuras pelas ruas da periferia da cidade. Em um curta que mistura desenhos e live action, as ideias ganham vida e estimulam a imaginação dos pequenos. O filme está fazendo um belo percurso por mostras e festivais nacionais e internacionais.
Olha-se também para o curta de ficção Engole o Choro (FIC, SP, 2023), de Fabio Rodrigo, que acompanha o adolescente Anderson e suas peripécias na busca de um amadurecimento, sua relação conflituosa com o pai, as marcas do passado recente e da dureza do presente em torno das masculinidades negras. Fabio Rodrigo é um cineasta nascido e criado na periferia da Vila Ede, bairro do distrito de Vila Medeiros, na zona norte da cidade de São Paulo. No bairro, filmou os seus três primeiros curtas: Lúcida (2016), Kairo (2018) e Entre nós e o mundo (2019). Dirigiu também o Contando aviões (2022), em coprodução da Ira Negra Filmes, que fundou em 2021, com o Kinoférico, um coletivo de produção e atividades formativas audiovisuais, formado em 2015 no Bairro dos Pimentas, periferia de Guarulhos. Mora atualmente em Itaquaquecetuba, no leste da Região Metropolitana de São Paulo, onde realizou o Engole o choro.

Créditos: Divulgação
Existir no mundo e existir nas telas, esse dilema é um fator primeiro nas narrativas audiovisuais das periferias na última década. Notamos que esse cinema deixa de se constituir a partir de certa licença para a participação de pessoas oriundas dos baixos estratos da sociedade nas representações que figuravam como ponte para tratar de estrutura sociais problemáticas – a pobreza, a violência e o tráfico de drogas, tônicas marcantes de diversos filmes do cinema brasileiro dos anos 2000, sendo Cidade de Deus (2002) sua maior expressão.
Em 2010, surgem longas-metragens de baixo orçamento e curtas-metragens que ganham atenção da crítica, em pequenas produtoras independentes organizadas por realizadores e realizadoras que se identificam a uma origem “periférica”, seja das cidades, seja das centralidades simbólicas do país, que passam a viabilizar um jeito próprio de narrar o cotidiano de pessoas comuns. É o caso de filmes voltados para as margens e a poética do cotidiano, a singularidade dos sujeitos e a vida comum, mas também as lutas e fabulações destes sujeitos.
O contexto de expansão e ampliação do acesso ao ensino superior, expansão e dinamização do mercado audiovisual e das políticas públicas de financiamento deste, bem como essa demanda por representatividade já presente em filmes da década anterior, conformou um novo cenário para o surgimento de uma produção agora mais propriamente cinematográfica realizada por produtores das periferias.
Em alguns desses filmes, o recurso da autoficcionalização dos personagens passa a render narrativas expressivas. Amigos, parentes e vizinhos interpretam a si ou a personagens que poderiam ter conhecido, como, por exemplo, em Ela Volta na Quinta. Reinventam o cotidiano como expressão de certa realidade, da sabedoria do povo que aparece de forma potente. Esse audiovisual é aquele feito pelos próprios moradores e não mais pelo cineasta “outro de classe”.
É a periferia como precariedade e, ao mesmo tempo, inventividade, elementos presentes nos arranjos criativos de diversas produções que integram esse conjunto de filmes. Não é apenas “nossa realidade representada por nós mesmos”, como no icônico 5X favela – agora por nós mesmos, em que o produtor Cacá Diegues articula jovens produtores culturais locais para fazer sua versão do clássico do Cinema Novo. Porque dentro do “nós” passa a caber mais particularidade, diferença e autonomia. As novas produções querem ter protagonismo e mostrar que há uma complexidade para além das categorias sociais que foram identificadas e abordadas em muitos filmes na primeira década dos anos 2000 que, em reação ao que vinha de fora, impunha um enquadramento próprio às potencialidades narrativas das periferias.
O agrupamento de filmes realizados a partir da década de 2010, possui algumas outras características comuns. Em primeiro lugar, os realizadores e realizadoras têm formação em áreas ligadas ao audiovisual (principalmente formação superior). Todos os filmes foram contemplados em editais públicos de nível federal, estadual ou municipal, o que os torna diversos por si só pelas exigências de institucionalização diversas. São produções independentes, de pequenas produtoras voltadas para a realização de projetos cinematográficos autorais.
Os realizadores parecem buscar, na interação e intervenção cultural, uma estratégia de ação social e, ao mesmo tempo, um meio para se mover no cenário cultural, com práticas que afetam os contextos domésticos e as formas de sociabilidade, a relação com instituições e oportunidades externas, mas também discussões coletivas, em comunidades territoriais, circuitos urbanos diversos e o debate social mais amplo. Empreendem assim um cinema, com um alto grau estético, que abriga as tensões e as disputas culturais em jogo, as contradições e ambivalências dessa dinâmica. Os temas são evidentes, mas a ideia de um cinema de periferia ganha força ao se considerar os processos criativos e estéticos que diferem completamente dos do início dos anos 2000.
Wilq Vicente é pesquisador, curador e realizador. Doutor (UFABC) e mestre (USP). É organizador dos livros “Quebrada? Cinema, vídeo e lutas sociais” (2014) e “Jorge Furtado: Tudo isso aconteceu, mais ou menos” (2024) ambos pela coleção CINUSP.