O documentário e além
A jornalista e documentarista Flávia Guerra abre esta série especial com um panorama ampliado da produção de novos ou consagrados formatos documentais que tematizam questões socioambientais, como o cinema direto. Um verdadeiro giro pela Terra a partir de produções, festivais e mostras dos quais ela tem participado ou feito cobertura para canais de rádio e TV
“Que soluções o filme aponta?” A pergunta, inesperada, mas oportuna, abriu caminho para uma análise mais profunda sobre as respostas que o cinema dedicado aos temas socioambientais deve ou não dar. O questionamento foi feito por alguém do público que acompanhava o webinário que reunia diversos profissionais do audiovisual brasileiro para debater o “papel no cinema na comunicação das questões ambientais”, em junho, durante a edição especial da Mostra Ecofalante para celebrar a Semana do Meio Ambiente. Direcionada ao cineasta Jorge Bodanzky, referência quando o assunto são filmes que retratam as questões da Amazônia, a pergunta questionava as soluções que seu novo e ainda inédito documentário, Minamata, traria para o problema da contaminação com mercúrio na região.
Bodanzky, com a experiência e sabedoria de quem tem dezenas de filmes e milhares de dias lidando e filmando os problemas ligados ao meio ambiente e aos povos da floresta (sejam eles ribeirinhos ou indígenas), respondeu: “Se um filme suscitar perguntas já acho que é um gol. Se a pessoa sai se perguntado, o sucesso de um filme é isso.”
De fato. É isso! A medida do sucesso do cinema que trata da temática ambiental é, antes de tudo, ser capaz de tocar corações e mentes, suscitar questionamentos e, sendo otimista, instigar ações e mudanças de hábito. Talvez por urgência, talvez por questões de orçamento (uma vez que o formato costuma ser mais enxuto), ou pelo olhar vivo dos seus realizadores, o cinema atento às questões socioambientais é, em sua maioria, o documental. Partindo disso e da experiência da Ecofalante 2020, caminhamos, aqui neste artigo, pela trilha que o documentário contemporâneo tem traçado ao percorrer os caminhos do planeta.
Rebobinando de volta a junho, o webinário citado no início reuniu também os cineastas Fernando Meirelles, Vincent Carelli, Stella Renner e Stevão Ciavatta em torno deste grande debate organizado pela Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, como uma prévia online do evento a ser realizado presencialmente meses depois. Junho é a data tradicional em que a mostra é realizada, mas a edição presencial teve de ser adiada por conta da pandemia do novo coronavírus. Naquele mês, ainda se acreditava que a pandemia teria arrefecido no início do segundo semestre deste ano desafiador, para dizer o mínimo.
Com mediação desta que vos escreve, a conversa dava a largada de um longo percurso a ser feito por vias que se entrelaçam quando se discutem os temas essenciais para a vida na Terra. Desde então, a pandemia não deu trégua, o Pantanal queimou e, mais do que nunca, nossas florestas, mangues, restingas e dunas, para citar somente alguns temas mais urgentes, estão ameaçados. Mas a Ecofalante seguiu e, entre agosto e setembro, uma grande jornada de exibições de filmes, debates e entrevistas tomou a programação da 9ª Mostra, aí sim, a oficial, em versão online, adaptada aos tempos pandêmicos.
Foram semanas de programação gratuita, 98 filmes de 24 países, 14 debates, duas masterclasses e dez entrevistas com diretores e diretoras do Panorama Internacional Contemporâneo, que foram veiculadas no canal do Youtube da Mostra.
Recebi a incumbência de realizar essas entrevistas. Foram horas e mais horas de diálogo e aprendizado com cineastas das mais variadas vertentes autorais, cinematográficas, temáticas e estilísticas. Mas um denominador era comum: precisamos pensar e repensar a forma como vivemos. Do trabalho à tecnologia, do controle do tempo à preservação de áreas naturais, dos desastres ecológicos ao ativismo e à economia, é preciso repensar. Meio ambiente é muito mais que as questões da floresta. Mas a floresta é, de uma forma ou de outra, afetada por todos os elos da cadeia que o homem construiu para viver na Terra. E o audiovisual, como já é sabido, é ferramenta hoje estratégica, quiçá essencial, para se tratar desses temas.
Muito por isso, o Panorama Internacional dividiu os filmes selecionados, a maioria inédita no Brasil, em sete eixos: Ativismo, Consumo, Economia, Emergência Climática, Povos & Lugares, Tecnologia e Trabalho. Seguindo essas rotas, os diretores e diretoras que ouvimos percorreram os mais prestigiados festivais do mundo, tais como Cannes, Sundance, Locarno, Berlim, Leipzig, Roterdã, IDFA – Amsterdã. E percorreram também o mundo em busca, não de soluções, mas de questionamentos, posicionamento e inspiração.
Ser testemunha
Além do poder de mobilizar e suscitar debate, o cinema socioambiental tem a capacidade de criar e exercitar linguagem. Se o senso comum diz que filmes que tratam da questão são calcados na combinação clássica de talking heads, imagens de cobertura, e não trazem muita experimentação, títulos como Amazônia Sociedade Anônima, de Stevão Ciavatta, Botando pra quebrar (Blow it to Bits), de Lech Kowalski, que integrou a seleção da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2019, Patrimônio e Vulcão de Lama passam longe de fórmulas prontas.
Seguindo a lógica do cinema direto, estes filmes nos fazem ser testemunhas das jornadas de seus personagens, com sua câmera atenta que observa a ação em tempo real e não oferece lições didáticas.
Famoso por seus documentários sobre o universo punk e musical, Kowaski, americano de origem polonesa, sempre direcionou sua câmera para os que não se adequam ao sistema. Ele, que assina sucessos como D.O.A., sobre o Sex Pistols, Born to Lose, sobre Johnny Thunders, e Story of a Junkie, também tem construído uma sólida filmografia em torno de histórias de trabalhadores. Em Botando pra quebrar, ele decidiu partir para a pequena La Souterraine, no interior da França, e documentar a luta de 277 operários de uma indústria de autopeças (a GM&S) que, após serem informados que a fábrica onde trabalharam a vida toda fecharia sem grandes explicações, decidem iniciar um movimento e ameaçam explodir tudo caso a situação não seja revertida. Entre protestos, revolta, assembleias, conflitos com a polícia e até mesmo a visita do presidente Emmanuel Macron, a experiência de estar lado a lado dos operários nos faz questionar muito mais que qualquer manchete de jornal.
A câmera de Kowalski é testemunha da jornada dos trabalhadores não em defesa somente de seus empregos, mas de um modo de vida, de valores e de relações que se desfazem diante de uma lógica neoliberal e global que não apenas consome o tempo de trabalho, mas também apresenta um modelo de mundo que exaure os recursos humanos e naturais do planeta.
Quando indagado sobre a escolha pelo cinema direto, Kowalski observou que a mensagem deve sempre encontrar a estética. “Se os dois não funcionam, não serve… É como a música. E talvez seja verdade com o cinema”, comentou ele, que não define Botando pra Quebrar como documentário. “Se as pessoas pensam em documentário, elas pensam em algo como na TV. Acho que é mais sobre entrar numa realidade. Este filme é como o neorrealismo italiano. E o trabalho de câmera também é forte. É sobre levar as pessoas em uma jornada comigo. Neste filme tentei não dizer para as pessoas o que achar.”
Mais uma vez, não é o cinema quem nos diz o que pensar, mas nos dá as ferramentas para questionar. Não por acaso, ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Não a de ouro oficial, mas a talhada em aço feita por um dos operários e entregue pelos trabalhadores presentes à sessão. “Foi o prêmio mais importante que já ganhei.”
“Estamos todos conectados”
Se ativismo e meio ambiente caminham lado a lado, Vulcão de Lama, das premiadas Cynthia Wade e Sasha Friedlander, nos apresenta a história de Dian, uma adolescente indonésia em busca por justiça. Em 2006, ela ainda era criança quando um tsunami de lama em ebulição soterrou uma imensa área residencial e industrial em Java Oriental. Além de sua família, outras 60 mil pessoas perderam suas casas, e dezenas de mortes foram causadas pelo acidente. Os sobreviventes contavam com a punição dos responsáveis e com uma indenização. No entanto, os moradores dos dezesseis vilarejos que desaparecerem do mapa foram esquecidos pela Justiça, pois a empresa (a gigante mineradora Lapindo) foi considerada inocente. O motivo: tratava-se, a priori, de um acidente natural provocado por um terremoto a 250 km de distância do local. Mas o real motivo da perfuração acidental de um vulcão de lama, provocada pela atividade de fracking (a extração do gás de xisto), foi a negligência de empresa.

Em meio a tudo isso, a população decidiu lutar e Dian se torna uma força importante de resistência.
Para nos fazer entender essa saga, Cynthia e Sasha passaram cinco anos viajando entre Estados Unidos e Indonésia, em um exercício de produção, direção, mas, acima de tudo, observação do desenrolar dos fatos tanto públicos quanto privados. Vemos Dian acordar ao lado de sua mãe e irmã, a acompanhamos nos estudos, nos protestos, no seu amadurecimento como líder e, finalmente, na sua chegada à universidade. Não há entrevistas, não há o tal do “programa de TV” apontado por Kowalski. Há a câmera, mais uma vez silenciosa e observadora, que nos faz compartilhar a intimidade, as dores e as conquistas de Dian. Com ela, questionamos o poder vigente, percorremos a história recente de seu complexo país, o significado de democracia e sua relação com o meio ambiente, e com ela tentamos encontrar as perguntas certas para, quem sabe, alguma solução futura.
A vida de uma adolescente que faz sua jornada do herói (ou melhor, da heroína) em um documentário que adota estilo narrativo da ficção para engajar seu público não diz respeito só aos indonésios. Dian parte de sua aldeia para o mundo. E sua história, particularmente para brasileiros, ecoa em Brumadinho e Mariana. “Às vezes investidores me perguntam porque devíamos nos preocupar (com questões ambientais na Indonésia). Estamos nos Estados Unidos. E, claro, estamos todos conectados”, defendeu Cynthia. “É tudo sobre corporações e sua influência sobre as instituições democráticas. E se há dinheiro envolvido e se há esta mistura espólios e lucro corporativo, se há gente enchendo os próprios bolsos e os bolsos da família por trás do verniz da democracia, se isso acontece, qual o impacto para o povo? Então é totalmente relevante para os Estados Unidos, para o Brasil, para a Indonésia. Se a pandemia nos ensinou algo, nos lembrou, é que estamos todos conectados”, analisou a diretora, que, não por acaso, recebeu o Oscar de melhor curta documentário em 2008 por Freeheld (que ganhou versão na ficção em 2015 – Amor por Direito – estrelada por Julianne Moore e Ellen Page).
Sobre a importância do cinema para o tema socioambiental, ela observou: “Livros e filmes e podcasts hoje têm grande importância para ajudar as pessoas a entender temas complexos do mundo, e são também testemunhas da história”.
O real patrimônio
As premiadas documentaristas Lisa F. Jackson e Sarah Teale também foram testemunhas da luta do povo da pequena Todos los Santos, na costa pacífica do México, para defender não somente seu modo de vida, mas principalmente a área de restinga e mangue que garante sua subsistência há séculos, além da água que abastece a região. O equilíbrio tênue, mas milenar, entre o homem e a natureza local passou a ser ameaçado quando Três Santos, um mega empreendimento imobiliário que lhe tiraria até mesmo o acesso à praia, passou a ser construído na região.
Ao se tornarem também moradoras locais e viverem a dinâmica do povoado, Lisa e Sarah decidiram registrar o movimento dos moradores para impedir que a obra de Três Santos avançasse. É Lisa quem filma por meses os encontros, passeatas e até a prisão dos que se impõem contra a lógica mercadológica e o tráfico de influência entre poder público e privado, que trabalham para transformar a costa mexicana em um grande condomínio. Acostumadas a lidar com temas e realidades violentas, as diretoras e produtoras temeram por sua segurança, pois Lisa chegou a ser ameaçada e “incentivada” a parar o projeto. Mas para ela, que já recebeu prêmios em festivais como Sundance, indicações ao Emmy, o prêmio mais importante da TV norte-americana, e já teve filmes que ajudaram a mudar leis, era preciso continuar.
A narrativa também direta e urgente de Patrimônio, sem grandes criações de linguagem mas com profundo senso de urgência, encontrou em um jovem advogado local, John Moreno, o herói que ajuda a construir a narrativa da luta por justiça. “John não queria nunca ser visto como herói, pois a luta é coletiva”, comentou Lisa, que sempre fez uso do cinema documental para tratar de questões de justiça. Com O Grande Silêncio – Estupro no Congo (2007), ela contou a história das sobreviventes de violência sexual durante a guerra que assolou o país na década de 1990.
Por fim, indagadas sobre a capacidade do cinema para narrar histórias socioambientais e mobilizar o público, elas citam o poder inspirador de Patrimônio sobre outras comunidades da costa mexicana que, ao verem na tela a vitória de seus conterrâneos sobre um oponente bilionário, sentiram-se impelidas a defender também seu real patrimônio e a se organizar em movimentos civis para preservar o meio ambiente, sua história, seu lugar e seu modo de vida.
Ao testemunhar as lutas de pequenos-grandes heróis e heroínas, não só sentimos empatia mas também compreendemos, mesmo sem explicações, entrevistas e conteúdo informativo (tão, como observou Kowalski, associado ao documentário), que é impossível tratar de meio ambiente sem tratar de cultura, sociedade, mercado, justiça, economia, política… O poder da ação, da mobilização e da luta por justiça social e/ou trabalhista se conectam ao meio em que vivemos. E vice-versa.
Cinema como ato político
É Kowalski quem afirma categoricamente que hoje a questão não está mais somente entre “esquerda e direita”. “Estamos em outra trajetória. Não é esquerda e direita mais. Mas sim honrar as realidades ecológicas.” E, somado a isso, acrescenta, é questão de valorizar a ciência: “Eu realmente acredito na Ciência e na Ecologia. Se a gente puder voltar a isso… Ciência também se tornou algo politizado. Não quero falar de política do jeito antigo, porque não significa nada.”.
Se o cinema é político, se existir é um ato político, a questão do meio ambiente também o é. Voltemos a Jorge Bodanzky. Ele, que há décadas tem retratado a Amazônia e seus povos, também afirmou, no webnário que abre este texto, que a questão da Amazônia é, antes de tudo, política. “Meus filmes têm um viés político muito forte. Eu sempre me interessei pela política. Todos meus filmes se basearam numa questão política, a questão ambiental veio a reboque. Isso vale pra tudo”, disse o diretor do clássico Iracema – Uma Transa Amazônica (codirigido por Orlando Senna), que, por meio da viagem do caminhoneiro Tião (Paulo César Pereio) pelo Pará e de sua relação com a indígena Iracema (Edna de Cássia), retrata as mazelas e o contraste entre a Amazônia real e a vendida nas propagandas do Regime Militar nos anos 1970. O filme contou com verba de um órgão oficial alemão para sua realização. “Na Alemanha, Iracema foi exibido em escolas. No Brasil este filme nunca passou em escola nenhuma que eu tenha conhecimento”, comentou ele, que foi por muito tempo correspondente de TVs estrangeiras no Brasil.

“A Transamazônica já era uma questão política. A questão ecológica não é à parte da política”, reforçou Bodanzky, que há mais de cinqueta anos viaja sistematicamente para a região amazônica, realizando diferentes projetos (tanto pessoais quanto os para a mídia internacional). Ele pontua que os problemas não mudaram ao longo das décadas. “Eu observo que neste período todos os problemas, sem exceção, só aumentam. […] Que política é essa que a gente tem? São sempre projetos absurdos jogados de fora para dentro, impostos para a Amazônia sem levar em consideração a população que vive lá. A população recebe isso na cabeça e tem de se virar. Seja índio, ribeirinho ou mesmo as cidades. Veja Belo Monte. Começou desde o projeto da Ford, a Fordlândia. Todos esses projetos são imensos fracassos, sem exceção. A gente não aprende nada. A Amazônia tem de ser tratada com coisas pequenas.”
O futuro passa pelo cinema indígena
É neste ponto que o VNA (Vídeo nas Aldeias), projeto pioneiro criado por Vincent Carelli em 1986, realizou uma revolução lenta e silenciosa, mas duradoura e essencial. Ao longo de mais de três décadas, o VNA capacitou indígenas de todo o Brasil a produzir conteúdo audiovisual e a fazer de seus filmes instrumentos potentes na luta por sua identidade, sua cultura, sua terra e seu patrimônio. Hoje, o acervo do VNA possui mais de setenta filmes, muitos premiados em festivais no Brasil e no exterior e a rede de cineastas indígenas brasileiros, que filmam também independentemente, cresce e sua produção amadurece.
“O trabalho do Vincent (Carelli) é um exemplo disso. Vinte anos de aldeia em aldeia foi semeando. Hoje os índios têm o domínio da sua autoimagem. Não precisam mais do branco para filmar. Acho isso fantástico, sempre sonhei com isso. Poder dar a câmera para os índios e eles fazerem seus filmes. Não é a gente, sempre a visão de fora para dentro, e não a visão de dentro para fora. Este processo está começando a acontecer agora”, diz Bodanzky, resumindo, talvez, a questão crucial do cinema socioambiental. Este passa, necessariamente, pelo cinema indígena.
Por isso, é inspirador acompanhar a obra de realizadoras como Patrícia Ferreira Pará Yxapy, indígena da etnia Mbyá-Guarani, aluna do Vídeo nas Aldeias, que neste ano integrou o Festival de Berlim, na seção Forum Expanded com a exposição Carta de uma Mulher Guarani em Busca de uma Terra sem Mal. Com curadoria da cineasta Anna Azevedo, a exposição reúne diversas criações e faz parte de um projeto realizado em parceria com os artistas Ana Carvalho e Fernando Ancil e o cineasta indígena Ariel Duarte Ortega. Durante a Berlinale, Patrícia ainda representou o cinema brasileiro num encontro de lideranças femininas do cinema de todo o mundo ao lado da também cineasta indígena Graciela Guarani.
A trajetória de Patrícia e a do VNA “foi fruto de muita luta, porque não é fácil para as mulheres. Patrícia é incrível. A primeira geração que a gente formou passou a formar outra geração e assim por diante. A visibilidade que os filmes deles ganharam também atraiu muitos jovens cineastas para ir colaborar. Ouço notícias de gente filmando com gente que não conheço. O cinema abriu o mundo para eles. Eles não só multiplicaram conhecimento como hoje têm outros projetos”, contou Carelli. Entre tantos trabalhos essenciais na história do documentário brasileiro, o cineasta, antropólogo e indigenista dirigiu Corumbiara (2009) e Martírio, um épico codirigido por Ernesto de Carvalho e Tatiana Soares de Almeida, que retrata a luta histórica de resistência dos guarani-kaiowá no Brasil.
Para Patrícia, integrar a Berlinale não era um fim, mas sim parte de um todo maior. “Nosso trabalho é de resistência do povo guarani. Estamos aqui também para mostrar para o povo brasileiro, que muitos poucos valorizam a nossa existência, este trabalho”, declarou ela, que criou o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema (ou Coletivo de Cinema Guarani).
Abrigada na conceituada SAVVY Contemporary, Carta de uma Jovem Guarani traz várias partes, além de um filme, “um trabalho que mostra a importância da caminhada que o povo guarani faz no território chamado América e a importância que a gente tem na formação sociocultural desta América. E é também sobre como a gente resiste a essa opressão horrível”, explicou Patrícia. “É muito importante para nós, principalmente mulheres, que estamos em luta desde 1500, mostrar este trabalho importante neste lugar tão importante. Principalmente para os não indígenas. Estou aqui, estou feliz, mas é uma forma de luta, de ocupar um espaço tão importante por meio da exposição”, completou ela, que mora na Aldeia Ko’enju, em São Miguel das Missões (RS).
Neste ano, ela também recebe homenagem no Cabíria Festival – Mulheres e Audiovisual, dedicado à celebração do protagonismo de mulheres e da diversidade à frente e atrás das câmeras, que ocorre de 18 a 29 de novembro. Parte do trabalho coletivo de Carta de uma Mulher Guarani em Busca de uma Terra sem Mal, o filme Teko Haxy, dirigido por Patrícia, integra a programação do festival.
Teko Haxy – Ser Imperfeita, codirigido por Sophia Pinheiro, nos coloca diante do encontro entre duas mulheres que se filmam. Com linguagem intimista, traz a relação entre Patrícia e Sophia, entre os olhares que se encontram e também desencontram, da cineasta indígena e da artista visual e antropóloga não indígena. Do atrito, surge a noção de que somos imperfeitos, surge também a espiritualidade e a consciência de que são muito diferentes e também iguais, cada uma com suas imagens e existências.

Invertendo o eixo
É a troca e a resistência que move o trabalho de Patrícia. “A exposição foi um trabalho em conjunto, coisa que sempre valorizamos, sempre trabalhamos juntos, indígenas e também não indígenas. É importante. E foi composto pela exposição de várias obras, as fotos e os vídeos, que mostram nossa caminhada”, explicou ela, que é premiada em diversos festivais nacionais e internacionais com diversos outros trabalhos.
Para ela, crucial é que os trabalhos criados não só pelo povo guarani mas também por outros povos ganhem espaço. “E entrem no Brasil com este formato, com uma exposição, para que o povo brasileiro conheça um pouco mais de cada povo. Existem vários povos indígenas. Não é só um, mas vejo que os indígenas, para os brasileiros, estão em um saco só. A gente precisa educar muito os brasileiros. Em geral, para os brasileiros, quando se fala de índios é um povo só”, declarou a cineasta, deixando claro que a difusão e a circulação do cinema indígena ainda é uma grande questão.
“Existe uma produção grande, nosso coletivo guarani já produziu mais de sete filmes. Mas falta essa circulação para que as pessoas comecem a pensar em quem está produzindo. Cada povo está fazendo seus filmes com o seu olhar. Estamos cansados de ver as pessoas entrarem nas comunidades, nas aldeias, para produzir um filme sobre os índios. Mas, por mais que sejam com boa intenção, muitas vezes estão produzindo algum tipo de preconceito a mais. Precisamos de mais espaço no Brasil, principalmente, para mostrar o que é produzido pelos povos originários.”
A evolução não só do documentário e/ou do cinema socioambiental, mas do cinema em si, é a inversão de eixo da câmera e das narrativas. O futuro do cinema é feminino, é indígena e é também jovem.
O futuro é jovem
É por isso que o novo projeto do diretor de Cidade de Deus mira o público jovem. “Nos últimos anos, minha atenção com preservação começou a migrar para o clima. A gente está indo numa rota, vamos cair num buraco. Agora é saber o tamanho do buraco. O panorama para frente, se você olhar, é muito feio. Mas está todo mundo vivendo. A gente não sabe o tamanho do buraco. Está todo mundo vivendo como se isso não existisse”, comentou, no webnário, Fernando Meirelles, que é produtor executivo de A Grande Muralha Verde (de Jared P. Scott, vencedor do Prêmio do Público de Melhor Doc Internacional na Mostra de Cinema de SP 2019).
Após anos de envolvimento com ações em torno das questões ambientais que o levaram até A Grande Muralha Verde, Meirelles passou a se preocupar com a mudança climática. Há quase quatro anos o cineasta tentava viabilizar justamente uma série sobre clima. Até que percebeu que o protagonismo devia ser dos jovens. “O que acabou é que esta série virou um teen movie, para adolescentes. A gente (os mais velhos) entende, mas não muda a vida. Acho que são os jovens que vão poder salvar. É um filme para adolescentes. Os adultos são os vilões. Nigéria, Mali, Bangladesh, Sibéria, Miami, Brasil, várias histórias que se combinam”, contou ele sobre a obra, que está sendo escrita em parceria com Bráulio Mantovani, que assina o roteiro de Cidade de Deus.

E ao olhar os números da Ecofalante, a certeza que os jovens almejados por Meirelles estão atentos e fortes. Foram quase 200 mil espectadores em 1.781 cidades do Brasil, com público em sua maioria de 18 a 34 anos (56% do total). Das dezenas de debates realizados, dos quais participaram quase 8 mil pessoas, incluindo o público em geral e centenas de estudantes de universidades como Ufscar, UnB, Unicamp, Unesp, USP, entre outras, sem contar os cursos de extensão, a certeza é que é pelos jovens que o cinema e o futuro será construído.
A força da difusão
Para dialogar com o jovem espectador é preciso chegar nesse público. Nesse ponto, a difusão e o acesso entram em cena. Se Iracema – uma Transa Amazônica foi distribuído em escolas da Alemanha, no Brasil a realidade é outra. Carelli contou que foram feitas 5 mil cópias em DVDs de Martírio, que foram também distribuídos em escolas do País, mas que, como observou o cineasta, “hoje estão talvez fora de circulação, mas o streaming está aí”.
É hora de ganhar cada vez mais espaço com os temas e os filmes socioambientais e, principalmente, o cinema produzido pelos cineastas indígenas brasileiros. “Estou muito preocupado agora com a devolução do acervo. O princípio motor do VNA foi devolver a imagem. Digitalizar tudo, catalogar e visibilizar”, comentou o cineasta, que pretende dar acesso ao acervo que detém a memória de mais de 30 anos de produção. Para ele, além do público em geral, o maior interessado nesse acervo é o próprio povo indígena. “Penso em digitalizar isso para encerrar um pouco a história do Vídeo nas Aldeias. E botar também em questão a devolução dos museus, das coisas importantes, para os povos. No nosso caso, filmamos tudo isso a partir de um pacto. Fizemos isso juntos; é importante que eles discutam sobre o protocolo de uso”, afirmou Carelli.
Se o sentido de devolução do patrimônio da imagem dos povos indígenas que colaboraram para o Vídeo nas Aldeias, a preocupação de Carelli, é essencial, no sentido de difusão (e, por que não?, educação), para o espectador das grandes cidades o streaming hoje é ferramenta estratégica. Não somente plataformas de streaming, mas festivais que exibem e debatem as tantas questões aqui já abordadas. Plataformas que democratizam o acesso aos filmes, como a VideoCamp (criada por Stella Renner e por uma equipe atenta aos temas da sociedade contemporânea), a Mostra Ecofalante, Amazônia Doc, Ecocine, FICA, além dos festivais tradicionais de cinema no Brasil e no mundo, firmam-se como hubs essenciais de exibição de filmes e discussão de ideias.
“Acho que festivais como Ecofalante são realmente importantes no movimento mundial de pessoas que não querem só ouvir porcaria, é gente interessada que quer mudança. Vocês estão convidando pessoas inspiradoras para falar dos assuntos. Claro que no filme há histórias tristes, mas ver os filmes, conversar com os amigos sobre estas histórias. é quando algo acontece. Vocês fazem diferença nas vidas das pessoas”, afirmou Fredrik Gertten, de Push – Ordem de Despejo, que acompanha também a heroína Leilani Farha em sua jornada para entender por que as cidades estão se tornando cada vez mais caras, seus moradores sendo expulsos de seus antigos bairros e os imóveis têm cada vez mais donos que não possuem nomes ou rostos, mas são fundos imobiliários.
Fórmula do futuro
Dito isso, como já apontado por Patrícia Ferreira, o futuro do cinema, seja ele encaixado na categoria socioambiental, indígena ou não indígena, passa essencialmente pela democratização do acesso. E talvez esse futuro seja construído com a fórmula que equilibra acesso, engajamento do jovem (espectadores ou realizadores) e a inversão do eixo da câmera com o cinema indígena (principalmente no caso do Brasil e toda América Latina).
Mais que denúncias, ainda se trata do milenar exercício de se contar histórias. O cinema que mira os temas socioambientais hoje ainda se firma nas fundações do cinema documental, mas cada vez mais faz uso das estratégias narrativas da ficção para encontrar seus heróis e suas jornadas, personagens reais capazes de lutar por suas utopias e seu patrimônio.
Por isso, é que Patrícia empunha sua câmera, que Dian é quem nos conduz em Vulcão de Lama e que o jovem John de Patrimônio se tornou, sem querer, herói de seu vilarejo. É possível lutar pela transformação da sociedade e pela preservação do mundo. A trama da narrativa do futuro é formada pelas conexões entre quem luta, quem filma e quem divulga e propaga as histórias. Estas, sim, mudam pessoas. E pessoas, como diria Paulo Freire, mudam o mundo.
E se, ao final, o cinema, mais uma vez, evocando o moto contínuo deste artigo, lançar questões na tela e nos fazer questionar tudo, dever cumprido.
Flávia Guerra é documentarista e jornalista, tem mestrado em direção de documentário/ Screen Documentary pela Goldsmiths–University of London. Dirigiu Karl Max Way (premiado no É Tudo Verdade), foi coprodutora e assistente de direção de O Caminhão do Meu Pai (pré-finalista ao Oscar, de Maurício Osaki); produtora associada de Meu Sangue É Vermelho (Needs Must Film-BR/UK). É colunista da BandNews, criadora do podcast Plano Geral e, no último ano, cobriu festivais internacionais para o Canal Brasil. Tem integrado júris e a curadoria de editais e festivais no Brasil e no exterior.
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Como o cinema tem tratado as diversas faces da questão ambiental? Da crise civilizatória à perda de biodiversidade, do colapso climático à busca da sacralidade da Terra, a realidade ecológica está em ficções e documentários de diferentes formas, sejam distópicas ou apontando caminhos, como elemento central ou paisagem de fundo. Com esta série, o Le Monde Diplomatique Brasil, em parceria com o Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer e o Doc Ambiente, convida alguns dos melhores corações e mentes para pensar a interface da produção cinematográfica com o meio ambiente